Se não fosse o Judiciário, Rubem Fonseca estaria proibido até hoje. Não que o Judiciário seja santo e o Executivo, pecador. Não, também juízes dão maus passos. A diferença é que nas cortes, um colega pode contrariar o outro, a controvérsia espelha o que o povo consagrou no provérbio ‘de cabeça de juiz, urna e bunda de criança, nunca se sabe o que pode vir’.
Ao ser surpreendido com a censura a seu livro de contos, Feliz Ano Novo, o escritor foi aos tribunais. Perdeu em primeira instância. A ditadura podia tudo e no afã de proteger o algoz, Armando Falcão, então ministro da Justiça, e não a vítima, a sociedade dos leitores, no Brasil ainda tão pequena, sobretudo para livros de ficção, moveu céus e terra, trazendo para o Rio um juiz que deu a sentença que a ditadura queria, mantendo o veto do ministro.
A história é conhecida. O simulacro de legalidade, como no caso do inquérito do Riocentro, pôs inutilmente a peneira na frente sol da verdade. O coronel Job Lorena de Santana absolveu os algozes e condenou as vítimas, mas os serviços que prestou não foram suficientes para enganar a todos durante todo o tempo.
Também no caso Rubem Fonseca repetiu-se o gesto. O Brasil alcançou dois recordes sinistros. O ministro da distensão lenta, segura e gradual do governo Geisel, proibiu, em quatro anos, mais livros do que a Inquisição, que levou séculos para incluir 1.100 em seu Index Librorum Prohibitorum (Relação de Livros Proibidos). E um juiz, em vez de julgar o que era solicitado, acrescentou nova acusação ao réu. Não, o escritor não externava matéria contrária à moral e aos bons costumes, conforme reconheciam os dois peritos, tanto o da União como o do escritor. O da União foi Afrânio Coutinho, que produziu uma das mais belas análises da censura. Mas o juiz, apesar de acolher o resultado das perícias, acrescentou uma acusação. Este foi o segundo recorde: um juiz acusar, em vez de julgar. Afirmou, para condenar o escritor, que o livro fazia ‘a apologia do crime e do criminoso’, coisa que o censor não tinha visto e nem considerado.
Gesto insano
Menos de trinta anos se passaram desde a proibição. As evidências de que Rubem Fonseca espelhava a sociedade violenta que era germinada no Rio de Janeiro e em outras metrópoles brasileiras estão aí há vários lustros para quem tem olhos para ver. Tudo piorou. O escritor deveria receber um prêmio de profecia. Mas para defender a liberdade de escrever como queria, teve que ir ao Tribunal Regional Federal (TRF), instância criada pela Constituição de 1988, depois de ver o caso transitar pelo Tribunal Federal de Recursos (TFR). Enfim, treze anos depois, em 1989, por dois a votos a um, o livro foi liberado.
O caso Larry Rohter ameaçou repetir como farsa outros casos de censura no Brasil, de que a luta de Rubem Fonseca nos tribunais tornou-se emblema. Mas com um agravante: a expulsão do autor do território nacional, por ser estrangeiro. E com uma grande diferença: a qualidade do texto. Excelente, no brasileiro; sofrível, no americano. Que seu texto seja levado às salas de aula de cursos de Jornalismo como exemplo de texto mal escrito, de ‘recortagem’, como diz o jargão jornalístico, porque reportagem não é. Mas também seu caso seja levado aos cursos de Direito, como exemplo de como é indispensável um Estado de Direito para defender a liberdade adequadamente e com eficácia. Perde-se numa instância? Há outros juízes a quem apelar. Mas Larry Rohter, cuja vitória acachapante sobre ato discricionário do presidente da República se anunciava, não precisou ir adiante.
O presidente, apesar de mal assessorado nos albores da questão, teve mais juízo do que os antigos ditadores (antigos? bem, o que está em referência são os governos Geisel e Figueiredo, 1974-1985) e recuou. Teve a modéstia, a humildade de recuar. Consertou o estrago que seu governo fizera. Porque estrago já houvera. E grande. Ouviu assessores mais qualificados. Aliás, ouviu aquele que não tinha ouvido, o seu ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, e corrigiu o erro. Se tivesse recorrido antes a seu auxiliar, em viagem ao exterior, não assinaria o ato sinistro.
Um governo é salvo ou posto em perigo por seus auxiliares mais próximos. O presidente não pode fazer tudo sozinho, nem que queira. Depende dos quadros que escolheu ou foi obrigado a aceitar. O governo Lula deveria prestar mais atenção aos que apoiaram o seu gesto. Esquecido há anos, eis quem desponta para elogiar-lhe o gesto insano: o ex-ministro Armando Falcão!
Ah, mas ainda há juízes em Brasília! E ainda há juízo no Palácio do Planalto!