A recente eleição do candidato-azarão à presidência da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), mereceu do jornalista Marcos Sá Corrêa um artigo no jornal O Estado de S. Paulo (‘O baixo clero está por cima’, 16/2/2005) discutindo o conceito de ‘baixo clero’ há muito associado ao deputado. Com o brilho e a clarividência de sempre, porém, Sá Corrêa também dedicou um iluminador parágrafo ao maciço espaço que a imprensa conferiu à escolha do bizarro deputado, no qual aproveitou para recordar a existência de ‘uma patente mundial do jornalismo brasileiro’: entre nós, a cobertura política ‘supera em tamanho os acontecimentos que a povoam’.
De fato. A avassaladora, quase delirante cobertura da eleição de Cavalcanti – manchetes espalhafatosas nas emissoras de TV, incontáveis ‘entradas’ nas rádios, flashes ininterruptos nos sites noticiosos e, nos jornais, 6, 7, até 8 páginas de matérias – foi muito maior, em volume e estridência, do que o espaço dedicado ao maremoto de 26 de dezembro que matou 300 mil pessoas em 13 países da Ásia. Será que era o caso?
O episódio reacende várias questões de interesse da profissão. Começando, claro, pelo velho e quase insolúvel problema da relação de proporção que devemos tentar manter entre a importância dos acontecimentos cobertos e o destaque com que os apresentamos ao público.
Quanto espaço – de revista, jornal, televisão, rádio, internet – dedicar a um assunto, comparado com outro? Que destaque dar, em centimetragem de papel, em tempo de televisão e de rádio, em telas de internet, à eclosão de uma rebelião simultânea em dezenas de prisões, comparada a uma crise internacional? Ou a um grande fato esportivo vis-à-vis uma catástrofe natural? Se uma denúncia do Ministério Público merece manchete de seis colunas num grande jornal, o que fazer (a mais) quando chegar a hora da morte do papa?
Sem igual no mundo
Mas debrucemo-nos sobre um aspecto específico trazido à tona pela novidade severina: a adequação (ou não) da extensão da cobertura política que oferecemos aos consumidores de informação. De cara, pode-se dizer sem medo de errar que ela traz o grave defeito de ser vasta demais.
Tem absoluta razão Marcos Sá Corrêa – que, aliás, fala com a autoridade de quem pilotou o ‘Informe JB’ do Jornal do Brasil numa de suas melhores fases e foi um grande editor de política do Jornal do Brasil e de Veja, tudo entre os anos 1970 e 80, e que, de uma ou outra forma, tem lidado com assuntos políticos ao longo de uma carreira de três décadas e meia.
Nenhum grande jornal do mundo gastaria o espaço que os nossos principais diários esbanjaram com a eleição de um presidente de uma das casas do Legislativo. Tampouco publicariam páginas e páginas de política, aconteçam ou não fatos de real relevo. Esse vício, entre nós, é parte de fenômeno mais amplo, já tratado pelo signatário neste Observatório [‘O poder toma conta do noticiário’, 10/2/2004, remissão abaixo]: a gigantesca, desmesurada presença na mídia das informações sobre o poder – municipal, estadual e federal, em suas incontáveis manifestações, da delegacia de polícia ao Palácio do Planalto – ou dele oriundas.
No caso específico do noticiário político, talvez estejamos sofrendo as conseqüências de uma atitude da própria grande imprensa, e dos jornalistas que nela trabalharam, no período do regime militar (1964-1985). Ao longo daqueles anos, mesmo nas fases mais negras de repressão e censura, houve um esforço intencional, como lembrou Sá Corrêa em seu artigo, de manter vivo o noticiário político e mesmo de instalá-lo com a possível freqüência nas primeiras páginas como uma espécie de ato de resistência à falta de notícias parlamentares relevantes e ao sufocamento da atividade política.
Villas-Bôas e a resistência à ditadura
O decano dos jornalistas políticos brasileiros, Villas-Bôas Corrêa, 81 anos, tratou do tema em seu delicioso livro de memórias profissionais, Conversa com a Memória (Editora Objetiva, 2002). Com o regime golpista em andamento, lembra Villas, ‘deparamos com a questão ética de [ou] manter ocupado o espaço nos jornais pelo comentário político, avalizando de algum modo o que considerávamos uma farsa para consumo externo, ou articular a retirada em massa, como manifestação coletiva de protesto’.
Diante desse dilema, ele lembra:
‘Pessoalmente, dei a volta na hesitação e sepultei a dúvida com o argumento conclusivo de Carlos Castello Branco [o grande colunista político do Jornal do Brasil, falecido em 1993]. O protesto do silêncio não chegaria a repercutir, abafado pela censura. Os seus ecos durariam alguns dias, percebidos apenas pelos leitores mais atentos (…). Ocupar o nosso espaço, com todas as limitações, driblando as ordens da censura, era a legítima opção de luta. Nossa presença diária (…) incomodava muito mais a ditadura, que escondia a cara com a máscara do fingimento do Congresso aberto e controlado pelas cassações de mandatos, os atos institucionais, os recessos punitivos, a desfaçatez dos casuísmos (…) e que se desmandava na boçalidade da tortura institucionalizada (…)’.
Na verdade, a atitude dos jornalistas correspondeu, de forma mais ou menos generalizada, à dos patrões da grande imprensa. Mesmo nos veículos que apoiavam o regime militar, deliberou-se – e, em um ou outro caso, tolerou-se – a manutenção de uma cobertura política volumosa muito além do que justificava a importância dos políticos num regime em que quem dava as cartas eram os militares e os tecnocratas. Nem o mergulho nas trevas do Ato Institucional nº 5, que eliminou o que restava de liberdade, direitos e garantias, mudou fundamentalmente esse quadro.
Jornalistas e patrões convergiram
Como muitos jornalistas, pude pessoalmente constatar o quanto coincidiam as vontades dos jornalistas políticos e dos patrões da grande imprensa – bem, pelo menos de um patrão – nesse período difícil.
Em 1969, depois de quatro anos como jornalista em diferentes funções e veículos em Brasília, era redator de política do Jornal da Tarde em São Paulo. E lembro-me do empenho pessoal de Ruy Mesquita, o hoje diretor do Estado de S.Paulo que na época tocava o JT, no noticiário político. Apesar de volta e meia revelar seu desalento e sua revolta com os rumos do regime que, de início, sua família ajudara a instalar, Mesquita concordava que o editor-chefe Murilo Felisberto mantivesse em ação uma forte editoria política, chamava repórteres para conversar, lia com atenção as matérias, fazia cobranças.
Na campanha para as eleições parlamentares de 1970, realizadas sob o tacão da censura e com a oposição sob constante ameaça, inclusive física, o ‘doutor Ruy’, como era (e é) chamado, a certa altura desanimou. Chamou-me a sua sala – eu não era o responsável pela editoria, mas ele em geral gostava dos artigos que escrevera como correspondente do JT em Brasília, em 1967-68, e vez por outra conversávamos. ‘Será que a gente não está dando muita importância a essa farsa?’, perguntou-me. Argumentei que não. Apesar de tudo, havia vida na oposição, disse eu. O então deputado Franco Montoro poderia vencer (como efetivamente ocorreria) a eleição para o Senado em São Paulo, o deputado Paulo Brossard fazia uma campanha corajosa no Rio Grande do Sul (acabaria perdendo). Havia outros casos, e deveríamos tentar cobrir essas disputas. ‘Não sei, não’, resmungou. ‘Mas vocês vão tocando o bonde.’
À medida que as eleições se aproximavam, porém, Ruy Mesquita recuperou o entusiasmo. Queria saber das tendências de voto, reclamava quando tínhamos pouco espaço para as campanhas. De certa forma, acabou sobrando para mim. Eleitos os novos senadores, ele quis um alentado perfil das velhas lideranças que continuaram e dos novos que surgiram. Eram 44 perfis, e escrevi todos eles numa virada de madrugada.
É claro que, além de se constituir em uma forma de resistência à ditadura, a manutenção de uma nutrida cobertura política naqueles tempos mereceu outro tipo de estímulos. Entre eles se incluía a autoproteção de uma legião de jornalistas políticos em Brasília, no Rio, nas capitais dos Estados e em cidades grandes e médias já dotadas de meios de comunicação de algum porte. Pauteiros, repórteres, comentaristas, titulares de colunas de notas, redatores e editores queriam, compreensível e legitimamente, manter seus empregos.
Jornais chatos e perda de público
O resultado de tudo isso valeu a pena. O noticiário político realizou sua parte no aproveitamento das poucas frestas de liberdade propiciadas pelo regime, alargando-as. O problema é que, quando chegou a democracia, em 1985, o desequilíbrio entre o verdadeiro tamanho da atividade político-parlamentar e o resultado dela apresentado pela mídia permaneceu, como se fosse um vírus. A política, atividade corretamente ou não negligenciada no mundo inteiro, quando não desprezada, pela grande maioria do público, tornou-se, aí sim, o centro, o coração, a alma da imprensa.
Como logo ocorreriam as eleições de 1986 – para todos os cargos federais e estaduais, exceto o de presidente e vice –, seguidas pelos trabalhos da Constituinte (1987-1988), depois pelas importantes eleições municipais de 1988 e, logo adiante, pela trepidante campanha para a disputa presidencial de 1989, a primeira realizada no país em quase 30 anos, as equipes encarregadas da cobertura política engordaram, o noticiário político acabou atropelando de vez outras áreas de interesse e sua primazia se cristalizou como um fenômeno cultural específico da imprensa brasileira. A ‘patente mundial’ de que fala Marcos Sá Corrêa.
Será que isso convém à imprensa e ao público? Tem cabimento esse massacrante espaço conferido à política num momento em que vários fenômenos – a globalização da economia, o desenvolvimento científico, os saltos da medicina, a generalização do uso da internet, as novidades tecnológicas, a questão ambiental, o acesso ao lazer, as novas tendências de comportamento, o redespertar das religiões, a atuação do terceiro setor – ampliam extraordinariamente a área de interesses das pessoas?
Não será por problemas como esse que certos veículos, como os grandes jornais, perdem público continuamente, mais no Brasil do que em outros países? Os jornais, sobretudo, não estariam, por essas e outras, ficando distantes do interesse dos leitores? Não estariam ficando chatos demais?
Os jornalistas – especialmente os que dirigem os veículos da grande imprensa – precisam meditar sobre a questão. É o lembrete de alguém que, desde o início da carreira, de forma bissexta ou não, tem trabalhado com a informação política.
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Jornalista