Desconfio que pouca gente leu na íntegra e com atenção a reportagem do correspondente do New York Times que deu origem ao patético episódio da semana passada. Proponho aqui um exercício de releitura da matéria. Transcrevo e comento seus principais trechos com base em tradução feita pela Agência Estado, do jornal O Estado de S.Paulo.
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‘Luiz Inácio Lula da Silva nunca escondeu sua predileção por um copo de cerveja, uma dose de uísque ou, melhor ainda, um gole de cachaça, a forte bebida brasileira feita com cana de açúcar. Mas alguns brasileiros começam a questionar se a predileção de seu presidente por bebidas fortes está afetando sua performance no cargo.’O repórter não escreveu que o tema ‘Lula e bebida’ virou preocupação nacional. Escreveu que ‘alguns brasileiros começam a questionar’ se a predileção de Lula por bebidas fortes estaria afetando seu desempenho. Nos últimos três meses, ouvi de ministros e de parlamentares ligados a Lula que ele estaria bebendo, sim, além do razoável. Ninguém me disse que a performance dele foi afetada por isso.
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‘O presidente se manteve longe dos holofotes e deixou o trabalho pesado a cargo de seus assessores. Isso iniciou especulações de que seu aparente pouco envolvimento e passividade possam estar relacionados com seu apetite por álcool. Seus partidários, no entanto, negam os rumores de muita bebida.’O jornalista escreveu isso a propósito de um período recente onde Lula deixou de se expor tanto. Deve ter sido logo depois do episódio Waldomiro, quando Lula preferiu manter silêncio e sair um pouco de cena. O jornalista observa que tal comportamento deu ensejo a ‘especulações’. Não diz se tais especulações tinham procedência ou não. E logo registra que os partidários de Lula negam que ‘rumores’ sobre o consumo de bebida tivesse algo a ver com a postura mais discreta do presidente na época. Até aqui não vejo nenhuma incorreção na reportagem.
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‘‘Quando era vice candidato na chapa de Lula, ele bebia muito’, afirmou Brizola, agora crítico do governo, em recente discurso. ‘Eu o alertei que bebidas destiladas são perigosas, mas ele não me escutou e, de acordo com o que está sendo dito, continua bebendo.’ (…) Porta-vozes do presidente não quiseram comentar os hábitos de bebidas de Lula, afirmando que não iriam dignar acusações sem base com respostas oficiais. Em um curto e-mail respondendo ao pedido de comentário, eles descartaram a especulação de que Lula bebe demais, afirmando que isto não passa de ‘uma mistura de preconceito, desinformação e má-fé’’.Aqui, o jornalista registra a opinião de um desafeto de Lula, mas que foi candidato a vice-presidente dele em eleição passada, e que é presidente nacional de um partido. E diz que ele agora ‘é crítico do governo’. Sua condição de opositor de Lula, portanto, foi consignada. Ele não tinha porque desprezar o depoimento de Brizola. A imprensa brasileira sempre publicou o que um desafeto diz do outro sem registrar todas as vezes que um é desafeto do outro. Quando Lula chamou o presidente Sarney de ladrão em 1987, não lembro que alguém tenha escrito que Lula era desafeto dele. Talvez porque todos soubessem que era. Agora deixou de ser. Observem que o jornalista tentou ouvir porta-vozes de Lula sobre o que Brizola disse. Eles preferiram não falar mais longamente – salvo por meio de um curto e-mail. O direito de resposta foi concedido e não foi usado.
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‘Sempre que possível, a imprensa brasileira publica fotos de Lula com olhos turvos e corado, e constantemente faz referências aos churrascos em finais de semana na residência presidencial onde a bebida corre solta e onde o presidente geralmente está com um copo na mão. ‘Tenho um conselho para Lula’, disse o polêmico colunista Diogo Mainardi na revista Veja em março, após uma longa lista de artigos com esse tipo de referência. ‘Pare de beber em público’, aconselhou, dizendo ainda que o presidente se tornou ‘o maior porta-voz de propaganda para a indústria de bebidas’ com seu consumo notável de álcool. Uma semana depois a mesma revista publicou uma carta de um leitor preocupado com o alcoolismo de Lula e seu efeito na habilidade do presidente de governar. Apesar de alguns sites na internet já reclamarem há meses do ‘presidente alcoólatra’, essa foi a primeira vez que a grande imprensa nacional se referiu ao presidente dessa maneira.’Aqui, o jornalista pesou a mão. A imprensa brasileira, ‘sempre que possível’, não publica fotos de Lula com olhos turvos e corado. É mentira. A Veja, por exemplo, deixou de publicar recentemente uma foto onde Lula parecia – vejam, escrevi ‘parecia’ – visivelmente para lá de Bagdá. Mas a revista publicou reportagem onde ficou claro que Lula tomou alguns goles a mais. E não publicaria o artigo do seu colunista mais lido e uma carta de leitor a propósito do assunto se achasse que as duas coisas (o artigo e a carta) eram estapafúrdias. Sem pé nem cabeça.O jornalista teve o cuidado de registrar que o colunista da revista é ‘polêmico’. Ao fazer isso, embutiu a advertência de que, por polêmico, ele possa ter exagerado no que escreveu. Quanto à menção que faz aos sites, deveria ter dito que na maioria deles se costuma dizer qualquer coisa sem provas.
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‘Historicamente os brasileiros têm motivos para se preocupar com qualquer sinal de bebedeira por parte de seus presidentes. Jânio Quadros, eleito em 1960, era um fã notório que uma vez disse ‘bebo porque é líquido’. Sua renúncia inesperada com menos de um ano de governo, que foi descrito como uma maratona de bebedeiras, iniciou um período de instabilidade política que levou ao golpe de 1964 e 20 anos de ditadura militar.’É fato, é verdade o trecho acima. E não tem nada demais.
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‘Tendo ou não Lula um problema de bebedeira, o assunto chegou ao público e se tornou motivo de chacota. Quando o governo gastou US$ 56 milhões neste ano para comprar um avião presidencial, o colunista Cláudio Humberto, uma espécie de Matt Drudge da política brasileira, organizou um concurso para escolher um nome que zombasse da aeronave. Uma sugestão ganhadora, lembrando que o avião presidencial americano é chamado de Air Force One, sugeriu que o jato de Lula fosse batizado de ‘Pirassununga 51’, uma famosa marca de cachaça. Outra sugestão foi ‘movido a álcool’, uma brincadeira com o plano do governo para estimular o etanol como combustível.’O jornalista teve o cuidado de escrever: ‘Tendo ou não um problema de bebedeira…’. E em seguida relatou um fato objetivo. Goste-se ou não da coluna do jornalista Cláudio Humberto, ela é publicada por duas dezenas de jornais brasileiros, alguns líderes de vendas em seus estados. O jornalista não foi processado pelo governo por seus comentários ácidos a respeito do presidente e de seus supostos hábitos etílicos.
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‘Especulações sobre os hábitos de bebida do presidente foram alimentadas pelas inúmeras gafes cometidas em público. Quando era candidato, Lula ofendeu moradores de uma cidade, com fama de ser reduto homossexual, chamando-a de ‘fábrica de gays’, e durante sua presidência, suas gafes continuaram, tornando-se parte do folclore político brasileiro. Em uma cerimônia em fevereiro para anunciar um grande novo investimento, Lula se referiu duas vezes ao presidente da General Motors, Richard Wagoner, como presidente da Mercedes-Benz. Em outubro, durante um dia de homenagem aos idosos, Lula lhes disse ‘quando se aposentarem, não fiquem em casa perturbando suas famílias, encontrem algo para fazer’. Fora do país, Lula também tropeçou ou cometeu gafes. Durante uma visita ao Oriente Médio no ano passado, ele imitou um sotaque árabe ao falar em português, inclusive com erros de pronúncia, e em Windhoek, Namíbia, ele afirmou que a cidade era tão limpa que ‘nem parecia ser na África’.’Com base em quê o jornalista relaciona supostas gafes cometidas por Lula a ‘especulações’ sobre o hábito dele de beber? Aqui, novamente pesou a mão. Acreditou em fofocas que deve ter ouvido. Ou quis ser – e foi – ofensivo e irresponsável. Porque não ficou demonstrado em sua reportagem que tais gafes derivaram do gosto de Lula por bebidas fortes.
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‘Assessores de Lula e seus partidários sustentam que tais escorregões são ocasionais e devem ser esperados de um homem que gosta de falar de improviso, mas que não estão relacionados com seu consumo de álcool, que descrevem como moderado. De acordo com eles, Lula está sendo submetido a um padrão diferente e injusto do que seu antecessor pois ele é o primeiro presidente brasileiro da classe trabalhadora e tem primeiro grau incompleto. ‘Qualquer pessoa que já esteve em uma recepção formal ou informal em Brasília, presenciou presidentes bebendo uma dose de uísque’, escreveu o colunista Ali Kamel no jornal O Globo recentemente. ‘Mas você nunca lerá isso a respeito de outros presidentes, só de Lula. Isso cheira a preconceito’.’Embora tenha sido irresponsável no trecho anterior de sua reportagem, o jornalista abre espaço no trecho seguinte para assessores do presidente que refutam a ligação entre as gafes cometidas por ele e o uso do álcool. E cita um jornalista de O Globo que defende Lula – assim como antes tinha citado o colunista da Veja que criticou o presidente por beber.
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‘Da Silva nasceu em uma família pobre em um dos estados mais pobres e passou anos liderando sindicatos, um ambiente famoso por bebedeiras. Relatos da imprensa brasileira repetidamente descreveram o pai do presidente, Aristides, que ele praticamente não conheceu e que morreu em 1978, como um alcoólatra que maltratava seus filhos.’Eis o trecho da reportagem que mais magoou o presidente e que o deixou também indignado. A referência ao pai foi considerada cruel por Lula e por vários dos seus ministros e assessores. Bem… O jornalista não mentiu. O próprio Lula já falou em entrevistas a respeito do seu pai. Para os leitores de um jornal lá de fora, a referência ao pai de Lula não é despropositada. Os jornais brasileiros publicaram coisas muito piores a respeito do ex-presidente Fernando Collor – de orgias na Casa da Dinda ao consumo de cocaína por vias, digamos, pouco usuais. E, em relação a Collor, os jornais não se preocuparam em provar se o que disseram era verdade ou não.
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‘Histórias sobre episódios de bebedeira envolvendo Lula são muitos. Após uma noitada quando ainda era membro do Congresso em 1980, Lula desceu no andar errado do edifício onde morava e tentou arrombar a porta do apartamento que achava ser o seu, de acordo com políticos e jornalista em Brasília, incluindo alguns dos ex-moradores do edifício. ‘Com Lula, a caipirinha se tornou a bebida nacional por decreto presidencial’, disse no mês passado a Folha de S. Paulo em um artigo sobre a relação de Lula com o álcool e se referindo à bebida feita com pinga.’Desconheço a história contada no trecho acima. Não posso confirmá-la nem desmenti-la. Mas já ouvi algumas histórias parecidas. Não as publiquei porque nunca tive como prová-las – e, de resto, se o presidente bebe de forma moderada, não vejo nada demais nisso. Repito que nunca soube que seu desempenho esteja sendo afetado pela bebida. Se soubesse publicaria.
Encerro meus comentários dizendo que o ato de expulsar o jornalista não se justifica pelo conteúdo da reportagem. É um ato de agressão à liberdade de imprensa. Lula deveria ter engolido a reportagem em seco e convidado o autor para uns drinques. Assim não teria criado a confusão que criou. A reação dele, sim, é que fez muito mal a sua e àimagem do país lá fora.
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Jornalista, mantém um blog em (http://noblat.blig.ig.com.br/), onde este texto foi originalmente publicado