Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mercado vence o racismo?

Às vésperas da visita do presidente dos Estados Unidos Barack Obama ao Brasil, a revista Veja estampou em suas páginas amarelas, na edição de 9 de março último, uma maliciosa entrevista com o economista afro-estadunidense Walter Williams, no passado considerado um ‘radical’. A entrevista traz o economista numa posição contra as cotas raciais (marca do governo Lula e que prossegue com sua sucessora, a presidenta Dilma Rousseff) e em defesa da ideia do mercado livre no papel de regulador natural de superação do racismo, além de apregoar insucessos para o governo Obama.

Jornalistas do movimento brasileiro pela promoção da igualdade racial na mídia consideraram a entrevista como endereçada aos dois governos: o brasileiro e o norte-americano. E, inconformados com a parcialidade do discurso peculiar àquele veículo, principalmente quando as matérias jornalísticas têm o viés de raça, entrevistaram outra fonte sobre o mesmo assunto: o escritor e professor nigeriano Femi Ojo-Ade, radicado nos Estados Unidos, emérito (PhD) em francês e história do St. Mary´s College, autor de mais de 60 obras sobre diáspora africana publicadas no Brasil e em outros países, entre artigos, estudos críticos e livros, como Obama – o fenômeno.

‘O mercado incentiva desigualdades’

Iris Cary (Rádio Câmara, Brasília) – O que o senhor acha dessa entrevista ter sido publicada pela Veja às vésperas da visita do presidente Obama ao Brasil?

Femi Ojo-Ade – Pelo que eu sei sobre a Veja, ela parece ser uma revista reacionária, que favorece as opiniões do eurocêntrico e burguês norte-americano. Não é de admirar que tenha publicado a entrevista com Walter Williams. Ele representa um ponto de vista da corrente de pensamento norte-americana dominante. Em sua essência, essa corrente pode ser chamada de antinegra e retrógrada, contrária a uma opinião progressista e que segue os princípios da democracia. Naturalmente, esta última favorece os negros, incluindo afro-brasileiros, bem como aqueles interessados em uma verdadeira aldeia global onde a justiça, a igualdade e a verdadeira liberdade seria regra.

Miro Nunes (free lancer e radio-documentarista, Rio de Janeiro) – O senhor acredita que o mercado pode promover a igualdade? Partindo da premissa de que isso seja verdadeiro, por que o mesmo mercado que provocou a mais recente crise financeira vitimou especialmente os Estados Unidos?

F.O.-A. – Não sendo eu um economista, não saberia argumentar sobre teorias propagadas pelos chamados especialistas. No entanto, chamo a atenção que esse conceito parece um exagero e, na verdade, ridículo. O que é chamado mercado livre não é mais do que um disfarce para a exploração imperialista, outro aspecto da continuidade da escravidão e do colonialismo. Partindo de dentro da casa do ‘senhorio’, observo que abundam questões de raça e, essencialmente, em relação àqueles que estão na camada inferior, ou seja, negros que nunca totalmente foram beneficiados pelo chamado mercado livre. O mercado, e é preciso insistir nisso, continuou a ser usado para mantê-los ‘em seu lugar’. Racismo prospera agora como antes; em certos lugares ainda de forma mais flagrante e viciosa. O mercado não promove a igualdade; pelo contrário, incentiva uma série de desigualdades e serve como camuflagem de atos e atitudes que mantêm as pessoas na condição de escravo. Os Estados Unidos são vítimas de sua própria política econômica reacionária porque o que vai, volta. E não esqueçamos que as vítimas de racismo são as mais afetadas. Estou falando em desemprego, instabilidade no trabalho, pobreza, seguridade social etc.

‘O racismo está no fundo da alma humana’

André Ricardo (TV Senado, Brasília) – Sendo o mercado movido por uma série de interesses, aqueles que o dominam buscarão a reprodução daquilo que vem dando certo para eles. Não seria utopia a ideia de que o livre mercado seja uma solução para resolver desigualdades raciais e outras?

F.O.-A. – É uma grande falácia dizer que o mercado livre seja a solução de problemas raciais e outras iniquidades. Essa ideia é um estratagema, um ardil, uma forma sutil e horrível de manter um status quo que vai impedir as pessoas de pensar em resolver efetivamente problemas de longos anos. Racismo tem uma longa trajetória na história da herança negra e os Estados Unidos têm sido sua cama quente para o equilíbrio da existência da América. Como a maioria das outras coisas referentes à experiência negra, racismo tem sido considerado como uma espécie de problema médico, que pode ser diagnosticado, tratado e resolvido. Acredita-se que o movimento de direitos civis atacou o racismo e, uma vez conquistados esses direitos, o problema chegou ao fim. Como o câncer, extraído, erradicado, completamente cortado e deixando o corpo limpo e com excelente saúde. Infelizmente, a vida não funciona dessa maneira. O racismo está no fundo da alma humana. Ele consome nossa própria essência e, como uma doença mental, ele mexe tanto em nosso ser que se torna impossível identificar sua localização e extensão. Em outras palavras, não há uma única forma de garantir uma cura. Tem de ser um exercício contínuo também porque muitos dos seus autores estão vivendo em negação. Eles estão no poder, eles são o poder e suas vítimas, impotentes, estão, em sua maioria, assobiando dentro de um redemoinho de vento.

‘Espero que o Brasil tenha seu próprio presidente negro’

Ana Alakija (alaionline, Brasil-EUA) – O Brasil é um país que tem a política de ações afirmativas mais avançada da América Latina. Entretanto, os EUA e a França foram os pioneiros na construção do conceito e leis da igualdade e ainda hoje superam o país brasileiro nesse sentido. Qual a sua percepção de diferenças e semelhanças entre a realidade da população afrodescendente nesses países, especialmente acerca do funcionamento das ações afirmativas?

F.O.-A. – Enquanto o Brasil está avançando no estabelecimento e expandindo programas de ações afirmativas, os Estados Unidos, pioneiro no projeto, tem, em grande parte, estacionado essas ações. E a França não pode mais ser exemplo de programas benéficos para as chamadas minorias. Estamos observando, com espanto e um certo horror, o drama que se desenrola naquele país, visto como a sociedade mais aberta e liberal do mundo, o ‘centro da civilização,’ agora fecha violentamente suas portas para qualquer um que não seja branco. Pense na saga dos ciganos, nas angústias atuais de africanos e imigrantes árabes e a presença crescente e o poder da direita num país que, no passado, foi símbolo de tudo que os negros queriam, onde negros dos Estados Unidos buscavam refúgio contra o racismo. Quanto às ações afirmativas na América [EUA], sua história é repleta de todos os tipos de soluços porque a elite dominante nunca quis que elas tivessem êxito. Isso significa que nada foi feito com vistas a alcançar o progresso e sucesso ideal para aqueles que sofrem as iniquidades do racismo. Tendo em conta a autonomia dos Estados e as consequentes diferenças nas políticas e programas, as ações afirmativas não são válidas em todo o país. Alguns Estados rejeitaram o programa; alguns não cumpriram as promessas feitas; outros implementaram relutantemente as ações, enquanto só um punhado engajado fez tudo para o sucesso do programa. O Brasil tem a oportunidade de aprender com as experiências da França e da América e eu acredito que está no caminho certo. Tem um governo progressista, orientado para as pessoas e voltado para o futuro. Não tem estados insistindo em atraso e tem uma população de afrodescendentes agora ciente de seus direitos e os sonhos essenciais para ser cumprida em um contexto propício ao seu bem-estar e sobrevivência. Espero que, num futuro próximo, o Brasil tenha o seu próprio presidente negro. Os Estados Unidos continuam a ser símbolo do empenho e da luta do que podem alcançar. Tudo que a gente precisa é pronunciar mesmo o nome ‘Obama’. E o que esses países têm em comum, além de sua herança africana, é a experiência de racismo; e o racismo é racismo!

‘Ações afirmativas contribuem para nivelar a igualdade’

André Ricardo – Se os lares de negros são desestruturados em maior número (tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos), a que se deve isso? Seria algo semelhante à maior presença proporcional de negros nas prisões? Como combinar ação estatal (as políticas de cotas) com liberdade individual?

F.O.-A. – É preciso compreender a condição atual dos negros como consequência da história. Desde então, e até agora, não obstante os esforços corajosos de muitos africanos e seus descendentes, apesar da luta corajosa de líderes negros e seus seguidores, o senhorio nunca deixou de exercer a sua agenda, antes aberta e agora oculta, para manter as famílias negras desorganizadas e em disputa contínua. Lar é onde a mulher está com os filhos que não sabem quem é seu pai e que continua entrando e saindo da prisão. E a mulher é alimentada com histórias sangrentas sobre as irresponsabilidades do seu marido. No tempo da plantação escrava, o homem era forçosamente separado da mulher, que era feita empregada do ‘senhor’, compartilhante da sua cama e, como se não fosse bastante, mãe do ‘mulato bastardo’ resultante da relação sexual entre ela e seu ‘dono’. Ato de estupro ou de mútuo consentimento, a leitura é a mesma: o homem negro, fragilizado, nu e desumanizado, iria ser marginalizado para sempre. Essa é a história de pessoas negras que só os ignorantes podem culpar por serem ‘irresponsáveis’ e ‘sem vergonha’. Quando as pessoas são desapropriadas e desumanizadas, elas se tornam vítimas fáceis de todos os tipos de caprichos. O sistema os abandona. A vida faz o mesmo. Eles estão em um beco sem saída de desastres e desespero. Este é o dilema dos negros nos Estados Unidos, e no Brasil também. A sociedade cínica paga para ter esses lares partidos e as multidões de homens negros na prisão. ‘Deixe eles aprenderem a se manter em seu lugar’, poderiam até entoar com orgulho! O indivíduo sozinho se sente muitas vezes perdido, sem orientação, em um deserto onde sua melhor jogada é se mover em círculos em vez de ir para a frente. O Poder e a Constituição estão comprometidos com um programa de dissipação e desintegração, incentivando as pessoas a agir sozinhas, com o pleno conhecimento de que eles vão falhar.

Angélica Basthi (Programa Rio Afro/Radio Nacional, Rio de Janeiro) – O senhor é a favor das ações afirmativas? Por quê? Que benefícios essas políticas serão capazes de trazer a médio e longo prazos para os/as negros/as num país com a característica brasileira?

F.O.-A. – Estou plenamente de acordo com as ações afirmativas porque é uma questão de corrigir erros, fazer as pazes, tentar melhorar uma situação que por muito tempo tem empurrado milhões de seres humanos para a parte de trás do ônibus e para a base da pirâmide devido à sua cor de pele ou raça. A situação do Brasil é um pouco mais complicada e complexa do que nos Estados Unidos, onde uma gota de sangue negro torna você ‘negro’, ‘mestiço’, ou uma ‘pessoa de cor’ ou afro-americana; no Brasil, você tem uma gama de terminologias para distinguir raça e tonalidades da cor, tanto que as pessoas têm sido incentivadas a se descreverem e a se definirem como gostam. Mas no fundo todos têm tentado ‘se limpar,’ mover para cima e fugir do que é negro. Preto não pode ser enfatizado, permanece na parte inferior e todos os outros tons e cores avançam, até que se chegue ao zênite, branco. Com ações afirmativas, talvez haja menos motivos para desejar ‘se limpar’; talvez haja mais auto-afirmação, com a autoestima mais presente na mente das pessoas. Talvez as vítimas reconheçam suas limitações e estejam mais dispostas a lutar por seus direitos. Certamente, as ações afirmativas contribuem para nivelar a igualdade social, econômica e política. Educação, serviços sociais, formação profissional, expectativas de vida… O objetivo é que esses programas já não sejam necessários no futuro; mas no presente eles são e devem ser implementados com integridade e diligência.

‘Racismo não conhece a cor do dinheiro’

Angélica Basthi – A associação do critério da competência às ações afirmativas é uma tentativa sutil de reforçar um estereótipo sobre o/a negro/a?

F.O.-A. – Sim, essas associações geralmente têm uma agenda oculta. Por enfatizar e realçar critérios de ‘competência’, elas desviam a atenção do essencial, que é a necessidade de melhorar a vida desses milhões esquecidos por muito tempo, mesmo que a sociedade moderna, desenvolvida, tenha sido construída através de seu sangue e suor. A genealogia de tais organizações é comum, global: conservadores de políticas entrincheiradas e promotores de perspectivas hegemônicas do estabelecimento exclusivista, que servem ao propósito de lançar um tamanco nas rodas do progresso. São táticas destinadas a atrasar, se não destruir, as ações.

Miro Nunes – Aqui no Brasil há uma frase tirada das ruas que diz: ‘…a longo prazo, todos (nós) estaremos mortos!’ Como precisamos resolver problemas nesta vida que temos aqui na Terra (à parte considerações de caráter religioso), que alternativas a população negra tem – sem contar com o conjunto de ações afirmativas e as reparações – para solucionar o problema da desigualdade material (econômica) que ela enfrenta há muitos e muitos e muitos anos?

F.O.-A. – Eu também me pergunto quando o nosso sofrimento vai acabar. Quando vamos alcançar a terra prometida que o falecido Martin Luther King Jr. disse que teríamos? A religião não é um truque novo. Milhões entre nós têm encontrado consolo na religião. Ela foi usada para capturar os corações e almas dos africanos por europeus que lhes deram a bíblia e roubaram as terras. Enquanto os africanos estavam orando e olhando para o céu em busca de Cristo, os invasores estavam ocupando, explorando a terra, suas riquezas e controlando suas mentes e suas matérias-primas. Tenho observado que, no Brasil, muitos estão na religião afro-orientada tradicional, mas é triste dizer que parecem ter sido aprisionados – estão no candomblé, não como fonte de resistência e libertação. Qualquer religião que não ajuda os seres humanos a serem livres e não estiver bem fundamentada em uma sociedade onde as pessoas cresçam, não vale a hora do dia. Também sejamos claros: as desigualdades econômicas não vão desaparecer da face da terra. Por um lado, os exploradores jogam duro, são resistentes e implacáveis e vão formular novas maneiras de manter o status quo. E mesmo que o problema econômico seja resolvido (como no caso dos burgueses negros), o problema não terá resolvido. Racismo não conhece a cor do dinheiro, só a cor da pele.

‘EUA têm oportunidade de mostrar sua face humana’

Ana Alakija – Muitos, como o professor Williams, preveem que o governo Obama será um desastre como o de Jimmy Carter. Sabemos que o presidente vem sofrendo pressões da sociedade para desregulamentar cada vez mais a economia. O senhor é autor de um livro que considera Obama como um fenômeno. Onde estabelecer as fronteiras entre sucesso/insucesso e incompetência/pressões políticas? ‘Ser negro’ é um fator preponderante?

F.O.-A. – Comparar o mandato da Obama a um desastre nos mesmos moldes do de Jimmy Carter é deliberadamente distorcer fatos históricos e forças sociais. Todas essas questões pelas quais Obama está sendo criticado e condenado e que ameaçam afundar o país e arruinar a sua administração – guerras, terrorismo, nevoeiro econômico… – vieram do passado, herdadas de Bush. Quantos não afirmam que ele simplesmente poderia lavar as mãos? Muitos críticos e detratores compatriotas deveriam estar na arena encarando os problemas como questões nacionais e não como ‘problemas de Obama’ – os republicanos e seus companheiros racistas e colaboradores de direita, como o Tea Party, cheio de ódio. Eles não conseguem ultrapassar o choque da vitória do Obama e farão qualquer coisa para certificar a falha de Obama e colocar isso nos livros de história em letras maiúsculas. É impressionante que, mais do que nunca, o câncer do racismo esteja comendo no núcleo da sociedade americana. O presidente está sendo vilipendiado porque ele é negro. Ele e sua esposa negra são comparados a macacos. Alguns até mesmo questionam a sua cidadania americana outros cunham ele de fundamentalista muçulmano e, portanto, ‘terrorista’. Ele é, de longe, o presidente mais desrespeitado na história do país. A batalha campal contra o ‘Obama comunista’ é um outro aspecto da investida sem escrúpulos. É tradição na América condenar o comunismo, a última escala do socialismo; comunista é um trapaceiro e criminoso, anti-democrata e traidor. Assistimos aos líderes das colônias africanas da Europa e neo-colônias serem taxados de comunistas. Um excelente exemplo é Patrice Lumumba [primeiro-ministro ] da República Democrática do Congo. Ele foi sumariamente assassinado por ser um comunista. Obama é um fenômeno porque conseguiu aglutinar em massa jovens e velhos, pretos e brancos, burgueses e proletários para virar a mesa do retrocesso e construir uma vitória com grande vantagem contra uma América racista; a raça de Obama, classe e cultura constituem um bônus de boas-vindas, não uma objeção às suas qualidades extraordinárias de inteligência e intelecto e integridade, sua graciosidade e generosidade, a despeito do ódio e da hipocrisia mais cruel. Sendo ele um presidente negro, os Estados Unidos têm uma oportunidade rara para mostrar sua face humana para o mundo, para ser verdadeiramente um líder da liberdade, do progresso e humanismo. Afro-americanos veem em Obama suas próprias possibilidades como seres humanos em uma sociedade construída sobre o racismo e que se recusa a abandonar a herança da opressão e repressão provenientes de raça e cor das pessoas. Obama simboliza o sucesso dos negros como seres humanos, bem como o potencial para o progresso real. O problema é que a sociedade americana ainda não está pronta para aceitar um presidente negro como líder de pleno direito, sem referência à sua raça como restrição. Os Estados Unidos simplesmente têm que acordar e maximizar o seu potencial se desejarem manter-se líderes mundiais.

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Membros das Comissões de Jornalistas pela Igualdade Racial dos Sindicatos de Jornalistas do Distrito Federal, Rio de Janeiro e Bahia, vinculadas à Comissão Nacional dos Jornalistas pela Igualdade Racial da Federação Nacional dos Jornalistas