Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O debate de uma nota só

O Globo promoveu no dia 16 de março, em parceria com o Instituto Millenium, um seminário intitulado ‘Liberdade em Debate – Democracia e Liberdade de Expressão’. O resultado, publicado em caderno especial que circulou na quarta-feira (23/3) no Globo e no Estado de S.Paulo, revela muito claramente quais são os limites admitidos pelas grandes empresas de comunicação para a discussão do tema regulação da mídia. E esses limites são muito estreitos.


O eixo central das ‘discussões’ foi a presença do jornalista americano David Harsanyi, autor do livro intitulado O Estado Babá, no qual critica o que considera excessos da regulamentação nos Estados Unidos. Sua obra gira em torno de bobagens inseridas em legislações municipais ou estaduais, mas tem a pretensão de defender a tese de que, nos Estados Unidos, a tutela do Estado em casos como saúde pública, proteção da infância e defesa dos animais acaba por afetar a liberdade de escolha dos cidadãos.


Em cima dessa plataforma aparentemente consensual, sobre a qual superficialmente não florescem divergências, os organizadores do evento montaram um arsenal de manifestações contrárias ao anunciado propósito do governo federal de regular o setor de comunicação.


Alinhamento automático


Como, oficialmente, o próprio setor parece ter descartado a possibilidade de regular a si próprio, o seminário organizado pelo Globo serve claramente como contraponto para propostas que o governo ainda não fez, e marcam a absoluta intolerância que a mídia tradicional estabelece para a questão.


O caderno especial é uma grande lição negativa para estudantes de jornalismo, de como viciar um debate a partir da elaboração de suas premissas para se obter como conclusão um pressuposto que se quer demonstrar.


Ao misturar certa tendência ao ‘proibicionismo’ de legislações protecionistas e politicamente corretas com a proposta de estabelecer algumas regras para a atuação das empresas de mídia, o seminário viciou o diálogo, desrespeitou os participantes que não se alinham automaticamente aos interesses das grandes empresas jornalísticas e queimou uma grande oportunidade de contribuir para fazer avançar o debate real.


Cortina de fumaça


O pressuposto básico do seminário é de que as empresas, ou seja, organizações privadas de interesse específico, sabem exatamente quais são as melhores escolhas em relação aos interesses difusos da sociedade. O Estado estaria, portanto, dispensado de fazer a mediação de certas escolhas que interferem nesses interesses específicos.


Trata-se de um aforismo essencial nessa questão, nunca explicitado mas sempre presente nas manifestações das empresas jornalísticas nos debates sobre regulação da mídia. Para fazer essa assertiva, levantaram-se teses no mínimo controversas, como aquela segundo a qual os excessos na regulação têm como premissa a idéia de que as pessoas são hipossuficientes.


Não parece ter passado pela cabeça dos participantes a hipótese de que o mesmo pode valer para um sistema no qual uma única empresa de comunicação, dominando majoritariamente uma região ou um país inteiro, com todos os meios tecnológicos disponíveis, considere-se a única dona da verdade sobre todos os assuntos, da economia ao lazer, da política ao humor.


O resultado das intervenções, cuidadosamente editado durante uma semana inteira, certamente reflete o pensamento da direção do Globo.


Patrocínio sintomático


Publicações que reproduzem eventos de interesse das empresas, que na redação da Folha de S.Paulo costumavam ser chamadas de ‘Operação Portugal’, demoram a ser concluídas por que os dirigentes da organização fazem questão de revisar linha por linha o que será apresentado ao público.


São verdadeiros editoriais.


Portanto, deve-se considerar que aquilo que está publicado alinha-se completamente com o que a direção do Globo pensa a respeito da regulação dos negócios de comunicação.


Para completar, basta observar que o caderno especial foi publicado sob patrocínio da Souza Cruz, o que pode parecer uma ironia acidental, já que uma das mais acirradas batalhas do chamado Estado regulador desde meados do século 20 tem sido no sentido de proteger crianças e adolescentes do assédio da indústria do tabaco.


Trata-se de um caderno especial muito educativo, da primeira à última linha.