É um angustiante paradoxo: aceitamos que individualmente somos diferentes porque geneticamente não existem dois seres humanos iguais, mesmo que sejam gêmeos univitelinos. Por outro lado, coletivamente estes mesmos humanos podem ser discriminados e combatidos justamente por formarem conjuntos de indivíduos semelhantes. Embora existam infinitas razões de discórdia entre os dirigentes de povos distintos, os grandes crimes contra a humanidade tiveram origem contra nações que – por vontade própria ou não – apresentaram diferenças políticas, étnicas e culturais, umas em relação a outras. Por exemplo, o que fizeram os milhões de judeus para merecer o holocausto? Ora, essas ordens discriminatórias saíram da cabeça de um louco que simplesmente não gostava deles! No outro lado da moeda, por que no final da 2ª Guerra foram jogadas as duas bombas atômicas em cima dos civis japoneses? A explicação simplória e absurda dos americanos ‘era para poupar nossos jovens combatentes’!
Mas também cometemos esses erros absurdos contra negros e indígenas desde a chegada dos europeus na América até nossos dias. Aos brancos, deve-se não somente o etnocentrismo, mas também o colonialismo, o escravismo, o genocídio, o etnocídio e o racismo. Finalmente, como espólio de abandono, a miséria, ignorância e morte.
A diferença entre um escravo índio e um africano é evidente: o nativo brasileiro foi criado em aldeias isoladas com liberdade e uma cultura de educação coletiva, tanto em suas atividades domésticas, como caçando e guerreando em prol da sua comunidade. Embora muito mais barato que o africano, não estava preparado para atividades laborais individuais, não tendo nenhuma afinidade para a servidão humana. Definitivamente, não era um preguiçoso. Por isto, não sobreviveram. Já os negros africanos se sujeitaram à tutela do branco, aderindo à sua sociedade, servindo-o e, com isto, criando um grilhão mais forte que o físico de senzalas e cangas que foi o da dependência. Esses escravos circulavam livremente pelas estradas e vilas, alguns armados, sempre retornando à segurança da tutela do seu dono. Não tinham família estável nem cidadania, é certo, mas sentiam-se confortáveis com as poucas deferências de seus donos que, aliás, tratavam deles com o cuidado que dispensavam para uma mercadoria ou bem.
O preço de um homem
Esta postura fica evidente num recibo de 3 de abril de 1882, do acervo de meu filho Marcos Luiz, onde uma espécie de ‘disk escravo’ do Rio de Janeiro (sem telefone, é claro) aproveita o espaço para estabelecer deveres ao locatário de uma escrava doméstica e urbana, de nome Justina. Por este recibo ficamos sabendo que o aluguel da escrava por um mês de trabalho era de trinta e cinco mil reis. No pé do recibo está escrito: ‘Nenhum alugador, sem exceção de pessoa, poderá castigar a alugada desta casa, por qualquer motivo que a preta não sirva virá o mesmo alugador trazer ou mandar acompanhar por uma pessoa, e este recibo para receber o seu dinheiro caso a preta fuja, seja presa, adoeça, ou qualquer caso que se dê, imediatamente é obrigado o alugador a vir participar nesta casa para se dar as devidas providências’. Embora não pareça, são cuidados para seu dono preservar a mercadoria. O detalhe ‘seja presa’ é significativo; os escravos não estavam alijados das leis sociais dos brancos, pois a parte ruim era compartilhada. Perdão, Justina!
Daí a importância do registro nos jornais. Na metade do século 19 já havia muitos jornais circulando pelo Brasil. Eles estavam repletos de anúncios descritivos de fujões, editais referentes à negociação de posse desses indivíduos, pendengas judiciais envolvendo escravos e tudo mais no que se referia ao compartilhamento dessa sociedade marginal aos brancos. Mas triste mesmo era quando este comércio envolvia crianças, como este edital de 30 de abril de 1856, do primeiro jornal paranaense, o Dezenove de Dezembro:
‘Pelo juízo de orphão desta capital se faz publico, que no dia 12 do corrente mez as dez horas da manhã em casa do respectivo juiz se hão de arrematar a quem por eles mais der, os seguintes escravos pertencentes ao espólio da finada Maria Angelica: José, mulato, idade 30 annos mais ou menos, avaliado em oitocentos mil reis, tem defeito em um braço; Antonio, mulato, idade mais ou menos quatro anos, avaliado em quatrocentos mil reis; Pedro, mulato, idade mais ou menos um anno; avaliado por duzentos e cincoenta mil reis; Francelina, mulata, doentia, idade mais ou menos dez anos, avaliada por setenta mil reis.’
Duas maneiras de escravizar
A descrição desses escravos sugere uma família: José, o pai; a menina ‘doentia’ de dez anos, Antônio de quatro anos e o neném Pedro de um ano. Mas não menciona a mãe… O que teria acontecido com ela? Provavelmente morreu porque o juiz era quem cuidava dos órfãos. Não daria um belo livro ou mesmo uma novela o destino dessa família? Foram separados ou vendidos em um lote único? E com relação aos preços: o pai, mesmo aleijado num braço, era produtivo e valia oitocentos mil reis… Mas os meninos, Antônio, com quatro anos, avaliados pela metade do preço de um adulto! E o neném de um ano já valia duzentos e cinquenta mil reis! Prejuízo para o comprador porque ambos deveriam terminar sua criação para tornarem-se também produtivos. Para tanto, seriam jogados numa senzala imunda para que uma mãe preta generosa fizesse esse trabalho para o patrão… O que causa mais espanto é o preço discriminatório para a menina, setenta mil reis! Mas se era mulher e doentia? Embora estes valores sejam revoltantes, pelo menos nos esclarecem uma dúvida existencial que o autor carregou durante toda vida septenária, ou seja, qual é o preço de um homem?
Mais triste ainda foi saber que um juiz, que deveria proteger tais crianças que não tinham como se defender – e muito mais, sendo órfãos – estivesse vendendo-as! São coisas passadas, velhas práticas, mas mesmo naqueles tempos esses juízes não podiam ser considerados justos (em consequência, nem juízes). Por isto é que temos que acreditar numa dimensão maior, num Deus justo e onipotente, tenha Ele o nome que tiver!
Os escravos indígenas eram chamados de ‘negros da terra’. Em 1548, o regimento de Thomé de Souza normalizou o trabalho indígena e em 1570 o rei de Portugal, D. Sebastião, regulamentou essa servidão. Havia duas maneiras de escravizá-los: pelo ‘descimento’ e como consequência das chamadas ‘guerras justas’. No primeiro caso, os índios cristãos – separados dos não cristãos – deveriam ‘descer’ de suas aldeias de origem para as chamadas ‘repartições’, onde eram mantidos como escravos compulsórios. No segundo caso, os índios presos nessas guerras eram vendidos aos colonos. Em qualquer situação, esses índios eram indóceis e não se sujeitavam ao domínio dos brancos. Tal como os negros, quando os índios fugiam reuniam-se em locais semelhantes aos quilombos, denominados ‘mocambos de índios’. Todavia, como esses locais eram formados por etnias e culturas diferentes, logo se dissipavam.
Acabar com os ‘vizinhos indesejáveis’
Pois a eliminação da sua cultura é um meio de se acabar com um povo. Foi o que aconteceu com nossos índios. Nos primeiros tempos foram eliminados do litoral onde aos poucos foram desaparecendo nada mais que oito grandes etnias. Esses índios foram se embrenhando na mata Atlântica, modificando seus hábitos, passando ao nomadismo e se alimentando de peixes de rio e caças abundantes. Entrando cada vez mais longe, guerreavam-se entre si e literalmente comiam-se uns aos outros. Foram pequena parte desses índios – que chamamos de ‘padrão Atlântico’ – que sobreviveram.
Quando os portugueses chegaram, havia índios na ordem de milhões de indivíduos. Como toda esta gente desapareceu? Quando os jesuítas chegaram, em meados do século 16, estabeleceram uma política de aldeamento dos índios em torno de destacamentos militares e povoados. Sem uma integração efetiva, esses índios marginavam a sociedade dos brancos recebendo todos os seus vícios e nenhuma virtude. E foi justamente a cachaça dos brancos que dizimou tribos inteiras. O mecanismo era o seguinte: primeiro os índios mandavam espiões para narrar a seus pares a vida dos brancos. Lá se encantavam com ‘bugiarias’, como o espelhinho, e principalmente, a bebida. Fascinados por ela, convenciam seus companheiros da vantagem de estarem perto dos brancos. Para estes, a proximidade era conveniente já que desta maneira poderiam vigiá-los e negociar produtos da mata como a poaia, que servia de remédio e na curtição do couro, o plástico da época. Com o tempo, estes índios iam perdendo sua capacidade de sobrevivência na mata. Hermann Burgmeister, um viajante que trabalhou com Lund na Lagoa Santa, anotou que, por volta de 1850, os índios já não caçavam com arco e flecha e usavam os utensílios dos brancos, inclusive suas armas de fogo.
Associadas à cachaça, os brancos trouxeram inúmeras doenças aos nativos, como o sarampo e a sífilis, que dizimaram aldeias inteiras. Quando tinham um interesse maior, os brancos costumavam espalhar em torno da aldeia as roupas dos doentes de ‘bexiga’ (varíola) que tinham morrido e, com isso, acabar em grande escala com os ‘vizinhos indesejáveis’.
Um empecilho para a colonização do sertão
Mas o mais absurdo é que nos tempos de D. João VI a extinção dos índios foi incentivada por decreto. O conde de Linhares (Rodrigo Coutinho), ministro da Agricultura e fazendeiro da região do Rio Doce, constantemente tinha sua terra fustigada pelos índios, o que despertou tamanho ódio que redigiu um decreto para acabar literalmente com os índios. É, uma ordem para matá-los! Podemos nos envergonhar de que o Brasil seja o único país a tentar eliminar os nativos da terra por decreto! D. João pouco se importava com os índios e chegou a fazer uma carta régia, de 8 de novembro de 1808, retirando a humanidade dos índios. Como assim? Burocraticamente e com uma canetada, transformou essa gente – os verdadeiros brasileiros – em bichos. A partir de então, queria seu fim: ‘Ordeno-vos, deveis considerar como principiada a guerra contra esses bárbaros índios.’
Esse ódio étnico também é um bom parâmetro para comparações. Por exemplo, não é nenhum absurdo nivelar as ideias racistas de Hitler – principalmente contra os judeus – com as de D. João VI contra nossos índios!
Em seu livro História Geral do Brasil, o Visconde de Varnhagem defendeu ‘o emprego de força para civilizar os índios e que fossem impedidos por todos os meios de voltar a medonha e perigosa liberdade de seus bosques’. No começo do século 20, o então diretor do Museu Paulista, von Ihring, pregava abertamente nos jornais que os índios ‘seriam um empecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam e não há outro meio que se possa lançar mão, senão o seu extermínio…’ Paradoxalmente, seus artigos despertaram a revolta dos que não pensavam como ele e em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI, hoje Funai) que passou a dar assistência aos nativos.
Toda esta história dos índios brasileiros, e mais, a discussão da sua origem chinesa, está no livro Brasil Chinês (ainda disponível nas Livrarias Curitiba e Cultura SP), do autor com seu filho Marcos Luiz. Aliás, já comentado neste espaço do Observatório da Imprensa pelo professor Deonísio da Silva em 12/10/2010, no artigo ‘Colombo Não Descobriu a América’.
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Professor aposentado, Curitiba, PR