Tanta coisa aconteceu desde os tempos em que escrevia ao Observatório da Imprensa de Belgrado, de Praga… Acabei sumido pois me surgiu uma proposta para dirigir uma nova revista tcheca – desde então, 27 horas por dia na redação, sempre à beira de um ataque de nervos e tudo aquilo que conhecemos, só que em tcheco…
O que aconteceu foi que, em março de 2001, fui chamado para escrever um artigo sobre a mídia tcheca para o jornal Lidove Noviny. Eles me notaram quando apareci no noticiário como correspondente do Jornal do Brasil durante a revolução na TV pública do país [ver remissão abaixo, primeiro texto]. Acharam exótico um brasileiro falando tcheco e vivendo em Praga, então me entrevistaram e, depois de procurarem mais informações sobre mim na internet, depararam-se com vários artigos publicados no OI [ver abaixo seleção de links], e concluíram que eu poderia também opinar sobre a imprensa deles.
Como são uma nação de apenas 10 milhões – 12 milhões, se contarmos os Kunderas [escritor Milan Kundera, de A insustentável leveza do ser], os Formans [diretor Milos Forman, de Estranho no ninho, Hair, Ragtime, Amadeus, O povo vs. Larry Flint], as Navratilovas [a tenista Martina Navratilova] que vivem fora… –, acham extremamente curioso quando alguém tem interesse suficiente para aprender sua língua, história e cultura. E, como passaram 41 anos debaixo de ditadura, não tinham imprensa de verdade, apenas máquina de propaganda. Com isso, os jornalistas que fazem a mídia tcheca de hoje não têm no que se espelhar, não têm uma tradição para seguir. E não têm pessoas com mais de 35 anos nas redações. Daí o interesse em profissionais estrangeiros que queiram dividir sua experiência – só que são poucos, por causa da barreira da dificílima língua.
Escrevi o artigo, a repercussão foi enorme, escrevi o segundo; desta vez, o diretor da emissora comercial mais poderosa passou três sábados me atacando num programa semanal de relações públicas do canal com os telespectadores. Isso gerou uma publicidade que levou o dono de uma editora de 17 revistas, a Stratosfera, a me contratar para dirigir uma nova revista semanal de notícias, chamada Redhot. Foi quando perdi contato com o OI.
‘Nojo de pobre’
Botar uma revista inteira nas bancas toda segunda-feira é uma tarefa que um correspondentezinho internacional não tem nem noção do tamanho. Tive que aprender na calada da noite, auxiliado pelas boas almas tchecas, todos os detalhes da produção à criação, passando pela administração financeira de uma revista… Quase explodi, mas sobrevivi e tive a felicidade de tomar o segundo lugar dos três semanários do país.
Minha vida virou ainda mais de cabeça para o ar depois do 11 de Setembro, pois a forte influência americana entre as autoridades tchecas me causou muitos problemas: apenas a Redhot ousou já na primeira edição após os atentados usar a mesma linha de abordagem crítica das reações de Bush que teve a maioria das publicações francesas e britânicas. Todos os outros veículos tchecos, com exceção do diário Britske Listy, ecoaram a linha americana. Tive que me defender em artigos em outros veículos, que me chamavam de Rudy Golgo (Golgo Vermelho – me acusando do pior palavrão na República Tcheca pós-Revolução de Veludo: comunista…). Até o nome da revista, Redhot, foi usado como indicativo de minha ideologia. Em seguida até explicaram as tendências comunistas no Brasil de Lula e, quando descobriram que eu era de Porto Alegre… Há vários desses artigos na internet. O Google local deles, www.seznam.cz, leva mais rapidamente a artigos em tcheco.
Por tudo isso, fiquei afastado do Observatório. Depois de dois anos na Redhot meus neurônios com o dono já tinham se esgotado – clássica história, não preciso contar o que acontece entre a mentalidade de jornalista e a de empresário. Virei diretor da Playboy tcheca! Foi uma loucura apenas temporária, quatro meses depois acordei da enrascada em que tinha me enfiado e pedi demissão. Foi aí que assumi uma revista muito legal, baseada na Big Issue britânica, que é vendida não nas bancas, mas nas esquinas, pelos sem-teto. É a revista com maior vendagem da Grã-Bretanha, quase 1 milhão de exemplares. No Brasil há umas versões pobrinhas da iniciativa, mas, como me contaram no Natal uns vendedores da Boca de Rua, em Porto Alegre, ‘brasileiro tem nojo de pobre, não compra da gente, acha que é pra comprar cachaça, que vai se contaminar se tocar no papel’. Lá, se chama Novy Prostor.
O país inteiro sambou
Depois de renovada a revista, assumi o Britske Listy. E achei um tempinho para respirar, pois a experiência dos últimos anos me afinou as técnicas e o entrosamento com uma equipe que carrego para onde vou, então já posso dividir responsabilidades.
Várias vezes eu quis escrever para o Observatório sobre certas coisas interessantes que rolavam na mídia daqui, mas não achava tempo. Um fato que deveria ter chegado ao Brasil foi um fenômeno cultural causado pelo primo do Nelson Hoineff, o Ricardo Hoineff. Ricardo é o Hans Donner tcheco!
Ricardo veio morar em Praga já em 1991, para estudar cenografia na Universidade de Carlos. Ele havia trabalhado na Globo e queria se aperfeiçoar na área. Mas acabou se apaixonando e ficando. Também fala tcheco e se tornou bastante conhecido depois que foi contratado pela TV que abocanha 60% da audiência para criar suas vinhetas.
Não bastasse isso, em 2003 ele fez o país inteiro sambar! Não estou exagerando – o Ricardo criou três dezenas de vinhetas que rodaram o ano inteiro, cheias de publicidade em volta, na qual uma mulata – Márcia, que mora na Alemanha – sambava, toda vestida com luxuosas fantasias de Carnaval, pelo país afora.
Primeiro-ministro em xeque
A emissora tem o mesmo poder da Globo. E promoveu, o ano inteiro, um concurso, pelo qual telespectadores mandariam fitas de vídeo em que os próprios sambavam como a ‘mulata da TV Nova’. Mais de 300 mil telespectadores, num país de 10 milhões, mandaram suas versões, concorrendo a uma viagem ao Rio no Carnaval de 2004. Ricardo dava entrevistas por todos os cantos, aparecia em videoclipes promocionais, dirigindo e explicando as vinhetas etc.
Ele simplesmente fez com que um país do outro lado do mundo, sem ligação cultural alguma conosco, aprendesse alguns passos de samba. E, por causa das matérias sobre ele, os tchecos ficaram sabendo (e estão orgulhosos) que um tal Juscelino Kubitschek, criador da Brasília, que ele já conheciam, era filho de mãe tcheca…
Mas a notícia atual que eu poderia passar a vocês é sobre uma possível queda do primeiro-ministro por causa da imprensa tcheca. Isso é significativo porque a democracia local é jovem como a mídia e ambas engatinham em seus respectivos poderes. É a primeira vez que reportagens de um jornal conseguem criar uma crise de governo.
Tudo começou quando o principal jornal tcheco, que vende 500 mil exemplares diários, o Mlada Fronta Dnes, quis saber de onde o mais jovem primeiro-ministro da Europa, o social-democrata Stanislav Gross, 35 anos, tirou dinheiro para comprar seu apartamento de luxo. O jornal calculou os ganhos dele durante sua carreira, que havia sido exclusivamente na política, portanto, ganhos publicamente averiguáveis. Faltavam meros 30 mil dólares para justificar, mas o premier se recusava a responder ao jornal. Por causa dessa atitude arrogante, o resto da imprensa começou a falar no assunto, querendo saber se a democracia tcheca já havia chegado ao ponto em que os políticos entendem que a mídia tem o direito e o dever de inquirir sobre suas finanças. A pressão se tornou insustentável depois de duas semanas de constantes protestos na imprensa pela falta de explicações do chefe de governo, mesmo se tratando de quantia pequena.
Problema de esquizofrenia
Nisso, um semanário chamado Respekt descobriu que a mulher do primeiro-ministro, Sarka, havia comprado um prédio no valor de 300 mil dólares, os quais nem ela nem seu marido poderiam ter. O primeiro-ministro cedeu e resolveu explicar pelo menos a compra do apartamento. Disse que um tio aposentado havia lhe emprestado, sem contrato formal, a quantia. O jornal não se deu por satisfeito e foi atrás de todos os tios de Gross. Um deles assumiu o empréstimo. Só que nem ele poderia ter aquela quantia de forma legal, depois de uma análise de seu passado e sua irrisória aposentadoria. Fora o fato de suas filhas mais tarde virem à imprensa protestar que, se o pai tinha aquele dinheiro, por que não emprestou a elas, que precisavam mais?
A pressão seguiu. Então o tal tio disse que o dinheiro na verdade vinha de outro parente seu, que vivia no exterior. A Receita Federal quis saber onde havia registro da entrada de tal quantia. Foi quando a coisa tomou rumos folhetinescos. Surgiu um vizinho do tio confessando que, na verdade verdadeira, fora ele que emprestara o dinheiro para o pobre tio emprestar ao primeiro-ministro (que na época da compra do apartamento era ministro do Interior). O jornal queria saber o motivo de emprestar sem garantias nem prazo de pagamento e, ainda por cima, no anonimato. No dia seguinte, outro jornal descobriu que o tal vizinho, Rotislav Rod, era um jornalista dos tempos comunistas e ex-colega da assessora de imprensa do primeiro-ministro, Vera Duskova…
Quando Rod fora questionado sobre onde morava e de que se sustentava, limitou-se a dizer que cuidava de vacas com uma doutora sua amiga. Que não precisava trabalhar, pois tinha dinheiro da privatização (dividido entre todos os funcionários do jornal) do próprio diário que começara as indagações contra o premier. Lidove Noviny então descobriu e revelou que as tais vaquinhas estavam numa fazenda-clínica psiquiátrica, onde a tal doutora na verdade cuidava de seu problema, diagnosticado como esquizofrenia…
Debate inédito
Foi quando Stanislav Gross tentou abafar o caso e posar de mártir ameaçando criar leis mais fortes contra a imprensa, e disse que processaria dois jornais por fazerem uma campanha paga pela oposição, segundo ele. Mas, ante a interpelação oficial em sessão do Parlamento pelos partidos de oposição, Gross teve que achar uma prova de que não estava mentindo. Eis que surge o líder de um partido de ultradireita, racista e extremista, que nunca conseguiu votos suficientes para entrar no Parlamento. Ele veio à imprensa comunicar que havia comprado de Rotislav Rod o papel escrito à mão, assinado por ele e o tal tio, em 1999, oficializando o empréstimo. Com isso, ele comprara o débito.
Os jornalistas queriam ver o papel, mas o tal político insistiu em que apenas uma cópia xerox existia agora, pois logo após a aquisição ele colocara fogo no original. Por quê? ‘Para que a nossa imprensa alemã [pois todos os jornais locais foram comprados por empresas da Alemanha] não tenha o gostinho de derrubar um primeiro-ministro no país que não é deles…’, justificou.
É claro que depois desse álibi para lá de inverossímil a imprensa e a opinião pública começaram a gritar. E o partido KDU-CSL, de cristãos democratas que são coligados ao governo, com três ministérios, teve que protestar também, para não perder eleitores. Com isso, a crise se agravou, o presidente Vaclav Klaus (que tem poucos poderes, mas detém o de nomear ou cortar a cabeça do chefe de governo, convocando novas eleições) dá sinais de que vai pôr fim à atual administração.
O problema ainda não foi resolvido, mas o governo pode cair ainda no início desta semana. A mídia tcheca vem discutindo o recém-revelado poder da imprensa e suas responsabilidades, um tipo de debate inédito.
******
Jornalista