A Folha e o Estado não têm do que se envergonhar das matérias e artigos da semana passada, quando a Câmara votou a Lei de Biossegurança, sobre as polêmicas pesquisas com células-tronco embrionárias. Já o Globo ficou em dívida com o seu leitorado.
Diante de um assunto ao mesmo tempo técnico e de grande repercussão (de um lado, pelo potencial terapêutico dessas pesquisas para numerosas doenças degenerativas; de outro, pela forte oposição da Igreja, que só admite experiências com células-tronco adultas ou extraídas do cordão umbilical dos recém-nascidos), os jornais paulistas deram conta perfeitamente bem do recado, deixando para trás o concorrente carioca.
O melhor da Folha foi a página inteira da quarta-feira (2/3), com um primoroso tratamento gráfico que equilibrou com simetria e elegância três textos substanciosos, dois boxes e dois chamativos infográficos de uma clareza exemplar, sobre os caminhos alternativos para "a revolução prometida" pelos biólogos.
Quem tenha se detido na página pelo tempo devido não poderá dizer que não aprendeu "o que são células-tronco embrionárias e por que os cientistas as desejam tanto" – o que o jornal se propôs a explicar. (A Folha repetiu as informações essenciais sobre o tema nas edições de quinta, sábado e domingo.)
Na sexta, o Estado dobrou por assim dizer a aposta da Folha. Também numa página inteira, apesar da falta de atratividade dos seus infogramas, deu uma tacada de truz. Recorreu a três especialistas, uma de São Paulo, outra do Rio, outra ainda do Rio Grande do Sul, para responder a 12 perguntas básicas "sobre o que já se sabe e o que ainda é experimental nessa área". Entre elas, a que mais deve interessar ao leitor: "Quais doenças que, já se sabe, podem ser curadas ou mitigadas pelo uso de células-tronco?"
"Dar-se conta"
Mas em matéria de divulgação científica, insistência e reiteração nunca são demais. Jornalistas podem ser tão ignorantes a respeito quanto os seus leitores – ou, no caso, espectadores.
A bióloga Lygia da Veiga Pereira, que divide com a sua colega de USP Mayana Zatz a pole-position na campanha pela liberação das pesquisas em causa, no Brasil, abriu o artigo "Por enquanto, apenas um fio de esperança" (Estado, 6/3), com uma situação que a fez "gelar".
Numa entrevista ao vivo, no dia seguinte ao da votação na Câmara, o repórter começou: "Com a aprovação do projeto da Lei de Biossegurança, quantos pacientes sairão das filas de transplantes?"
Lygia conta que respirou fundo e respondeu: "Nenhum."
Ela aceita que "talvez um certo sensacionalismo faça parte do jogo e tenha sido importante para mobilizar a sociedade e os parlamentares". Mas, "agora que a poeira baixou, quais são as reais possibilidades das CTs embrionárias?"
Como indica a citada matéria do Estado com as três especialistas, intitulada com objetividade "Presente e futuro das células-tronco", a pergunta está no radar da grande imprensa. Tomara que dali não saia "agora que a poeira baixou".
E a questão moral? Folha, Estado e Globo trouxeram artigos de padres condenando o uso de CTs embrionárias porque isso equivalerá à "destruição de vidas". A vida, para eles, começa no momento da fecundação.
A melhor (e mais divertida) refutação a essa crença que este leitor encontrou nos últimos dias nos jornais brasileiros está no artigo "A vida humana segundo a razão", do cientista político Giovanni Sartori (que inventou a expressão videopolítica) para o Corriere della Sera, transcrito no Estado do dia 2.
Sartori distingue vida de vida humana. No limite, essa distinção está na autoconsciência. Todos os seres dotados de sistema nervoso sofrem fisicamente, argumenta. Mas o homem também sofre psicologicamente e espiritualmente. "Digamos, então", escreve Sartori, "que a vida humana começa a ser diferente, radicalmente diferente daquela de qualquer outro animal superior, quando começa a ‘dar-se conta’."
Por isso também se diz que a vida cessa quando cessa a atividade cerebral, mas a vida humana cessa quando o ser humano perde a consciência de si.
Estado e religião
É certo que isso é muito pouco para levar os religiosos a aceitar que vida humana alguma se perde com a manipulação de blastocistos – a centena de células indiferenciadas que se formaram nos cinco primeiros dias do desenvolvimento embrionário e das quais são removidas as células-tronco.
À parte a verdade de que todos temos direito às próprias opiniões, mas não aos próprios fatos, como dizia o falecido senador americano Daniel Patrick Moynihan, há quem queira impor as próprias opiniões, como se fossem fatos, a toda a coletividade.
Os jornais de sábado deram que o católico procurador-geral da República, Claudio Fonteles – o mesmo que se opõe ao aborto até de fetos anencefálicos – pretende representar no Supremo contra a Lei de Biossegurança. Isso, segundo o Estado, porque ele ouviu uma bióloga dizer no canal católico Rede Vida que a aprovação da lei foi "um golpe político".
A mídia não pode perder jamais a ocasião de ressaltar que o Brasil não é uma teocracia, mas uma democracia em que Estado e religião não se misturam, nem devem. Da mesma forma que os testemunhas de Jeová se opõem à transfusão de sangue e nem por isso ela é proibida, qualquer um tem o direito de rejeitar para si os eventuais benefícios futuros da terapia com células embrionárias, em nome de suas crenças religiosas. Só não tem o direito de querer impor isso aos demais.
É o óbvio ululante. Mas precisa ser dito – e repetido.
[Texto fechado às 18h25 de 07/03/05]