‘Sabei que a 12 do mês de outubro aqui aportou da terra do Brasil, por falta de vitualhas, um navio que Nuno e Cristóbal de Haro armaram ou aprestaram. São dois os navios com licença do rei de Portugal para descrever ou reconhecer a terra do Brasil.’
Começa assim a carta que um comerciante da Ilha da Madeira escreveu em 1514 para um destinatário em Antuérpia, que depois foi impressa na Alemanha com o nome de Copia der Newen Zeytung ausz Presillg Landt (Cópia da Nova Gazeta da terra do Brasil). É um documento raríssimo, do qual existem poucos exemplares, um dos quais se encontra na Biblioteca Nacional, no Rio.
Publicada três séculos antes da data oficial da introdução da imprensa brasileira, em 1808, com a chegada de d. João e da corte portuguesa, a Nova Gazeta, do início do século 16, é provavelmente a primeira obra impressa que menciona o nome do Brasil. O exemplar da Biblioteca Nacional tem seis páginas, quatro páginas de texto e duas gravuras em madeira; uma delas, na capa, de forte impacto visual, mostra uma cena marítima, com navios, ilhas e um porto. A última página está em branco.
O anônimo autor da carta disse ter recebido as informações sobre a expedição do comandante da caravela, seu ‘ótimo amigo’, ‘o mais afamado piloto que tem o rei de Portugal’, que tinha feito várias viagens para a Índia. O outro navio, com o comandante da expedição, tinha ficado para trás.
Adendos inverossímeis
A Nova Gazeta contém uma das mais importantes notícias exclusivas – ‘furo’, no jargão jornalístico – publicadas até hoje pela imprensa. Narra um episódio que é interpretado como a chegada da expedição até o Rio da Prata, ao longo do qual navegou 60 milhas em direção ao Oeste, anos antes de ser descoberto oficialmente por Juan Díaz de Solís em 1516.
O piloto da nave que aportou na Ilha da Madeira também achava que tinha encontrado o caminho marítimo para chegar até o Oceano Pacífico encurtando a viagem para a Ásia, sem necessidade de contornar o Cabo da Boa Esperança. Seria, assim, possível navegar de Lisboa até Malaca, ‘o que trará ao rei de Portugal, com a especiaria, grande auxílio’. Mas essa passagem para o Pacífico teria que esperar ainda vários anos, com a expedição de Fernão de Magalhães, que dobrou o cabo que hoje leva seu nome.
A Nova Gazeta conta detalhes da terra do Brasil e de seus habitantes. Havia muitos rios bons, muita gente de ‘bons costumes’ e de ‘índole honrada, sem vício nenhum, a menos que uma aldeia faça a guerra à outra’. O povo é de ‘boa e franca condição’ e não tem leis. Algumas pessoas vivem até 140 anos. Na terra havia muitos leões e leopardos. Não encontraram metais preciosos, mas ‘existe um povo serrano que tem muito ouro’. O navio carregava, além de peles de animais, pau-brasil no porão e na coberta ‘rapazes e raparigas comprados’, que pouco custaram ‘porque foram dados por livre vontade’ – um indício de que estava começando o tráfico de escravos.
As cartas de Cristóvão Colombo e o pequeno livro Mundus Novus de Américo Vespúcio, traduzidos em vários idiomas e impressos imediatamente em vários países – menos em Portugal e na Espanha –, despertaram a curiosidade e acenderam a imaginação de toda a Europa. Não faltaram, portanto, à Nova Gazeta detalhes mirabolantes, que tinham a finalidade de atrair a curiosidade de um público ávido de notícias sobre as terras recém-descobertas do Novo Mundo. Como escreveu o historiador inglês Felipe Fernández-Armesto, as narrativas de viagens da época procuravam acrescentar histórias ou dados extraídos da fantasia. Esses recursos eram ainda mais comuns nas obras impressas, cheias de artifícios para excitar a imaginação popular. Os impressores, para aumentar as vendas, se encarregavam de apimentar as histórias se achavam o texto demasiado sóbrio – como fazem hoje alguns jornais sensacionalistas. Os adendos inverossímeis aumentavam o interesse do leitor nas terras longínquas e na história que estava sendo narrada.
Debates em torno da expedição
A Nova Gazeta foi escrita em alemão arcaico – um alemão horrível, diz Stefan Zweig – e impressa – em péssimo papel, também segundo Zweig – em Augsburgo e Nuremberg, esta última cidade conhecida na época como ‘os olhos e os ouvidos’ da Alemanha. Konrad Haebler, um historiador alemão, assegurou ter encontrado em 1895 o manuscrito original, com data de 1514, e três exemplares impressos em Augsburgo, na coleção dos príncipes Fugger, os banqueiros mais poderosos da época.
Ao todo, foram conhecidas 11 cópias com quatro versões diferentes, cada uma delas com ligeiras variações na tipologia da letra e na redação do texto. O título de uma das cópias é Die Neuwe Zeitung Aus Presilg Land. As várias reimpressões revelam a grande popularidade da obra nas regiões de língua alemã. Além da cópia existente na Biblioteca Nacional, havia seis exemplares na Alemanha, três nos Estados Unidos e um na França. É possível que algumas das cópias alemãs tenha sido destruída durante a Segunda Guerra Mundial.
O exemplar da Copia der Newen Zeytung ausz Presillg Landt da Biblioteca Nacional foi adquirido no fim do século 19 por José Carlos Rodrigues, diretor e proprietário do Jornal do Commercio, na época a mais influente publicação do Brasil. Pagou a enorme quantia de 14.400 marcos aos livreiros-antiquários Irmãos Rosenthal, de Munique, por uma cópia que originariamente pertenceu à biblioteca dos padres franciscanos de Bolsana, Tirol, na Áustria. A obra foi depois vendida ao industrial Julio Ottoni, que a legou à Biblioteca Nacional, onde forma parte da Coleção Benedicto Ottoni. Alguns antiquários europeus vendem cópias fac-símile da Nova Gazeta por € 50.
Os historiadores debateram durante um século e meio em torno da Nova Gazeta. Tentaram identificar, por exemplo, qual seria a expedição nela mencionada. Francisco Adolpho de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, deu várias versões. Numa delas, ele supõe que foi escrita em Lisboa por um estrangeiro. Segundo outra, estaria baseada numa viagem de Juan Díaz de Solís e de Vicente Yáñez Pinzón ao Rio da Prata, em 1508 – uma expedição que nunca foi à América do Sul. Outra, ainda, diz que se referia a uma expedição de Gonçalo Coelho ao Brasil em 1503, que teria chegado até o Rio da Prata – o que está provado que nunca aconteceu.
O descobridor do Rio da Prata
Foram também mencionadas outras viagens da época como possíveis inspiradoras da carta, entre elas a de Vasco Gallego e João de Lisboa e outra encabeçada por Nuno Manuel. Rodolfo Schuller afirma tratar-se de uma narrativa baseada na ‘terceira viagem’ de Américo Vespúcio ao Brasil, em 1501-1502, na qual ele teria chegado ao Rio da Prata; Carlos Rizzini e outros historiadores concordam com ele, mas a hipótese foi muito criticada.
O mais provável, porém, é que a Gazeta se refira a uma expedição de duas caravelas comandada por Diogo Ribeiro e financiada por Cristóbal de Haro, que teria sido realizada em 1511-1512 ou em 1513-1514. O piloto de uma das naves era João de Lisboa, um dos mais renomados navegadores de Portugal. As duas caravelas se separaram. João de Lisboa chegou ao Rio da Prata e realizou a mais antiga observação astronômica a partir do cabo de Santa María, hoje conhecido como Punta del Este. Diogo Ribeiro foi morto no litoral norte brasileiro, possivelmente onde hoje é o Maranhão. Estêvão Frois assumiu o comando da nave capitânia, que foi levada pelas correntes, tempestades e pela inabilidade do piloto até Porto Rico, no Caribe. A tripulação ficou presa vários anos em Santo Domingo por ter penetrado nas águas proibidas da América espanhola.
O armador dessa expedição, Cristóbal de Haro, é mencionado nas primeiras linhas da Nova Gazeta. Judeu sefardita, Haro era um poderoso comerciante de origem espanhola instalado em Antuérpia, mas com residência temporária em Lisboa. Ele tinha trabalhado por um tempo para os Fugger e se estabeleceu como um importante negociante em especiarias, com agentes e representantes em diversas partes do mundo. Estava interessado em encontrar uma passagem para a Ásia através da América e financiou várias expedições tanto à América Central como pelas costas do Brasil com essa finalidade. Foi, por exemplo, o armador da expedição de Fernão de Magalhães.
Segundo alguns historiadores, a frota financiada por Haro e comandada por Diogo Ribeiro, certamente para procurar a passagem ao Oceano Pacífico, era secreta e, quando soube da notícia, o rei dom Manuel ficou furioso. Para salvar sua vida, Cristóbal de Haro teve que fugir pelo Algarve à Espanha, no lombo de mulas. Na Espanha, a notícia da viagem teria levado o imperador Carlos V a mandar a Juan Díaz de Solís na expedição que o tornou o descobridor oficial do Rio da Prata em 1516. Mas ele morreu antes de poder continuar a viagem e a expedição voltou sem encontrar o caminho até o outro mar.
Coleções das cartas
A data da publicação da Nova Gazeta também é controvertida. Dependendo do historiador, seria de 1506 ou 1507, de 1508, de 1510, de 1515 ou mesmo de anos posteriores. Numa exposição em Stuttgart foi dado como certo o ano de 1508. O historiador francês George Weill, em sua conhecida obra Le Journal, menciona como prováveis datas 1508 e 1509 – e dá um nome ligeiramente diferente à obra: Copia der Newen Ceytung aus Presily Land, talvez por erro de transcrição. Outros historiadores fixam datas bem posteriores, como Alexander von Humboldt, que a situa entre 1525 e 1540; Haebler chegou a mencionar 1530. Hoje, a data mais aceita – embora ainda haja controvérsias – é que a carta tenha sido escrita em 1514 e impressa em 1515, como consta do manuscrito.
A Copia der Newen Zeytung ausz Presillg Landt tem uma importância histórica. É um dos exemplares das newsletters ou lettres de nouvelles ou ‘cartas de notícias’ impressas que proliferaram na época. Havia um grande interesse em informações sobre as guerras religiosas na Europa, o confronto com os turcos – e as navegações, os descobrimentos e as notícias sobre o Novo Mundo. Na Alemanha, país ansioso por notícias e fantasias, as Newe Zeitung tiveram ampla divulgação. Existem várias cópias da Zur Neuen Zeitung aus dem Lande Jucatan vom Jahre 1522, (Nova gazeta do país de Iucatã do ano 1522), sobre a conquista do México pelos espanhóis.
Aparentemente, o correspondente que a escreveu nunca esteve no Iucatã; sua Gazeta parece estar baseada em duas cartas do conquistador Hernán Cortés e num relato do padre Pedro Mártir de Anglería, acrescidas de um considerável número de erros e de detalhes fantasiosos, para informação ou desinformação dos leitores alemães. Uma das gravuras contém a mais antiga reprodução europeia de um sacrifício humano feito pelos astecas.
Essas cartas tiveram sua origem nas notícias manuscritas (nouvelles à la main, fogli a mano, lettere d´avissi, geschreibene zeitungen) da Idade Média e começo da Moderna. Eram escritas pelos correspondentes das casas comerciais e dos banqueiros, como os Fugger, que montaram um serviço próprio de notícias – o manuscrito da carta e três copias impressas da Gazeta foram encontrados em seus arquivos –, ou por informantes pagos de reis, príncipes, nobres ou o alto clero. Coleções dessas cartas são encontradas na Biblioteca Nacional de Viena e na Biblioteca do Vaticano. O uso desses manuscritos cresceu com o desenvolvimento de correios regulares na Europa, ainda na Idade Média.
‘Certidão de nascimento’
Mas não existem Novas Gazetas ou ‘Cartas de Notícias’ sobre o Brasil em língua portuguesa. Na verdade, não faltaram informações sobre o Brasil escritas em português na época dos descobrimentos e da colonização. Os navegantes e colonizadores portugueses foram ativos em mandar cartas e relatos ao rei e à corte de Lisboa; os jesuítas também escreveram copiosamente. Mas as narrativas e descrições das riquezas da terra e de seus habitantes não circulavam no reino ou na Europa. Como diz Carlos Rizzini, morriam asfixiadas nos arquivos oficiais.
As notícias, reais ou fantasiosas, sobre o Brasil eram mais conhecidas em outros países do que em Portugal, cuja política não era divulgar, mas esconder qualquer informação sobre o Brasil, por temor da curiosidade e da cobiça estrangeira. O livro de João Antonio Andreoni (Antonil, cultura e opulência do Brasil), apesar de ter sido liberado pela Inquisição e impresso em Lisboa em 1711, foi apreendido e destruído por conter informações que atrairiam a atenção estrangeira sobre a colônia. O primeiro livro impresso em português na América, em 1710, o D.O.M. Luzeiro Evangélico, do franciscano João Bauptista Morelli de Castelnovo, foi estampado no México e não era dirigido ao Brasil, mas à catequização nas regiões asiáticas de língua portuguesa.
Devido a essa política de segredo, grande número de manuscritos se perdeu. Alguns somente foram achados e divulgados no século 19. A ‘Carta’ de Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, considerada a ‘certidão de nascimento do Brasil’, ficou três séculos na Torre do Tombo, em Lisboa, e só foi publicada, pela primeira vez em 1817, no Rio, pela Impressão Régia. A carta do mestre João, o físico e cosmógrafo que também acompanhou Cabral em sua viagem, que é considerada muito mais reveladora que a de Caminha, foi descoberta no Tombo por Varnhagen, que a publicou em 1845.
A falta de folhas impressas em português sobre o Brasil da época dos descobrimentos e da colônia, em razão da obsessão de Portugal, torna ainda mais relevante a Copia der Newen Zeytung ausz Presillg Landt. Gazetas sobre o Brasil somente iriam ser publicadas três séculos mais tarde.
******
Jornalista, autor de Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição