Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A exploração da cultura popular brasileira

No Manifesto Comunista, de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels descreveram o movimento do capital como objetivo e inflexível. Relevante para o capital é a reprodução inexorável de si mesmo, razão pela qual a tudo sanguessuga e, como um parasita, em seguida joga fora, sem piedade, sem cooperação, sem amizade, sem, inclusive, sistema de parentesco, se este o obstaculiza.

Sob o domínio do capital, a História mesma é sua fiel serva, sua prostituta, de modo que a si mesma se oferece, entregando seus povos como banquete para sua tara sem fim em relação a coletivas vitalidades, trabalhos, desejos, imaginação, cultura, criatividades. Tudo para engordá-lo, para transformá-lo em uma pirâmide de tipo Ponzi de sua própria civilização: a civilização do capital como pirâmide que vive de submeter, explorar, saquear, corromper e matar tudo que está abaixo, de modo que quanto mais abaixo, nessa pirâmide, mais saqueado se torna; e mais roubado, mais humilhado, mais assassinado, inflexivelmente, objetivamente.

Embora, por sua vez, o capital tenha uma objetividade que varia estrategicamente em consonância com as circunstâncias históricas, ele possui um rosto imutável, invariável, trans-histórico, a saber: é branco (na verdade tem sido), patriarcal, inflexível, determinado, ameaçador, violento, despótico, ditatorial, possessivo. E porque o centro do capital, o centro imperialista, descola-se no espaço e no tempo, o único traço que pode variar do fixo rosto inflexível do capital é o étnico, razão pela qual, hoje, tem gradativamente deixado de ser branco para fazer-se amarelo, com o atual descolamento do capital de rosto branco anglo-saxão para a China.

O patriarcado individualizado

E por ser fundamental, imutável e invariável, é possível afirmar que o movimento inflexível do capital é seu próprio rosto naturalizado, tornado essencial, razão pela qual é praticamente impossível questionar sua busca desenfreada de mais-valia, de autovalorização, de lucro. O lucro-propriedade privada é o rosto duro-macho do capital, o tabu que ninguém pode questionar se não quiser ser taxado de anacrônico, estúpido, simplista, ignorante, ilegal, amoral, terrorista. É por isso que, nas civilizações do capital, o sistema jurídico, por mais avançado que seja, não pode variar o rosto de seu duro núcleo machista-belicista, com suas propriedades privadas individuais, empresariais, multinacionais, estatais, monopolistas, oligopolistas. É também por isso que qualquer revolução que não ponha em xeque, em seu ato ou em processo, o duro núcleo do rosto machista do determinismo do lucro do capital não pode ser efetivamente uma revolução sistêmica.

No atual estágio civilizatório do capital, designado como capitalismo tardio, uma curiosa e perspicaz metamorfose pode ser objetivamente observável: o capital desencarna de seu rosto branco, machista e patriarcal e produz estranhos tipos híbridos, aos quais chamo de patriarcado ou machismo difuso, ou branco difuso, ou terrorista difuso, ou conservadorismo difuso, ou imperialismo difuso, ou ditadura difusa e assim por diante. E difuso porque espertamente o capital, hoje, não precisa do macho, branco, conservador, possessivo, duro, em pessoa, João, Joaquim, para encarnar seu rosto duro, visualizá-lo, pô-lo em ação, uma vez que a mulher pode ocupar esse papel, assim como o homossexual, assim como o negro, índio, árabe, amarelo.

É por isso que o estilo americano da global juventude classe mediana contemporânea é o do porra-louca conservador ou porra-louca reacionário, pois, embora se vista e se apresente com o rosto da variabilidade, da musicalidade, da alegria, da sensualidade, da loucura e plasticidade, tem no geral um comportamento reacionário, objetivamente direcionado a estar a serviço da mais-valia do capital: logo, a serviço de seu duro rosto inflexível, invariável, possessivo, patriarcal. Se algo, nesse sentido, está em crise, hoje, esse algo, infelizmente, não é o patriarcado, mas o patriarcado individualizado – encarnado no macho da espécie: João, Joaquim, Pedro.

O poder do imperialismo americano

Vivemos, assim, sob a égide do capital de patriarcal-despótico núcleo difuso, de tal modo que a mulher é o tempo todo instigada – quando a questão é a de produzir mais-valia, concentração de riquezas, propriedades privadas – a ser mais homem que o homem; e assim o homossexual, o negro, o índio. O capital sanguessuga as potências flexíveis, variáveis, plásticas, corporais, criativas e sensuais, a fim de usá-las estrategicamente para continuar impondo seu núcleo duro, patriarcal, machista, branco. É por isso que por todo o lado do planeta a violência de gênero não diminui, mas aumenta; assim como a violência étnica, que só faz crescer. É a prova cabal da persistência do núcleo machista, patriarcal, branco no coração do capital, ainda que sejamos o tempo todo apanhados por publicidades teóricas e ficcionais que nos dizem o contrário.

E o epicentro dessa máquina social de produzir machistas publicidades difusas, não resta dúvida, é a cultura de massa, é a mídia; é, antes de tudo, a televisão, por seu alcance planetário, popular, massificado. O duro controle oligopolista-monopolista sobre as mídias globais funciona e se explica precisamente para que haja garantia explícita de que venha a estar a serviço da produção do conservadorismo e obscurantismo difusos, razão pela qual qualquer tentativa de propor a democratização desse duro núcleo patriarcal – geralmente o controle é familiar-patriarcal – é imediatamente acusada de ser autoritária, antidemocrático e desfavorável à liberdade de expressão, a qual, bem entendido, nada mais é que a liberdade para o patriarcal, machista e despótico rosto do capital continuar atuando, sem limites, contra todos os limites que interessam: o limite ambiental, da justiça, do cuidado com a infância, da vida, enfim.

No Brasil, a TV Globo é o canal de televisão que melhor representa o duro jogo difuso entre o núcleo patriarcal-possessivo e a variabilidade ‘não machista’ daqueles perfis que supostamente não possuem capital, pois constitui um canal de televisão em que os dois lados da moeda são indistinguíveis, um é outro, de tal sorte que quanto mais seu sistema de aparência se apresenta como plástico, despojado, feminino, popular, jovem, gay, mais é patriarcal, mais é machista, mais é preconceituoso, mais é despótico, mais está a serviço do epicentro bélico-masculino do poder global: o poder do imperialismo americano.

Opressão machista e patriarcal

E é aí que entra o papel desempenhado pela chamada cultura popular e sua exploração antes de tudo econômica pela TV Globo, que a transforma em mercadoria a pretexto de a estar apresentando como força viva do imaginário do povo brasileiro. Faz parte do objetivo negócio! Por outro lado, além da exploração econômica propriamente dita, a cultura popular, especialmente depois que a TV Globo perdeu as três últimas eleições para presidente, está sendo incorporada em sua grade a fim de cumprir dois objetivos intercalados:

  1. A TV Globo perdeu as três últimas eleições para presidente da República. Por mais absurda que pareça essa afirmação, é óbvio que a Globo é um clandestino partido político, pois, diante da caricatura do núcleo rosto machista da direita brasileira, ela, como o lugar da difusão de cooptadas plasticidades não patriarcais, é que tem cumprido o papel de substituir/representar a caricatural dura direita brasileira. A cultura popular na atual grade da TV Globo serve ao propósito de se aproximar do povo brasileiro, a fim de ‘reconquistá-lo’, seduzi-lo e induzi-lo a votar no candidato da machista, preconceituosa e inflexível direita brasileira, da e na próxima eleição para presidente da República.
  2. Ao mesmo tempo em que a exploração de estereotipados aspectos da cultura popular brasileira é incorporada pela nova grade de programação da TV Globo – com o objetivo de seduzir/induzir a votar nos candidatos aureolados por ela –, ela utiliza essa programação para procurar domesticar a cultura popular, reforçando preconceitos, clichês e, antes de tudo, a despolitizando, posto que fatalmente as questões econômicas, como as ligadas às causas da pobreza de nossa população, nunca serão focadas, razão pela qual a cultura popular aparece e aparecerá como alegre, alienada, sensual, ‘criativa’, mas nunca insubmissa, consciente e coletivamente convocada a mudar seu destino de humilhada, despojada, roubada, submetida, excluída.

É esse duplo objetivo que cumpre um programa como Esquenta!, protagonizado pela atriz e apresentadora Regina Casé: o de se aproximar da população brasileira, com demagogias de desinteressadas promoções da cultura popular, com vistas à próxima eleição à Presidência do Brasil; e ao mesmo tempo o de apresentar a cultura popular de forma despolitizada, a serviço da Casa Grande, da concentração de riquezas, do duro rosto machista da opressão de classe. Regina Casé, sob esse ponto de vista, é a própria encarnação popular de um machismo difuso, falsamente libertário, despojado e sem preconceitos sexuais, étnicos e de classe, pela simples razão de que, no fundo e no raso, todo o seu suposto despojamento popular está a serviço da pior forma de opressão machista e patriarcal, que é a que mantém o rígido controle do bárbaro sistema de concentração de renda do Brasil.

Farsa apoteótica da dominação de classe

A apresentadora de Esquenta! – sabendo ou não – cumpre o papel de culturalizar a pobreza. A estratégia de fundo de seu novo programa, portanto, é esta: a pobreza não é consequência de uma história injusta, de opressão de classe, mas de cultura, de estilo de vida. Ser pobre é lindo! – desde que ela não seja pobre, é claro. É por isso que um curioso cinismo espontâneo prevalece num programa como Esquenta!, pois nele a cultura popular é cinicamente manipulada, tendo em vista três aspectos: 1) é manipulada para ser apresentada como um alegre museu vivo do estereótipo do pobre como sujeito sexual, no lugar de um sujeito político; 2) é manipulada porque a suposta simpatia para com a cultura popular só vale ali, no programa, com sorrisos, tapinhas nas costas, para terminar com a extrema indiferença em relação à história pessoal, – de pobreza e dificuldades de toda sorte – que vive boa parte daquelas pessoas que aparecem ali, com exceção, é claro, daquelas já consagradas, por já possuírem capital midiático;3) é, por fim, manipulada para projetar ainda mais quem já tem prestígio e capital midiáticos, razão pela qual a cultura popular serve de suporte, de pretexto, para projetar e dilatar a fama dos já famosos, principalmente atores, atrizes, músicos, empresários do próprio mundo midiático – mas não apenas –, jornalistas e muito especialmente modelos anoréxicas nacionais e internacionais, ao mesmo tempo em que os apresenta como a encarnação hipocritamente variável do respeito às diferenças, na suposição de que tais ungidos midiáticos seres sejam eles mesmos o rosto para inglês ver de uma cultura popular brasileira multicultural, na qual e através da qual pobres, anônimos, ricos e famosos se abraçam e dançam alegremente o carnaval de suas falências, mentiras, oportunismos, dilatando, dessa forma, o mito de que o Brasil é um país sem conflitos de classes, onde cada qual ocupa alegremente o seu lugar na história: o pobre na favela e o rico em condomínios fechados.

Como uma antropofagia às avessas, Regina Casé cumpre, portanto, esse deplorável papel de aproximar simbolicamente o invariável núcleo do rosto machista e eurocêntrico das classes dominantes brasileiras à variabilidade teatralizada da cultura popular, transformada, no seu Esquenta!, num literal esquenta o rendido e vendido corpo de um alienado setor massificado da cultura popular brasileira, porque o grande falo despótico branco e patriarcal está pronto para o estupro de tudo que pode fazer do mundo uma variabilidade sem fim de justiça, de liberdade e de alegria, de, enfim, cordéis encantados e entrelaçados por revolucionárias culturas de carnavais de liberdade, porque sem opressão de classe, porque não aceita e nem pode aceitar ser trampolim para a trapaça do rosto patriarcal e preconceituoso de nossas elites econômico-midiáticas.

O programa Esquenta! é, assim, o trampolim popular-massificado ou a costela de Adão da comissão de frente do racista e plutocrata rosto de nossas oportunistas classes parasitárias, a dançar o cinismo carnavalesco de sua dominação capital. Tudo como uma objetiva e inflexível questão de capital, de exploração econômica, pois tudo pode produzir valor, concentração de riqueza e fama, inclusive e antes de tudo a cultura popular como farsa apoteótica da dominação de classe.

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Poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo