A coluna de Alberto Dines é publicada, todo domingo, no Jornal do Commercio, daqui do Recife (ver aqui o mesmo texto, dado no Diário de S.Paulo]. Como recebo o jornal aos domingos, tenho a oportunidade de ler os comentários do jornalista, sempre muito pertinentes e, quase sempre, distanciados do alarde. O deste domingo, 20 de março, contudo, embora muito bem escrito – o que é normal – cai na vala comum do ativismo antinuclear. Não posso negar que o setor nuclear, ao longo dos anos, tem consistentemente disseminado duas ideias difíceis de conciliar: a de que lida com energias fantásticas, que precisam de toda forma ser contidas sob pena de uma catástrofe sem precedentes, e a de que suas instalações garantem integralmente essa contenção, o que evitará para sempre essa tragédia.
O que está acontecendo neste momento no Japão é mais uma resposta à segunda ideia: as instalações nucleares não são inexpugnáveis e, é óbvio, ninguém em seu juízo perfeito acreditaria nisso. E a primeira ideia também já foi respondida inúmeras vezes: as consequências da dispersão de materiais radioativos no ambiente são muito menores do que sustenta o imaginário popular.
Por que tememos tanto as radiações? Note o jornalista que a descoberta dos raios X, a primeira forma de radiação ionizante – definida aqui como radiação capaz de ionizar, ou dotar de carga elétrica, uma molécula de água – com a qual aprendemos a conviver, completou 115 anos, bem como a da radioatividade (que são coisas inteiramente distintas, apesar da crença generalizada no contrário). Desde então, um alentado corpo de conhecimento acerca da origem dessas radiações e seus efeitos foi amealhado. Teorias mirabolantes foram criadas. Muitas foram pulverizadas; outras se sustentaram.
Os testes de armas nucleares
Se eu quisesse resumir esse enorme conhecimento, diria o seguinte:
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Radiações ionizantes sempre existiram e continuarão a existir. Diante desse fato, todo o desenvolvimento do universo e, é claro, da Terra, teve a participação delas, inclusive o surgimento da vida.**
Somos, continuamente, alvos das radiações ionizantes (que incluem ondas, como é o caso de raios X e raios gama, partículas com carga elétrica, como as partículas alfa e beta, e partículas sem carga elétrica, como os nêutrons e os neutrinos). Elas se originam da biosfera (que contém e sempre conteve urânio, potássio, carbono-14 e outros materiais radioativos), do espaço (os famosos raios cósmicos) e das nossas atividades (radiografias, reatores nucleares). Em qualquer país, é bom frisar, a contribuição dessas atividades é minoritária.**
Os efeitos dessas radiações irão, obviamente, depender da intensidade da energia que elas depositarem em nossas células – o que se chama de dose – e do órgão afetado. Uma dose muito alta na mão poderá levar à sua amputação. No pâncreas, à morte. E, mesmo sem levar a amputações ou à morte, doses menores podem causar outros problemas, como o câncer.Diante disso – e se o prezado jornalista quiser confirmar com outras fontes, por favor, fique à vontade – cabe perguntar: em que diferem as radiações de outros agentes? Quantos pesticidas – que são letais em altas doses – são cancerígenos em pequenas? Quantos alimentos levam a doenças incuráveis? E quantos efeitos têm o fumo e o álcool? Nem o fato de ser invisível torna a radiação um agente original, pois os temidos vírus também o são. Com uma vantagem para a radiação: ela pode ser detectada facilmente, em tempo real.
Em que me baseio, com tanta certeza, ao afirmar que – ao contrário do que se propala – o mundo não tem a temer caso os reatores de Fukushima Daiichi não suportem? No simples fato de que já vivemos num ambiente muito mais carregado de radiação do que o atual. E não estou falando de Chernobyl, ou Three Mile Island, nem da Terra primitiva quando da aparição do homem. Estou falando dos testes de armas nucleares.
Césio-137 e estrôncio-90
Há um conceito totalmente equivocado, disseminado desde Hiroshima, de que o efeito devastador de uma arma nuclear provém de sua radiação (ionizante, bem entendido). De fato, no momento da explosão, é emitida uma grande quantidade de radiação, na forma especialmente de raios gama e nêutrons. Mas, uma análise feita a posteriori, tanto em Hiroshima quanto em Nagasaki, mostrou que, mesmo computados os óbitos ocorridos mais tarde, em função de câncer e doenças relacionadas a variadas doses de radiação, pelo menos 90% das mortes ocorreram em função da onda de choque (e esse é sempre o maior efeito de uma bomba) e do escorchante calor gerados na explosão.
Tanto a bomba de Hiroshima quanto a de Nagasaki tinham potência equivalente à de umas 12 mil toneladas de explosivo químico convencional. Se, num primeiro momento, só os americanos detinham o segredo das armas nucleares, em 1949 os soviéticos passaram a tê-lo. O jornalista Alberto Dines viveu essa época melhor do que eu. Certamente se lembra que os Estados Unidos, a terra da liberdade, da tolerância, do livre pensar, passaram a viver sob um regime de medo, de delações, de exílios. A ideia de uma ‘bomba comunista’ era demais para a sociedade americana. Se os russos conseguiram a bomba, alguém passou o segredo e, como tal, tinha de morrer. Os Rosenberg foram apenas as vítimas mais famosas dessa caça às bruxas. Inevitavelmente, foi disparada a corrida armamentista.
Em 1º de novembro de 1952, os americanos detonaram ‘Mike’, a primeira bomba H, mil vezes mais poderosa do que a de Hiroshima. Menos de um ano mais tarde, os soviéticos responderam com a sua. A essa altura, os ingleses já estavam na corrida. Até 1963, quando as três potências resolveram parar com os testes na atmosfera, o mundo assistiu a cerca de um milhar de detonações. Uma delas, em 30 de outubro de 1961, batizada de ‘Bomba do Czar’, equivaleu a 4.500 ‘hiroshimas’ (a impressionante fotografia dela está na internet). O resultado foi uma inédita contaminação radioativa. Em 1980, quando fazia meu mestrado no Canadá, determinei a quantidade de césio-137 depositada na província de Saskatchewan, onde morava. Vi, mais tarde, que fora 50 vezes superior à da cápsula que originou o acidente de Goiânia, em 1987. E Saskatchewan nem de perto foi a região mais afetada pelo fallout radioativo. Além disso, não ‘choveu’ apenas césio-137, mas coisas ainda mais sérias, como o estrôncio-90.
Automóveis e charretes
Durante anos, particularmente no hemisfério norte, consumiu-se leite, carne, trigo, água, com concentrações de isótopos radioativos (a propósito, falar em ‘elementos radioativos’ não faz muito sentido, pois todos o são) que hoje dariam arrepios nas agências ambientais, até as menos anti-nucleares. O que se podia fazer? Impedir seu consumo? Sendo esses materiais levados primariamente pelo ar, faria sentido pedir ao povo que parasse de respirar, até que a concentração de material radioativo caísse?
Meio século mais tarde, o mundo parece dar provas de que absorveu bem esse impacto. A expectativa de vida aumentou dramaticamente, a revolução verde fez com que países cronicamente desnutridos pudessem alimentar seus povos e parece evidente que, se há hoje mais casos de câncer, isso deve ser atribuído mais à longevidade e ao estilo de vida do que a esse excesso de radiação.
O jornalista Alberto Dines, mais experiente do que eu e com uma visão mais ampla que a minha, sabe muito bem que a espécie humana adora uma profecia e, quanto mais formidável, melhor. William Miller, um pastor americano, previu a volta do Cristo para 22 de outubro de 1844, com uma ‘limpeza pelo fogo’; o mundo ia ter seu fim de novo em 1910, porque o cometa Halley passaria muito perto da Terra; de 1999 para 2000 reinaria o caos, devido ao ‘bug do milênio’. E ainda tivemos a crise da vaca louca e a da gripe suína. É, parece que a resiliência da raça humana é bem maior do que nós pensávamos…
Tenho plena confiança de que logo os reatores de Fukushima Daiichi passarão para os cadernos de Economia dos jornais. Quanto será gasto para reativá-los? Valerá a pena? O natural e salutar oportunismo humano entrará em ação. O jornalista lembra-se, no filme O Dia Seguinte, que o carro de Jason Robards deixa de funcionar quando a arma nuclear explode? E lembra-se também que chegaram notícias de que os americanos, em função do filme, estavam comprando charretes? Pois é, os que promovem outras formas de geração de energia elétrica apresentarão seus planos. Acredite-me o jornalista, nenhuma delas, com a tecnologia de que dispomos, será tão boa, para geração em larga escala, como a nuclear (o mesmo vale para os automóveis em relação às charretes).
Subsídio isento
O que cada país fará após Fukushima é uma incógnita. Claro que os alemães, grandes vendedores de painéis fotovoltaicos e turbinas eólicas, preferem que o mundo abandone as usinas nucleares. Os franceses, que têm a melhor tecnologia nuclear, rezam para que isso não aconteça. De um jeito ou de outro, é muito arriscado tomar decisões de longo prazo num momento de crise. Quando Orville Wright caiu com seu avião em 1908, matando o passageiro que transportava, isso não representou o fim da aviação, nem os incontáveis acidentes aéreos que ocorreram desde então. O mesmo se pode dizer com relação ao Titanic. Devem então os japoneses banir seus reatores por causa dos terremotos? Quantas pessoas morreram, após o terremoto e o tsunami, em viadutos, navios, edifícios? Devem os japoneses bani-los também? Por que então eles não se mudam?
Se decisões pessoais são difíceis, o que dizer das que afetam uma nação inteira? O governante e seus assessores muitas vezes têm a solução para os problemas, mas só podem implementá-las com o apoio dos governados. A causa anti-nuclear é de fácil adesão, mas nunca é demais lembrar que, em passado não muito distante, foi fácil dirigir o povo contra a pasteurização, contra a vacinação, contra os judeus e até contra a Torre Eiffel. O povo tem uma tendência natural a dar sua resposta após ver todos os lados de uma questão, mas sempre valoriza muito o que diz a imprensa. O que se espera agora é que ela, de maneira isenta e francamente racional, dê ao povo o subsídio necessário neste caso.
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Professor de Física, Escola Politécnica de Pernambuco, Recife, PE