Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa morde e assopra

Não há evidências de que esteja em curso uma conspiração ianque para derrubar o presidente esquerdista eleito pelos brasileiros em 2002, como aconteceu no Chile em 11 de setembro de 1973. Nem mesmo se pode crer numa conjunção de forças nacionais reacionárias, organizadas para minar a credibilidade do governo petista, às vésperas do lançamento da campanha eleitoral nos municípios.

Luiz Inácio Lula da Silva não é Salvador Allende – nem chega a ser socialista – e o repórter William Larry Rohter Junior, correspondente do New York Times, está mais para Jayson Blair do que para Carlos Lacerda. Mas há, sim, sinais de que velhos preconceitos vêm borbulhando nas redações e ilhas de edição pelo país afora, como uma onda que tenta se erguer contra a maré de interesses que tem até aqui mantido a imprensa mais ou menos condescendente com o estilo, e eventualmente entusiasmada com o programa do governo petista.

O episódio da pífia ‘reportagem’ de Larry Rohter sobre a suposta preocupação dos brasileiros com uma possível dificuldade de governar do presidente da República devido a ingestão de bebidas alcoólicas revela uma imprensa ciosa de sua liberdade, mas também cautelosa quanto às relações com um governo que é candidato a prover a salvação para os problemas financeiros que abalam a maioria das empresas de comunicação do país.

Depois de uma semana em que boa parte dos brasileiros se sentiu constrangida entre a exposição vexatória de seu presidente e a reação atabalhoada e inconveniente do governo, o final feliz alcançado na sexta-feira (14/5), com um pedido de desculpas implícito por parte do jornalista e o recuo do Planalto, fica a sensação de que a imprensa anda pisando em ovos.

Diatribes notórias

Uma imprensa assim cautelosa pode ser um sinal de maturidade. Mas também pode sugerir que as decisões de edição andam atreladas à preocupação residual de manter sob controle tudo que possa afetar o humor do governo. Em dias de ciclotimia nacional, as manchetes se dividiram entre o bom desempenho da economia real, as turbulências entre o câmbio e o mercado de ações e a preocupação com a imagem externa do Brasil.

A reação grotesca do presidente à provocação de Rohter é desses episódios que fazem mais fácil a vida dos analistas políticos, pela ampla gama de possibilidades – o que permite encaixar com naturalidade quantas premissas, tendências ou convicções possam se dissimular no variado espectro ideológico que compõe a chamada inteligência que tem acesso à mídia. A sutileza está no modo como o noticiário tende a reproduzir esse estado de esquizofrenia que parece haver tomado a imprensa nacional, que age como alguém que se vê obrigado a aplaudir o desempenho de um artista que, no fundo, detesta.

Porque, no frigir dos ovos, noventa e nove entre cem dirigentes da mídia prefeririam ter no governo uma figura mais palatável, mais ao gosto burguês do que o metalúrgico que se fez presidente. Quando esse intruso no poder encaminha a economia pelas vias da cautela, abrindo fraturas entre correligionários que sonhavam com a revolução socialista, a mídia o aplaude e execra a infantilidade esquerdista dos dissidentes. Mas quando o presidente veste o macacão e deixa de lado os protocolos e injunções do cargo, sobe à tona toda carga de preconceitos que se esconde sob as conveniências, e a senadora Heloísa Helena é promovida de sua juvenilidade ideológica para o panteão das opiniões relevantes. Ganha até mesmo palanque para lançar-se candidata à sucessão de seu ex-líder.

Não que o presidente não tenha facilitado as coisas para seus adversários. Já muito se disse e muito ainda se pode dizer para consolidar a atitude de expulsar o jornalista do New York Times na lista das grandes trapalhadas da República. Também contribui, como tempero para o tosco movimento político do governo, a arrogância com que os porta-vozes do Planalto tentaram justificar o injustificável.

Há mais de quatro meses se sabia, no círculo de assessores mais próximos do presidente, que um ruidoso integrante do PSDB paulista vinha alimentando colunistas e outros formadores de opinião com histórias de bebedeiras supostamente protagonizadas por Lula. Nem o autor das intrigas conta com grande credibilidade, nem as histórias, contadas em tom de anedota, faziam maior estrago do que o dano que se espera das fofocas, até que o autor da corrente de maledicência conseguiu emplacar uma nota numa coluna do Jornal do Brasil e, em seguida, na revista Veja.

A nota da colunista Ana Maria Tahan, sugerindo que o atual governo poderia ser qualificado como a República da Cachaça, teve a repercussão correspondente à parte que toca ao JB no mercado de jornais. Portanto, ninguém se coçou no governo.

O comentário de Diogo Mainardi na Veja também não provocou maiores comoções, talvez porque falte credibilidade ao jovem provocador, de resto mais conhecido por suas diatribes do que por qualquer qualificação maior como observador da sociedade. Ademais, é ele o autor de um livreto de ficção sobre a peste no Nordeste, cuja leitura representa uma lição exemplar de como certa casta de bem-nascidos e mal-educados do sul do país enxerga os nordestinos.

Fontes falantes

Com certeza, pesou na decisão emocional do presidente de expulsar o jornalista Larry Rohter o fato de o correspondente do New York Times ter em ocasiões anteriores feito destilar certos pressupostos negativos contra ele.

Antes mesmo de ser eleito, quando as pesquisas davam como certa sua vitória, um artigo de Rohter afirmando que Lula era uma espécie de Allende dissimulado fez grandes estragos nos esforços do grupo que trabalhava para conter a maré de desconfiança do mercado internacional diante do iminente triunfo petista. Rohter também foi acusado de flertar com o realismo fantástico ao relatar um suposto movimento pela independência da Patagônia argentina e é citado por haver produzido ‘reportagens’ na Venezuela com base em noticiários radiofônicos que, por dificuldades com o idioma, não conseguiu interpretar corretamente.

A decisão do governo brasileiro de expulsá-lo acaba ajudando a ocultar a evidente leviandade com que Rohter tratou também a suposta dificuldade do presidente com bebidas alcoólicas. Ao vestir a camiseta do João Ferrador – personagem criado pelo cartunista Laerte para as campanhas do sindicato dos metalúrgicos do ABC –, Lula abandonou alguns dos pressupostos do cargo a que foi erigido. Entre eles, o necessário distanciamento entre aborrecimentos pessoais e as questões de Estado.

Não foi suficiente a ponderação de seu assessor de imprensa, o jornalista Ricardo Kotscho – pesou mais a opinião do ex-bancário e ex-deputado federal Luiz Gushiken, que, travestido de samurai, fez prevalecer a decisão de cancelar o visto do correspondente. Gushiken já havia dado demonstração de sua pouca habilidade para lidar com a imprensa quando, numa reunião com jornalistas, defendeu a tese da ‘agenda positiva’ como pressuposto para a cobertura do Planalto.

Patinando teimosamente na ampla e avassaladora repercussão negativa da decisão, o governo petista teve de engolir o habeas-corpus concedido a Larry Rohter pelo ministro Francisco Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça, e agarrou-se sexta-feira à bóia lançada pelo diretor-executivo do New York Times, William Keller, que se dispôs a levar o conselho de editorialistas do jornal para ouvir as queixas do presidente, durante sua visita aos Estados Unidos, prevista para o mês que vem. Mas qualquer possibilidade de retratação ou pedido de desculpas foi descartada. No fim, a iniciativa de Rohter, estimulada por seus editores e por um colega correspondente no Rio de Janeiro, de declarar por escrito que não tivera intenção de ofender o presidente, deu ao governo a deixa para suspender sua expulsão e assim evitar a concretização do que foi considerado fora do Planalto, quase com unanimidade, como uma arbitrariedade.

Assim, o que era uma evidente leviandade de um jornalista apressado havia evoluído para, como disseram analistas citados pelo Financial Times, um incidente diplomático, e no fim das contas vai acabar enriquecendo o imenso anedotário das relações entre a imprensa e o poder no Brasil. Correligionários do presidente, que até a véspera fugiam da imprensa no Congresso, para evitar o constrangimento de ter de defender a medida arbitrária, estavam falantes nos telejornais que encerraram a semana.

Pauta vencida

Convém lembrar que a trapalhada se deu na mesma semana em que a pesquisa CNT-Sensus divulgava os primeiros sinais positivos na avaliação pública do governo Lula desde a revelação do caso Waldomiro Diniz. Segundo a consulta, realizada em maio, 56,9% dos entrevistados ainda tinham boa expectativa em relação ao governo, índice que apontava uma interrupção na escalada de descrédito iniciada em outubro de 2003.

Para a imprensa nacional, não poderia haver pior circunstância. Uma semana depois de ter ouvido do presidente do BNDES a notícia de que algum alento será dado às combalidas contas das empresas de mídia, os editores se vêem atirados à obrigação de condenar uma decisão do governo num campo distante do terreno minado em que se transformou a economia, e justo na areia movediça da liberdade de imprensa. Poupou-se o que foi possível e, na medida da elegância requerida, as maiores críticas foram creditadas a outras fontes, reservando-se os editoriais para reparos contidos e aconselhamentos pressurosos.

Mas a trégua tem uma base frágil, e as decisões de edição parecem estreitamente vinculadas ao calendário eleitoral. Na quinta-feira, dia 13, o tema da expulsão de Larry Rohter era motivo de júbilo entre os tucanos que lotavam o Salão Nobre da Câmara Municipal de São Paulo, para o lançamento da candidatura do ex-ministro José Serra à prefeitura da capital. Com o espírito prático que caracteriza as raposas da política, um aguerrido senador do PSDB comentava, lamentando, que a imprensa estava sendo condescendente com o presidente da República. ‘Pena que ainda estamos em 2004!’, suspirou.

Na tarde de sexta-feira, a imprensa comemorava o final feliz. Na maioria dos telejornais e nos sites noticiosos, o clima era de pauta vencida. Até a próxima crise.

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Jornalista