Sem muito alarde, em junho de 2009 a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa – CCIR entregou relatório ao presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Martin Uhomoibai. O documento, além de relatar casos exemplares de perseguição religiosa, acusa a Igreja Universal do Reino de Deus, assim como outras denominações neopentecostais, de promover uma ditadura religiosa no Brasil, através de sua prática racista e discriminatória contra religiosos de matriz africana e minorias étnicas. Na época, a Folha de S.Paulo, ao noticiar a entrega do relatório, entrevistou o sociólogo Ricardo Mariano, da USP, que discordou do viés racista da denúncia da CCIR e afirmou que ‘a atitude adotada pela Igreja Universal é motivada (apenas) por questões estritamente religiosas’, sem ter nenhuma correlação racial. Passado um ano, o relatório publicado pelo Grupo Internacional pelos Direitos das Minorias (Minority Rights Group International – MRG), amplamente noticiado pela imprensa mundial, constata que a intolerância religiosa é o novo racismo.
Interessante observar que a constatação de Mark Lattimer, diretor da organização que elaborou o estudo, confirma o que os religiosos brasileiros sabem há muito tempo: a intolerância religiosa é uma das faces do racismo. A questão é que praticar o racismo não é apenas segregar pela cor da pele ou origem étnica. É pretender impor a visão dominante (superior e civilizada) com o objetivo de aniquilar as concepções de mundo e identidade de grupos dissidentes (ou resistentes), tratados como primitivos e inferiores.
A divulgação do relatório do MRG não chegou a causar frisson nas redações. É sabido que uma parte significativa da imprensa brasileira (e da Academia) faz um esforço hercúleo para classificar pretos, brancos, amarelos, vermelhos, judeus e ciganos como representantes de uma única raça, a humana. É uma discussão que só faz sentido para quem enxerga na desracialização do discurso uma forma de preservar os ‘diferentes’ de ataques e perseguições. Essa fórmula já se mostrou inócua – basta ver os grupos neonazistas que continuam existindo em todo mundo – além de ensurdecer a sociedade para questões que precisam ser amplamente discutidas. Talvez tenha sido este o motivo da pouca repercussão do estudo – noticiada até pela Rádio do Vaticano – por aqui. É o reflexo da banalização da discriminação religiosa num país que aprendeu que as expressões religiosas dos africanos, indígenas e minorias étnicas são ‘magia negra’, ‘macumba’, ‘coisas do demônio’ e ‘primitivas’.
Aniquilar as identidades
Não é difícil entender o quanto a afirmação de Lattimer pode estar afligindo as redações. Ela faz cair por terra teorias míticas da sociedade brasileira: 1) o Brasil é uma democracia racial, mesmo com todas as evidências da existência de um fosso abissal que separa os negros dos brancos; 2) O Brasil é uma democracia religiosa, mesmo com cadeias comunicacionais, políticas e econômicas, dominadas por neopentecostais que perseguem acintosamente outras religiões; 3) As redações se habituaram a tratar a diversidade brasileira – étnica, cultural e religiosa – como folclore ou algo pitoresco.
Outro dado que merece ser destacado no relatório da MRG é que ‘a marginalização econômica que sofrem certos grupos (…) levou a uma crescente tendência à perseguição das minorias religiosas na maioria dos países da Europa Ocidental e da América do Norte’. Se trouxermos esta afirmação para a realidade histórica do país, percebemos que fica fácil ‘fazer a ficha cair’. O Brasil, colonizado por jesuítas e considerado hegemonicamente cristão, ao importar, em meados do século 19, imigrantes europeus e asiáticos como trabalhadores assalariados em detrimento dos descendentes de africanos, recém-libertos pela abolição da escravatura, realizou uma política pública de ‘embranquecimento’. Isso significa dizer que para o trabalho escravo o africano serviu – e o seu tráfico foi uma das maiores fontes de renda da coroa portuguesa, por séculos. Mas, para o trabalho assalariado, com dignidade e reconhecimento, foram trazidos outros povos – italianos, alemães, poloneses, japoneses.
O processo de dominação formulado pelos colonizadores – brancos, cristãos, europeus – incutiu na sociedade o entendimento de que os negros e índios eram sujos, indolentes, trapaceiros e que praticavam rituais demoníacos, além de representarem um risco a mais por serem a maioria da população. Os imigrantes inegavelmente contribuíram para o enriquecimento da nossa diversidade, mas vieram para cá em condições privilegiadas em relação aos africanos e, de certa forma, serviram para dar uma ‘clareadinha’ no povo brasileiro, além de ajudarem a consolidar os padrões eurocêntricos de vários governos (já) republicanos. Desde o Império, os governantes tinham o objetivo essencial de aniquilar as identidades culturais, étnicas e religiosas trazidas pelos negros da África e perpetuada por seus descendentes, como forma de resistência. O mesmo processo, guardadas as devidas especificidades históricas e culturais, aconteceu com os índios e mais tarde com ciganos e outros grupos minoritários.
Manter a sujeira para debaixo do tapete
Setores da grande imprensa e da Academia, a partir de agora, precisam enfrentar este antigo dilema, reavivado por este incômodo relatório: vai, obrigatoriamente, repensar suas linhas editoriais e de pesquisa para manter o establishment, ou correr o risco de ter que – necessariamente – admitir o óbvio: a) o Brasil vive uma das mais perversas práticas do racismo – que é o estrutural – há cinco séculos; b) que esta prática racista não se limita às fronteiras do tom da pele ou ascendência e, ainda hoje, tem como alvo os signos e símbolos utilizados pelas comunidades religiosas afrodescendentes e outras minorias; c) que a marginalização econômica e social dos povos negros e indígenas – que são as bases da cultura do Brasil – fragilizou ainda mais essas populações; d) que o racismo estrutural é um dos motivos da desmobilização e invisibilidade social e cultural de negros e índios; e) que os neopentecostais se aproveitam do preconceito racial – que é latente e histórico na sociedade brasileira – para estruturarem seus discursos e práticas persecutórias e arregimentar cada vez mais fiéis que se transformam em poderio político, eleitoral e comunicacional; f) que é comum – para governantes, jornalistas e formadores de opinião – a demonização e criminalização das religiões dos povos que foram escravizados e que são considerados primitivos e não civilizados; g) que a intolerância religiosa que assola o país e vitimiza milhares de homens, mulheres e crianças é o reflexo do racismo enraizado na sociedade.
Bom, as redações e os pesquisadores podem também optar em nem sequer pensar sobre esses temas e manter a sujeira do racismo brasileiro – transfigurado em crescente intolerância religiosa – bem varridinho, para debaixo do tapete. Mas, depois da divulgação do relatório da MRG, o tapete corre o risco de ter que crescer muito para abrigar um grande lixão.
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Jornalista, assessora de imprensa da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa e coordenadora de Comunicação Social do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP)