Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

As heranças do bem

Houve um tempo em que ateus contemplavam os crentes com raiva, depois com desprezo, piedade ou inveja e, por fim, com indiferença. Hoje, entre os civilizados, predomina o respeito à fé alheia.

Mas os ateus não acreditam em nada? Depois de Santo Agostinho, que viveu entre os séculos 4 e 5 e influenciou célebres filósofos, como Pascal e Kant, ateus simplórios passaram a ter uma vida difícil. Para os ateus inteligentes e cultos, a fé do amigo, do vizinho ou simplesmente do outro não tem importância, não é critério para avaliar se são bons cidadãos ou não, se têm caráter ou não, se vale a pena conviver com eles ou se precisam ser evitados.

Talvez a questão de ter fé seja coisa menos importante entre as prioridades do Homem. Ainda que não se acredite que Jesus tenha existido, cuja vida é de difícil comprovação histórica, aquele autor que atende pelo nome dele nos quatro evangelhos oficiais deixou uma grande mensagem: amar o próximo. É mensagem positiva, pois para a convivência bastaria não odiá-lo.

Até mesmo pessoas inteligentes e cultas, a quem a Humanidade tanto deve, como é o caso de José Saramago, têm dificuldades de entender quais são e como se dão os benefícios da fé.

Atos corajosos e desafiadores

Quantas organizações de ateus o prezado leitor conhece empenhadas em fazer bem ao próximo?

Morei vinte e três anos em São Carlos, no interior de São Paulo. Todas as semanas ia à sede dos Obreiros do Bem – um nome bonito, aliás – e lá encontrava uma senhora que se levantava de madrugada para fazer pão a ser vendido a preço de custo. O trabalho dela era de graça. Fazia isso porque, sendo espírita, queria ajudar aquela entidade a aliviar o peso da existência de muitas pessoas. Ela fazia a sua parte. Não pertencia a nenhum partido político, agremiação ideológica, nada! Fazia o bem sem olhar a quem, como recomenda o provérbio popular.

Quantas ordens religiosas se empenharam ao longo dos séculos e ainda se empenham em atender a doentes, presidiários, órfãos, pobres etc! A Igreja católica tem um patrimônio imorredouro nessas ações.

Houve um tempo em que o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor James Wright se notabilizaram em desafiar a ditadura militar, de que foi exemplo o culto ecumênico feito quando da morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog. A mídia do período deu grande destaque a essas ações e revelou-se poderosa ajuda na conscientização das pessoas de que algo deveria ser feito para retirar o país daquela situação. E entre os líderes de outros atos, igualmente corajosos e desafiadores, estavam figuras religiosas.

Ultimamente, a tônica é o denuncismo

Além das três citadas, o caso emblemático de Dom Helder Câmara, no Recife; de Dom Cláudio Hummes, em São Paulo. E, embora a esquerda goste de esquecer, de Dom Eugênio Salles, no Rio, apoiando perseguidos políticos, tanto brasileiros quanto estrangeiros.

Hoje, a mídia não demora a manifestar sua obsessão por denúncias que envolvam religiosos. A pedofilia é certamente um crime e suas penas estão tipificadas em leis apropriadas. Os criminosos devem ser exemplarmente punidos. Mas há certo exagero em atribuí-las ao celibato católico, como foi também exagerado o destaque ao episódio envolvendo o rabino Henry Sobel nos EUA, flagrado furtando gravatas numa loja. A mídia fez crer que toda a biografia desse homem notável pelo bem que praticara ao longo da vida era sumariamente destruída por aquele ato isolado, fruto de uma patologia de difícil explicação para os simples, mas de fácil comprovação nos anais que tratam de distúrbios psíquicos.

A mídia somente se dá conta disso quando o chicote está em outras mãos e ela pode ser a entidade fustigada. Daí, as reações se desdobram em atos que nada têm da democracia que defende. Quem ousa criticá-la, no mínimo recebe um orquestrado silêncio sobre seu nome, como figura a ser evitada.

Se a mídia diz defender a democracia, como sempre proclama, deveria rever esses olhares redutores. Devemos muito das boas ações ao próximo deflagradas ou apoiadas pela mídia. Mas ultimamente sua tônica é o denuncismo como se este fosse o único modo de fazer jornalismo.

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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras