Recorro a Drummond quando de sua crônica sobre o verão: ‘Peço aos cronistas deixar um pouco de Obama, também quero comentá-lo’. Assistiu-se, nesses últimos dias, a loas desenfreadas da velha mídia hegemônica em júbilo pela vinda do primeiro presidente negro norte-americano à sétima economia mundial, governada agora por uma mulher, também pela primeira vez. Em fotos e vídeos, a ‘primeira família’ norte-americana foi dissecada em gestos e sorrisos, frequentes e distribuídos a granel, seja no Palácio da Alvorada ou na comunidade da Cidade de Deus, durante visita ao centro de referência da juventude, enlouquecendo os repórteres que acompanhavam o presidente estadunidense como um personagem televisivo, de quem se esperam sorrisos e acenos, mas cuja presença não visa a modificar o cenário econômico mundial.
O fato é que Obama funciona na mídia de forma única, seus gestos simpáticos conquistando gregos e troianos em território brasileiro. Não se trata de mera celebridade, entretanto, mas de um chefe de Estado cuja presença em solo nacional guarda mais importância e significados do que podem demonstrar os editores de grandes veículos de comunicação. Nada ou quase nada foi falado sobre os acordos comerciais a serem firmados ou sobre o detalhe que passara despercebido a olhos críticos, de que Obama ordenou os ataques à Líbia do Brasil. Só um absurdo teor de ingenuidade leva a crer tratar-se de ação impulsiva, dadas as circunstâncias e ao fato de levar-se a crer pela mídia que o presidente norte-americano se sentia em casa para assim proceder. Assim muito o quiseram: todas as autoridades presentes ao evento, governador e prefeito carioca em destaque, sob o coro da mídia, repetindo em pautas e produções o gesto do presidente da UDN, Otávio Mangabeira, em 1946, ao general Eisenhower.
O ataque à Líbia
Por todo lado, cidadãos empolgados descreviam de que forma saudariam o presidente Obama. Com faixas, comidas típicas e até um futebol amigo, sugestão aceita pelo próprio, no que resultou na foto reproduzida largamente pela imprensa: o mandatário do dito país mais poderoso do mundo divertindo-se a fazer embaixadinhas. Nada mais vendável – e de fato o foi. Entretanto, a chegada de um político desse porte também traz contrariedade e, nesse viés, as lentes da grande mídia voltaram as costas aos manifestantes que protestavam no centro do Rio de Janeiro, ignorando que muitos foram encarcerados em presídios como o complexo de Bangu, sem julgamento, por todo o período em que durou a visita, junto com presos comuns, para garantir a manutenção da ordem pública. Sobra inocência, ou cegueira, no que diz respeito ao fato de Obama ser o simpático chefe do executivo de um país criticado por seu intervencionismo e suas práticas econômicas, que cristalizam os subsídios aos produtos nacionais e a posição obscura que ainda parecem ter quando o assunto é América Latina. Que Obama não é Bush, isso parece evidente ao mais distraído dos observadores.
Entretanto, mesmo correndo o risco de parecer alarmista, a mesma ingenuidade (ou não) na análise trouxe na década de 1940 a implementação do Office for the Coordinator of Commercial and Cultural Relations between the American Republics, onde políticas de estímulo à divulgação da cultura norte-americana acabaram por estreitar os laços entre governantes brasileiros e estadunidenses em um desenrolar de concessões que, salvo a peculiar presença de Jânio Quadros e João Goulart, ex-presidentes – o primeiro tendo renunciado e o segundo sendo deposto –, culminaram, talvez por essas últimas ações mesmo, na implementação de um governo militar de completo entreguismo aos norte-americanos – processo que só findou de forma mais evidente em 2003, quando da chegada ao poder do presidente Lula.
Por sua política externa voltada para o sul e aproximação com regimes controversos, como o Irã, Lula sofreu críticas de imprensa local e norte-americana, para quem se tratava de ‘tiro no pé’. Quando o chefe de Estado ordena um ataque neste país a uma conhecida potência petroleira (a Líbia), muito pouco falta para interpretar esse gesto como uma forma de angariar aliados, seja para afastá-los do Cone Sul ou do ‘gigante asiático’, membro, assim como o Brasil, do bloco que mais cresce economicamente, o Bric. Elogios e simpatias à parte, os EUA são mais do que Michelle Obama e família; são um Estado com histórica política de mitigar esforços de independência mundial. Convém ficar atento.
******
Jornalista