Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cobertura multifacetada dos fatos

Os jornalistas formados no século 20 acostumaram-se a cobrir tragédias, desde as guerras mundiais até as catástrofes naturais ou as dramáticas faces dos atentados terroristas, dos embates ideológicos, da corrida armamentista, dos surtos psicóticos de criaturas que disparam contra seus pares, matando inocentes em escolas, shoppings, ruas, cidades, e ainda acidentes devastadores de trens, aviões, navios, um sem número de espetáculos dantescos, esmiuçados pela tecnologia das imagens e a presença arriscada dos cinegrafistas quase suicidas das grandes agências de notícias espalhadas pelo mundo todo.

Os tsunamis, de uns anos pra cá, já neste século 21, assumiram proporções detalhistas em coberturas que não somente são delineadas a partir das câmeras profissionais, mas, sobretudo com o advento das máquinas digitais, trouxeram para o alcance do cidadão comum a possibilidade de registro online, presencial e dramático, de momentos espantantosamente caóticos, num gesto ao mesmo tempo alucinado de cobrir para si, e para quem acessar tais imagens, cada instante de sobrevivência ou de morte de tantos sonhos humanos, da própria ilusão da segurança aparente que representa uma cidade construída em bases supostamente ‘sólidas’, com energia nuclear também supostamente ‘protegida’, como é o caso atual da explosão dos reatores da usina japonesa atingida pelos efeitos do grande terremoto que abalou o Japão nos últimos dias.

A partir daí, a cobertura multifacetada dos fatos, em efeito dominó, se multiplica de vídeos, via grandes redes de televisão e internet, infestando com efeitos mirabolantes o que é realidade e não é ficção, embora, em certos segundos, nós, enquanto espectadores viciados em cinema espetaculoso, possamos, como defesa emocional, pensar que tudo não passa de um grande roteiro hollywoodiano, prestes a vencer prêmios da academia americana que se esmera em conferir Oscars para a imaginação que traga vidas em projeções apocalípticas.

Um teste que desafia a humanidade

Mas, infelizmente, o que estamos presenciando, ao vivo e a cores, é verdade. Trata-se de uma realidade comovente, trágica, quase uma tragédia anunciada, tal o acúmulo do trabalho humano em torno de um ‘progresso’ conquistado pelo avanço das chamadas economias mundiais, ao custo insano de ausência regrada de limites suportáveis.

A terceira economia do mundo, o Japão, exemplo de país da superação, sofre, como nunca antes, uma provação acima da sua própria capacidade de entendimento e suporte, mas tenta, e certamente o conseguirá, minimizar efeitos ainda imprevisíveis da tragédia que sobre ele se abate, com riqueza de filmagens, transmissões, acompanhamento perplexo por parte do planeta inteiro, um verdadeiro reality show do caos natural e/ou industrial, além dos consequentes episódios de colapso econômico, social, incrível teste que desafia a humanidade para refletir sobre seus caminhos de progresso, competição, sobrevivência, solidariedade, ou mesmo o futuro de uma terra arrasada, cujo destino está nas mãos de um ser inteligente e pródigo, espécie animal atrevida, chamada humana, capaz de cobrir sua desdita filmando e fotografando, prisioneira que se encontra, do seu próprio mundo tecnológico.

Alguma coisa está fora da ordem

Os profissionais da comunicação que lá estão, não é novidade, se arriscam, na tentativa de esmiuçar a catástrofe como grande objeto de informação, estão no olho do furacão, do tsunami, do vazamento nuclear, do terremoto, do caos econômico, mas trabalham e informam, enviam via satélite para o mundo inteiro os testemunhos da dor de um povo e, como ondas gigantes, exacerbam a mente inconsciente e coletiva da humanidade com o reflexo de um espelho gigante onde é possível enxergar-se como um grande contingente de seres prisioneiros do próprio progresso, ou da própria ilusão do dito crescimento anti-ecológico, ou contrariamente sustentável.

Vejamos, esperemos, soframos, superemos, oremos, façamos o que for possível ou impossível para que a tragédia japonesa neste século 21 represente uma grande oportunidade de repensarmos não somente sua brilhante cobertura, a tal mídia globalizada online e de alcance total, mas sobretudo a cobertura do drama consciente de uma espécie acostumada e brigar por espaço, por índices, por números, por cotações, por exportações, por industrialização, por moedas fortes, enquanto ondas fortes invadem costas e sacodem os conceitos, cobrindo e descobrindo notícias que nos invadem almas e corações, mas, queiramos ou não, nos levam a refletir sobre a descoberta de um mundo que precisa se renovar, refreando ambição, talvez, ou reavaliando efeitos da ação do homem sobre a natureza terrestre. Vale lembrar Freud, em seu livro O mal estar na civilização, para que se complemente a cobertura da tragédia japonesa como desfecho para algo que só está começando, pois as informações não param de chegar e, no país do sol nascente, com milhares de anos de vida organizada, alguma coisa está fora da ordem, como na canção caetaneana…

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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ