Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O malufismo no jornalismo policial

Penso que a função do jornalista é trazer sentido para o fato. Devemos sempre ter a consciência de que o microfone não é poder – é, sim, um instrumento de trabalho. Tarefa que exige constante vigilância já que, como diria o sociólogo francês Jean Baudrillard…

‘…estamos contaminados pela síndrome depressiva do poder complexo de justificação de todo e qualquer poder ao tornar-se excessivo, sem representar mais nada. É o caso do político, e hoje da mídia. A televisão passa a girar em torno de si mesma, na própria órbita, e a detalhar à vontade as suas convulsões porque não é mais capaz de encontrar sentido no exterior, ultrapassar-se enquanto meio para encontrar o seu destino: produzir o mundo como informação e dar sentido a essa informação’ [Baudrillard, Jean. Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Tradução de Juremir Machado da Silva. 2ª Edição. Porto Alegre. Sulina. 1999, pág. 158.].

Tivemos nesta última semana algumas discussões sobre a exclusividade do repórter César Tralli na prisão do filho do ex-prefeito de São Paulo, Flávio Maluf. Penso que aí temos que desmembrar a polêmica em duas questões. Vamos à primeira questão.

Profissionais em risco

É fato que a Polícia Federal deu uma informação exclusiva e privilegiada ao repórter. Neste ponto, um erro grave por parte da instituição, que agiu de maneira antidemocrática ao privilegiar apenas um veículo de comunicação num fato de interesse nacional, que nenhum chefe de reportagem em sã consciência deixaria de cobrir.

Não me surpreenderia a possibilidade de que isto tenha sido de fato um erro da assessoria de comunicação da Polícia Federal. Sabemos que a PF há pouco atentou para a necessidade de trabalhar sua imagem pública. Como parte deste processo, os nomes cada vez mais criativos e com tons publicitários, como Operação Hidra, Operação Cevada ou Operação Pégasus. Qualquer assessor de imprensa sabe das dificuldades de lidar com o conceito e com a prática da comunicação numa entidade que há pouco estava fechada a esta realidade. Normal que erros, deslizes, abusos e exageros aconteçam neste processo.

A Polícia Federal tem registrado operações com câmeras de vídeo há pouco tempo. O material, ao menos aqui no Paraná, tem sido oferecido à imprensa. Certa vez questionei um assessor da PF em relação à qualidade das imagens feitas por mãos mais acostumadas aos gatilhos e ainda pouco familiarizadas com foco, shuter e diafragma. A resposta me convenceu: permitir cobertura jornalística das operações seria colocar em risco repórteres, auxiliares, fotógrafos e cinegrafistas, não ambientados com os procedimentos policiais, que geralmente envolvem risco.

Critérios do acesso

Tendo esta explicação lógica, vi com espanto a cobertura exclusiva feita por um dos melhores repórteres da nossa imprensa que, ao que se sabe, atuou no caso também como cinegrafista na ação policial. Eu, repórter que também depende destas movimentações do hard news e por incontáveis vezes abri o microfone aos agentes das operações da Polícia Federal, gostaria que me fosse explicado qual o critério usado para que a informação fosse passada com exclusividade a um veículo de comunicação.

Não busco questionar o fato de o jornalista aceitar fazer o registro de Flávio Maluf algemado e encaminhado à superintendência da Polícia Federal em São Paulo. Isto eu faria de muito grado se me fosse dada a mesma oportunidade. Talvez com postura diferente – sobre isso falarei mais à frente. Questiono o fato de uma instituição guardiã dos direitos do cidadão agir de forma danosa à liberdade de imprensa.

Gostaria muito de saber qual o critério que permitiu o acesso de Tralli à operação. Por acaso a vida de um dos mais competentes repórteres da televisão vale menos do que as dos demais? Ele pode ser colocado em risco? Quanto a esta questão, deve-se registrar que a Polícia Federal abriu sindicância para apurar como o dito jornalista, não sendo policial, esteve presente durante toda a operação.

Bagunça na divisão de papéis

Segunda e mais importante questão: de que lado estamos?

O que mais me preocupa nesta história é a possibilidade levantada de que o repórter estaria camuflado de policial durante a operação. Em matéria publicada na Folha Online, a Polícia Federal teria admitido que o repórter usava roupas muito parecidas com a dos agentes. A assessoria da Rede Globo desmente.

Não vejo problema algum no fato de o preso ser filmado enquanto é conduzido à carceragem. Defendo a idéia de que no jornalismo o direito de imagem é de quem a registra, não de quem é registrado, isto desde que observados os limites éticos. Na hipótese levantada de que o repórter tenha se camuflado de policial, este limite foi desrespeitado. A regra mais importante a ser seguida neste caso é identificar-se claramente como jornalista.

Jornalistas são jornalistas, policiais são policiais, ambos cumprem seus papéis, têm suas limitações e trabalham a favor da sociedade, mas em meios distintos. Quando os papéis se misturam, o jornalista passa a fazer parte da ação, já não é mais parte do registro, é um ator da situação. Neste ponto, beijo e abraço para a credibilidade, esta fruto de um distanciamento crítico em relação ao fato noticiado. Sabemos que a imprensa deve atuar como um órgão fiscalizador dos poderes. Como fiscalizar a polícia estando travestido de agente?

Estar camuflado de policial, mesmo que buscando uma imersão sadia na realidade retratada, é bagunçar a divisão de papéis que deve ficar clara para o telespectador. Em cima desta divisão é que o sentido da notícia começa a ser formado. Se ficar alguma dúvida entre quem é fonte e quem é emissor, a televisão vira espetáculo de si mesmo, como diz Baudrillard.

Formadores de sentido

Se é que esta mistura de papéis aconteceu neste caso, vamos lembrar que estamos no campo da hipótese, isto me remete àquele velho estereótipo do mau jornalismo policial, no qual repórteres condenam suspeitos, para isto usando de um falso poder de polícia-juiz diante de câmeras sensacionalistas.

Gosto, porém, da imersão do repórter na realidade retratada. Acompanhar o assunto até suas últimas conseqüências é louvável para o jornalismo. Na história recente do jornalismo tivemos dois estilos criados que pregam este mergulho na realidade retratada. O jornalismo literário, que nasceu lá pela década de 1960 no Estados Unidos, aconselhava a imersão, mas com absoluta obrigação com a veracidade, com a precisão dos dados, buscando retratar não apenas a fala e a ação dos entrevistados, mas também seus pensamentos e sentimentos. Tivemos também o jornalismo gonzo, cujo criador, Hunter Thompson, morreu em fevereiro deste ano. Neste estilo, realidade e ficção se misturam em viagens e digressões de um repórter imerso na realidade retratada. Estilo também interessante, mas que fala muito de si mesmo em detrimento da notícia. Ouso dizer que seria um espetáculo de si mesmo, como preconiza Baudrillard. Se isto aconteceu ou não no caso da reportagem em questão, deixo com o leitor.

De concreto, neste caso, temos o privilégio dado a um só veículo, fato que todos os jornalistas esperam que seja razoavelmente explicado e quiçá não repetido. Quanto à possibilidade de que tenha acontecido uma camuflagem para a atuação profissional num momento em que ela deveria ser absolutamente transparente, fica a reflexão do nosso papel de formadores de sentido numa sociedade que nos faz por vezes misturar jornalismo e espetáculo.

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Repórter da Rede Record em Curitiba, jornalista com pós-graduação em Cinema e professor universitário