Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Suzana Singer

Em meio a uma campanha eleitoral que muitos apontam como a ‘mais baixa’ desde a redemocratização, a Folha tocou em um ponto sensível. Há oito dias, publicou a declaração de uma bailarina que diz ter ouvido Monica Serra contar que fez um aborto. A mulher do candidato tucano teria relatado a suas alunas da Unicamp, em 1992, que, quando estava no exílio, precisou interromper uma gravidez.

O depoimento circulava desde 11 de outubro na internet, mas a Folha foi o único órgão da grande imprensa a noticiá-lo. No dia seguinte, a assessoria de imprensa de José Serra divulgou uma nota negando que isso tenha ocorrido.

A ousadia da Folha mobilizou leitores que não costumam reclamar. De 118 mensagens, 61% eram de remetentes escrevendo pela primeira vez a um ombudsman. E 80% desaprovaram a publicação. O principal argumento é que se trata de assunto de foro íntimo. ‘Comprometeram a dignidade de uma mãe de família, de uma avó e de uma cidadã’, escreveu um leitor.

A legitimidade de invadir a privacidade de um político depende muito da relevância pública do que se pretende expor.

Neste caso, a pertinência jornalística é difícil de ser contestada, já que o tema foi explorado à exaustão na campanha. Serra disse ser contra a legalização do aborto, ‘até por uma questão pessoal’ e também ‘porque se liberaria uma verdadeira carnificina’. Há um mês, segundo a Agência Estado, Monica Serra disse que ‘Dilma era a favor de matar criancinhas’.

Parece legítimo, então, informar o leitor sobre o depoimento da ex-aluna para que ele tenha um dado a mais na avaliação dos candidatos.

Nos EUA, a vida privada de políticos é considerada de interesse coletivo. Na última eleição presidencial, a republicana Sarah Palin revelou que sua filha Bristol, de 17 anos, estava grávida do namorado, de 18, e anunciou que os dois se casariam. Palin defendia a abstinência antes do casamento.

Na França, a lei proíbe qualquer ‘ataque à privacidade’, inclusive de políticos. Por isso, a imprensa não falou da filha secreta de Mitterrand (1916-96), mesmo que todo mundo soubesse de sua existência. Essa regra tende a ser menos rígida quando as personalidades se expõem, como vem acontecendo com o primeiro casal Sarkozy-Bruni.

Os jornais de prestígio ingleses não têm pudor de investigar segredos de alcova, desde que tenham implicação pública. Neste ano, David Laws, que tinha acabado de assumir como secretário do Tesouro, foi pego mentindo sobre suas despesas de parlamentar. Ele fez isso porque ser honesto sobre seus gastos revelaria que é gay, o que acabou acontecendo quando o escândalo estourou. Laws renunciou.

No Brasil, preserva-se a privacidade de políticos, exposta em casos excepcionais. O filho que Fernando Henrique Cardoso teve fora do casamento só foi publicado pela Folha, no ano passado, quando o ex-presidente decidiu reconhecê-lo. O rapaz já está na universidade.

Miriam Cordeiro surgiu, em 1989, por causa de Fernando Collor, que levou a ex-namorada de Lula à TV para contar que o então candidato tinha oferecido dinheiro para que abortasse. Foi um escândalo e virou sinônimo de baixaria política.

Além da relevância pública, é preciso considerar o grau de veracidade do relato. As regras do bom jornalismo -apuração cuidadosa, documentação, cruzamento de fontes, outro lado- costumam ser suficientes para derrubar 99% dos boatos que circulam na web. O problema é que o ‘caso Monica Serra’ é quase inverificável.

Não é possível ter provas concretas de um possível procedimento médico feito há décadas, fora do país. De uma turma de cerca de dez alunas, a Folha conversou com três, que confirmaram a história -uma não foi incluída na edição, segundo a Redação.

As testemunhas não têm, aparentemente, interesse pessoal em prejudicar a mulher de Serra. A bailarina que iniciou a polêmica votou no PSOL no primeiro turno e votaria agora em Dilma Rousseff, mas isso não é suficiente para desmerecer seu depoimento. Pelas circunstâncias, a reportagem parece frágil, é verdade, mas não a ponto de justificar sua não publicação.

É, sem dúvida, polêmico e desconfortável fazer jornalismo da vida privada. Mas, à medida que os dois candidatos -Serra e Dilma- assumem personagens quase fictícios nessa campanha, justificam-se os esforços em tentar desnudá-los.’