Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O discurso punitivo da mídia e o ‘Estado Jano’

O atual processo de criminalização da pobreza em nosso país e suas relações com o discurso midiático hegemônico e com os direitos fundamentais surgiram como razões especiais para a realização da pesquisa que originou o presente artigo. Assim, procuramos estabelecer uma análise histórico-dialética dos avanços e recuos na evolução dos direitos humanos, notadamente num contexto marcado pela paranoia do medo da violência, superdimensionada, por sua vez, pelos mass media e pelo emprego eleitoreiro do direito penal.

Diariamente observamos a veiculação pelos meios de comunicação de massa de fatos que indicam o avanço da criminalidade no Brasil e a incapacidade do Estado em prover segurança pública de qualidade para a população. A mídia não apenas relata a falência estatal e o aumento da criminalidade, mas tende a reduzir esta a um significado totalizador, como, por exemplo, moradores da periferia. Esses personagens, identificados com o homo criminalis, antítese do homem moderno que foi alçado ao patamar supremo da cultura, carregam sobre seus corpos o estigma de que representam o mal da sociedade e de que colocam em perigo a segurança, uma das mais importantes promessas da modernidade.

Assim, mediante um discurso punitivo, elaborado a partir de um olhar sobre o mundo e os fenômenos sociais desde a perspectiva dos aparelhos repressivos, a mídia constrói ‘verdades’ e demonstra a necessidade de maior repressão – sobretudo contra os setores socialmente desfavorecidos – como solução para o problema da criminalidade.

A consolidação da subcidadania

Em virtude de sua credibilidade perante grande parte da população, a mídia passa a servir como uma espécie de guia da opinião pública e faz da ‘guerra contra os bandidos’ – quase sempre provenientes dos estratos inferiores da sociedade – o caminho mais adequado para o ‘combate à violência’, restringindo, equivocadamente, o conceito de violência aos crimes violentos.

Com a sacralização da segurança – direito elevado à condição de verdadeira obsessão nas sociedades ocidentais contemporâneas – e a disseminação de um sentimento de insegurança permanente, surgem oportunidades para a adoção de práticas punitivas extremamente arbitrárias e inconstitucionais por parte do Estado, legitimadas por um discurso que justifica a profanação da vida, o critério-fonte de todos os direitos.

Formulado a partir de alguns mitos assimilados pela sociedade brasileira, tal discurso pugna pelo controle e segregação dos grupos subalternos, ‘bodes expiatórios’ de uma sociedade de consumo que descarta aqueles que não possuem o status de consumidor, equivalente, na atualidade, à condição de cidadão.

Além de fortalecer a seletividade do sistema penal, o discurso midiático dominante tem atuado como um instrumento de consolidação da subcidadania [sobre o tema, conferir: SOUZA, Jessé de. A construção social da subcidadania. Belo Horizonte: UFMG, 2006]. Não obstante a minoria da população brasileira desfrute os prazeres da pós-modernidade e exerça plenamente grande parte de seus direitos, a maioria dos brasileiros continua vivendo os dissabores da pré-modernidade, destituída de seus direitos e garantias mais básicos.

O Estado protetor e o Estado predador

Em países periféricos como o Brasil, marcados pela desigualdade e por políticas excludentes, observamos a ascensão de um fenômeno semelhante ao que Boaventura de Sousa Santos denomina ‘fascismo social’ [SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008, p. 333], consequência da crise do contrato social e um dos muitos exemplos de que a modernidade não logrou sucesso na implementação de suas promessas.

Embora a Constituição Federal de 1988 consagre a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito e indique como um de seus objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e da marginalização, as agências de comunicação social, por meio do discurso hegemônico, legitimam o atual processo de criminalização da pobreza, ampliando a exclusão e a violação de inúmeros direitos fundamentais.

O ‘fascismo do apartheid social’, isto é, a ‘segregação social dos excluídos através de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas [ibid, p. 334]’, configura uma das quatro formas do fascismo social e favorece a identificação do crime com os ‘desclassificados’ (sempre locais) ou, o que vem a dar praticamente no mesmo, a criminalização da pobreza [BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. São Paulo: Jorge Zahar, 1998, p. 134].

Nas zonas civilizadas, o Estado mostra uma de suas duas faces e age democraticamente, como Estado protetor, embora muitas vezes ineficaz ou não confiável, enquanto nas zonas selvagens revela sua faceta mais sombria e atua fascisticamente, como Estado predador, sem qualquer observância, mesmo aparente, do direito.

A proteção dos bens jurídicos mais relevantes

Apesar de inexistir um modelo histórico perfeito de Estado de direito, não passando este de uma barreira a conter o Estado de polícia que sobrevive em seu interior [ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 41], observamos diariamente a edificação do ‘Estado Jano’, paradigma que serve à classe hegemônica por meio do sistema penal, preservando relações de poder extremamente desiguais sob a máscara da igualdade formal.

Nesse contexto de clara delimitação de espaços, os meios de comunicação de massa voltam-se então para as zonas selvagens e o foco do controle social penal se desloca das chamadas ‘classes perigosas’ para os excluídos, reforçando, por conseguinte, a seletividade do sistema penal, levada a cabo por meio do processo seletivo de criminalização [ZAFFARONI, E. R. et al. Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 43].

Em uma sociedade notória por desigualdades que se fortalecem com o avanço do modo de produção capitalista, o sistema penal atinge principalmente as formas de desvios típicos dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados, preservando da criminalização as ações anti-sociais realizadas por pessoas das classes hegemônicas. A este processo de seleção atribui-se o que chamamos de seletividade penal, negação radical do mito do direito penal como direito igual, mito este que está na base da ideologia dominante.

Cumpre salientar que a seleção criminalizadora não se refere somente ao direito penal abstrato – criminalização primária –, mas também à criminalização secundária que se realiza por meio da persecução penal.

Apesar do discurso oficial – reproduzido pela mídia – limitar-se a (re)afirmar as funções ‘declaradas’ ou ‘manifestas’ do direito penal, isto é, a proteção dos bens jurídicos mais relevantes para o convívio social, as funções ‘ocultas’ podem ser reconhecidas como as reais funções do direito penal, consubstanciadas no processo de criminalização a que nos referimos, capaz de garantir a ‘existência e a reprodução da realidade social desigual das sociedades contemporâneas [BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 171].

A emergência do apartheid social

Consequência da assunção do discurso oficial que criminaliza a desigualdade social, o encarceramento, principal componente da política de contenção repressiva dos pobres, amplia o estigma criado em relação às populações marginalizadas e propicia a substituição do Estado de Bem-Estar Social por um verdadeiro Estado penal [WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: ICC/Revan, 2000, p. 28], versão pós-moderna do Estado policial de Christian Wolf, um Estado que, a pretexto de reforçar os laços de autoridade e consolidar o poder, se pôs acima do direito.

Enquanto o Estado policial do século 18 justificava, teoricamente, o solapamento das liberdades humanas no bem-estar do próprio indivíduo, o Estado contemporâneo invoca a sociedade para legitimar os seus atos. Não obstante as diferenças entre ambos os paradigmas estatais em comento, suas semelhanças servem de alerta e realçam a necessidade de se (re)pensar os direitos fundamentais no cenário atual.

A expansão da criminalização da pobreza em nosso país não apenas amplia a exclusão e a desigualdade, mas impede a concretização da cidadania e a efetividade dos direitos fundamentais, compreendidos por Perez Luño como aqueles direitos humanos reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de um determinado Estado [PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 5ª ed., Madrid: Ed. Tecnos, 2005, p. 41].

Por derradeiro, constatamos por meio da investigação em tela que no Brasil o ‘fascismo social’ tem se propagado com maior intensidade. Nesse contexto, onde a globalização hegemônica neoliberal encontra-se consolidada, é notório o aumento dos níveis de desemprego entre os trabalhadores não qualificados, a redução de salários e direitos trabalhistas, bem como a ampliação dos níveis de concentração de renda e a acentuação do fosso entre os ganhos das várias categorias de trabalhadores, condições estas que propiciam a emergência do apartheid social.

O mito da segurança

Com a criminalização cada vez maior de condutas atribuídas, em regra, aos grupos socialmente alijados, concomitantemente ao processo de criminalização secundária, verificamos a reprodução da realidade social desigual, função real (e oculta) do direito penal nas sociedades contemporâneas.

Se a vida é a gênese de todos os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República, como justificar, na prática, a morte de tantos em prol da (sensação de) segurança de tão poucos? Para que a condenação e a execução do ‘outro’ seja aceitável, antes é necessário desumanizá-lo, ‘coisificá-lo’, transformá-lo em uma espécie de homo sacer, cuja vida é matável e insacrificável [AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 91].

Ilusoriamente, o crime permanece localizado na figura do bandido, identificado com o ‘outro’ que, por sua vez, tende a ser o pobre, violento por natureza, membro de uma sociedade que ele está ajudando a desintegrar e que, portanto, necessita de práticas punitivas mais severas para salvaguardar a ordem e propiciar a segurança.

Entre mitos e ritos, observamos na TV, nos jornais, na internet, enfim, nos mais variados meios de comunicação, a criminalização da miséria e a violação de direitos fundamentais dos grupos mais vulneráveis e as aceitamos passivamente, como se fossem imprescindíveis para restaurar a normalidade.

O discurso dominante sustenta estarmos diante de uma guerra que só será vencida com o recrudescimento das leis penais e com a eliminação dos ‘inimigos’ por meio de uma intervenção penal cada vez mais violenta. Assim, enquanto muitos tentam sobreviver, a vida é profanada diariamente em um ritual sustentado pelo mito da segurança, posta em um altar que, todavia, é um local sagrado, onde poucos podem ter acesso.

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Respectivamente, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (FDV), graduado em Direito e Comunicação Social, professor de Ciências Criminais nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da FDV, professor convidado da Escola Superior da Advocacia (ESA/ES) e professor de Direito Penal e Direito Processual Penal em cursos preparatórios para carreiras jurídicas; e pós-doutor em Filosofia Política, doutor em Filosofia (Instituto Santo Anselmo, Roma, Itália), mestre em Sociologia Política (Escola de Sociologia e Política de São Paulo) e professor de Filosofia do Direito no mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV)