A discussão sobre a aplicação aos portais de internet dos limites de capital previstos na Constituição para empresas jornalísticas e de radiodifusão mostrou, durante debate realizado na quarta-feira (7/7), em Brasília, que há duas teses jurídicas diametralmente conflitantes sobre o tema.
A audiência ocorreu na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara. De um lado, estava o advogado da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio de Televisão (Abert), Gustavo Binenbojn. A associação já questionou o Ministério das Comunicações e a Procuradoria Geral da República sobre a legalidade da atuação de portais jornalísticos controlados por empresas estrangeiras, como Terra e Yahoo!.
Para Binenbojn, existe um direito posto pela Constituição, e o artigo 222 é claro ao estabelecer os limites de capital e dos interesses nacionais. ‘A interpretação literal da Constituição não é a única, mas é a mais democrática, e ela diz que qualquer empresa jornalística está sujeita às regras do artigo 222. Empresa jornalística é quem apura e divulga informação como atividade econômica’. diz o advogado da Abert.
Para o advogado Floriano Peixoto de Azevedo Marques, que defende o portal Terra, a limitação de capital do artigo 222 não se aplica em hipótese alguma a portais de internet. ‘Na interpretação literal, não dá para aplicar o artigo 222 a fórceps. Uma empresa jornalística é aquela que publica informações periódicas, e na internet isso não existe. Aliás, a informação é demandada pelo usuário e pode ser consumida a qualquer tempo. Isso muda tudo.’
Floriano Azevedo Marques lembra ainda que o voto do ministro Carlos Ayres Brito, do Supremo Tribunal Federal, ao revogar a Lei de Imprensa com base em sua inconstitucionalidade, foi claro ao dizer que a ‘comunicação internetizada’ está fora do escopo da Constituição.
Histórias diferentes
Floriano Marques e Gustavo Binenbojn também divergem na análise da Constituição à luz da perspectiva histórica. Para Binenbojn, o legislador, ao promover a emenda Constitucional de 2002 que alterou o artigo 222, introduziu o parágrafo terceiro, que amplia a todos os meios de comunicação social eletrônica o disposto no artigo. O advogado do Terra, contudo, entende que esta referência a qualquer meio de comunicação se refere apenas à aplicabilidade do artigo 221 da Constituição, que trata do conteúdo editorial, e não ao controle de capital.
E reforçando a polêmica em torno da questão, o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), que participou das negociações da emenda constitucional de 2002, concorda com a tese de Marques, mas o deputado Julio Semeghini (PSDB-SP), que também atuava como parlamentar na época, entende, assim como Binenbojn, que o parágrafo terceiro do artigo 222 da Constituição cria uma limitação de capital a qualquer meio de comunicação social.
Outro país
Para Floriano Marques, o objetivo da Carta Magna é a proteção da soberania nacional, e não é com o controle de capital que isso está assegurado. ‘Nada impede que uma empresa brasileira coloque apenas conteúdos estrangeiros’, diz. ‘Nesse sentido, para o bem da liberdade de expressão e pluralidade de informação, é preferível que se tenha uma empresa estabelecida no Brasil, com funcionários brasileiros, decisão editorial brasileira, gerando atividade no país, do que uma empresa fazendo tudo isso estabelecida em outro país’, diz. Para ele, a limitação de capital estrangeiro só se justificaria se fosse para preservar um ‘cartório empresarial’ e, nesse caso, diz, ‘corre-se o risco de criar um oligopólio, igualmente rechaçado pelo artigo 220 da Constituição’.
Marques sugere ainda que se existe um problema, deve ser feito um novo ajuste na Constituição. ‘Se o problema é que existe uma situação não isonômica onde alguns têm limites de capital e outros não, é preciso mudar de novo a Constituição, porque ela não se aplica à internet, como reconheceu o ministro Carlos Ayres Brito.’ Ele lembrou que apenas três países do mundo estabeleceram controles à internet: Irã, China e Vietnam, e que o Brasil é o único país em que isso está sendo resolvido pela Justiça.
Para Binenbojn, ‘se é impossível aplicar a Constituição aos portais de internet, então tem que ser declarada a derrota da Constituição’. Ele ressalta que a preocupação não é com blogs ou redes sociais, mas com uma invasão empresarial que possa causar risco à soberania nacional. E lembra que tratados internacionais podem perfeitamente ser utilizados para coibir abusos quando praticados a partir de outros países utilizando a internet como meio.
Fiscalização limitada
Enquanto isso, o Ministério das Comunicações evita entrar em polêmica. O consultor jurídico do Minicom, Édio Henrique de Almeida, disse que cabe ao ministério fiscalizar o artigo 222 apenas no que diz respeito a empresas de radiodifusão. Gustavo Binenbojn, da Abert, lembrou que há um parecer da própria consultoria jurídica do Minicom, que é vinculada à Advocacia Geral da União (AGU), no sentido de que o artigo 222 deve ser aplicado a portais. A base do parecer, de fato, é a Lei 10.610, de 20 de dezembro de 2002, que praticamente repete a Constituição e diz ainda que cabe aos órgãos de registro comercial ou de registro civil das pessoas jurídicas fiscalizar a obediência aos limites societários. Ou seja, não há um órgão regulador para esse mercado, nem uma definição de empresas jornalística. Segundo a lei, cabe ao presidente da República dizer quem no Poder Executivo fiscaliza o tema.
Segundo Ricardo Pedreira, diretor executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Procuradoria Geral da República encaminhou aos ministérios públicos de São Paulo e do Rio Grande do Sul (onde estão as sedes dos grupos Brasil Econômico e Terra) despachos para investigação de eventuais irregularidades.
***
Deputados defendem Internet livre; debate sobre regulamentação ficaria para 2011
Da Redação do Tela Viva, 7/7/2010
A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados debateu na quarta-feira (7/7) a aplicação dos princípios do artigo 222 da Constituição Federal sobre portais de internet. Ao final do debate, percebe-se que, da parte dos deputados, o princípio de uma Internet livre de amarras é a principal preocupação, mas há o reconhecimento de que existem problemas a serem abordados e discussões a serem feitas.
Basicamente, a discussão é se os portais devem ou não ter restrição de capital, como têm empresas de radiodifusão e empresas jornalísticas em geral (até hoje, jornais e revistas). O debate surgiu de um requerimento do deputado Eduardo Gomes (PSDB-TO), ex-presidente da comissão, e que já havia, durante o seu mandato à frente da CCTCI, em 2009, provocado o Ministério das Comunicações a se manifestar. Este ano, a Abert (Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão) e a ANJ (Associação Nacional de Jornais) também passaram a questionar o Minicom e a Procuradoria Geral da República sobre o mesmo tema.
A preocupação dos grupos de mídia é com a interpretação geral da Constituição, mas também com os casos específicos do postal Terra (controlado pela Telefônica) e com o grupo controlador dos jornais Brasil Econômico e O Dia. A acusação da ANJ é de que o grupo português Ongoing controla os jornais por meio de uma ‘interposta’ brasileira, a esposa do dono do grupo português.
A audiência pública teve quórum elevado, com manifestação de 11 deputados e presença de outros tantos. Em se tratando de um assunto que não é matéria de nenhuma proposição legislativa, trata-se de uma mobilização atípica na comissão, o que denota a relevância do tema. Em todas as manifestações, contudo, ficou clara a preocupação dos parlamentares com a questão da liberdade na internet e com a necessidade de um debate mais amplo sobre o tema, possivelmente a partir da próxima legislatura. Outra preocupação dos parlamentares é que a Justiça não se manifeste sobre o tema antes de haver, por parte do Congresso Nacional, uma posição definida.
O deputado Eduardo Gomes, autor do requerimento, disse que esse é um ‘primeiro passo de discussão, que deve ser objeto de debate no Congresso e no Judiciário’. Ele explicou que existe uma dificuldade de se identificar as instâncias que deveriam fazer a fiscalização desses princípios constitucionais.
Capital vs. interesses
Para o deputado Jorge Bittar (PT-RJ), existe de fato uma grande dificuldade de fiscalizar a atuação de empresas jornalísticas que se estabeleçam em outros países, mas ele ressaltou que a Internet é um ambiente de ampla liberdade e que o simples ‘controle de capital não assegura a preservação dos interesses nacionais’.
Ele apontou caminhos como fomentos e cotas como mecanismos mais eficientes de garantir os interesses brasileiros, exemplificando com o PL 29/2007, que cria novas regras para a TV por assinatura e cotas de programação e que nesse momento é debatido pelo Senado. ‘Em um ambiente de ampla liberdade de escolha como é a Internet, os limites não podem ser os mesmos de um ambiente em que há restrições de espectro e unidirecionalidade na informação’, disse Bittar.
Para o futuro
Para o deputado Julio Semeghini (PSDB-SP), o Congresso tentou, no âmbito do PL 29/2007 e em outras ocasiões, discutir a internet. ‘Mas de comum acordo concluímos que por se tratar de uma coisa nova, de uma nova economia, devíamos deixar ela livre’, disse. O deputado fez um apelo à Comissão de Ciência e Tecnologia para que sinalize ao Judiciário que essa é uma matéria ainda em discussão pelos parlamentares, e que há muitas interpretações. ‘Trata-se de uma questão séria e importante que merece uma discussão profunda’, disse Semeghini.
Ele discordou dos argumentos colocados pelo advogado Floriano Peixoto de Azevedo Marques, do portal Terra, que ponderou que as restrições simplesmente fariam com que as operações de Internet fossem levadas para fora do país, mas também discordou do advogado da Abert, Gustavo Binenbojn, para quem a aplicação do limite de capital estrangeiro é irrestrito a qualquer empresa de comunicação social. ‘Temos que entender direito até que ponto um portal é um veículo de comunicação social como a TV ou os jornais’, disse Semeghini.
Para o deputado Alexandre Cardoso (PSB-RJ), a omissão do Congresso Nacional sobre o tema, ou uma decisão apressada, seriam ‘igualmente irresponsáveis’. ‘Essa é uma questão para a próxima legislatura, sem dúvida. Não queremos nenhum controle da internet, e não estou seguro se um portal é ou não uma empresa de comunicação’, disse. Ele também concorda com o deputado Julio Semeghini de que essa questão precisa ser sinalizada ao Supremo antes que haja uma decisão judicial que atropele o Legislativo. Para a deputada Solange Amaral (DEM-RJ), da mesma forma que a internet é uma conquista da sociedade, ela não pode ficar sem nenhuma regulação.
Sem controle
O deputado e ex-ministro das Comunicações Miro Teixeira (PDT-RJ) foi um dos mais enfáticos durante a audiência pública. ‘Quando estava no ministério já havia sido questionado sobre esse ponto e volto a repetir a minha posição. Não pode haver interferência governamental sobre a internet. Ela não é controlável e não deve ser controlada’, disse o deputado, ressaltando a importância de que se preservem os direitos individuais que estão na Constituição e na legislação. ‘Se quiserem regulamentar a internet, encontrarão pela frente um teimoso. Regulamentar a internet, não!’, disse Miro Teixeira.
Chance perdida
A deputada Luiza Erundina (PSB-SP) chamou a atenção para o vazio legal que existe em função da idade do Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, e da própria Lei Geral de Telecomunicações, de 1997. ‘A resposta do Congresso a esse vazio é sempre pontual, quando deveria ser ampla.’ Ela lamentou o fato de que, das empresas de comunicação, apenas a Abra (associação que representa os interesses da Band e da Rede TV!) tenha participado da Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro passado. ‘As demais empresas perderam uma grande oportunidade de ouvir e dizer. Se entre segmentos empresariais há conflitos, imagine quando se ouve toda a sociedade. Da conferência saíram 633 propostas, algumas mais frágeis, outras fortes. Minha sugestão é que a sociedade seja ouvida sobre esse tema’.
Segundo Erundina, para as empresas é mais fácil fazer uma representação à Justiça do que politizar a discussão. Ela chama a atenção ainda para a falta de mecanismos de controle e fiscalização dos dispositivos constitucionais. ‘Falar nesses mecanismos causa urticária às empresas, mas elas estão sentindo falta agora’, diz a deputada. Ela ressalta a importância de seguir os princípios do interesse público, do acesso universal à informação e da democratização dos meios como forma de promover o debate sobre um novo marco legal.
O deputado Paulo Henrique Lustosa (PMDB-CE) reiterou o que disse a deputada Erundina, e afirmou que o Código Brasileiro de Telecomunicações e a Lei Geral de Telecomunicações carecem de uma discussão para ‘o novo tempo’. Segundo ele, o debate do PL 29 mostrou como é complicado um debate setorial, e que essa discussão sobre o artigo 222 da Constituição ‘mostra que não é possível olhar a questão apenas do ponto de vista empresarial’.
Para o deputado, a internet não deve ser regulada. ‘O que deve ser regulado são as condutas ilegais, na internet ou fora dela’. Ele disse que, por herança do Código Brasileiro de Telecomunicações, há uma confusão na radiodifusão sobre meio e conteúdo. ‘Essa é uma discussão que não deve ser pontual e que deve ser abordada pela próxima legislatura.’
Jogo de poder
Coube ao deputado Paulo Teixeira (PT-SP) lembrar que existe um objetivo político por trás da restrição de capital na mídia: a preservação do poder e da estabilidade política. Para o deputado, a Constituição não limita a brasileiros o direito de exercer cargos públicos por acaso, assim como não é por acaso que há o limite ao capital estrangeiro em empresas jornalísticas. ‘O que vemos nessa sessão é uma homenagem à liberdade na internet, e de fato ela deve ter sua liberdade defendida sempre. Mas quando a Constituição diz que tem que restringir o capital em um veículo formador de opinião, aquilo existe para evitar que um estrangeiro use o veículo para desestabilizar o poder e a soberania nacional’, diz o deputado.
Ele apóia a tese de que se grupos estrangeiros quiserem atuar em comunicação, é preciso mudar a Constituição. ‘Ainda resta uma dúvida, que é saber se os portais são meios de comunicação, mas aí eu pergunto ao meu amigo deputado Jorge Bittar: se um portal de internet coloca uma notícia atacando um parlamentar, isso não pode desestabilizar o poder? Sim, e de forma muito mais eficiente. São empresas capitalistas que podem interferir no poder’, refletiu o deputado. Para Paulo Teixeira, a Constituição não deve pormenorizar a questão tecnológica, e não existe pressão para que se mude a carta em função dessa questão. ‘A situação está regulada. A liberdade de expressão e a liberdade da internet estão no centro desse debate. Onde houver abusos, o Estado deve atuar.’
Já o deputado Marcelo Itagiba (PSDB-RJ) diz que ‘só se pode controlar o que for controlável, e a internet é incontrolável até mesmo por regimes de exceção’. Ele diz que o que existe na Constituição é uma reserva de mercado estabelecida anos atrás, ‘depois que o grupo Time-Life implantou uma emissora no Brasil’ e que depois, com a mudança da legislação, ‘veio a dar origem ao maior grupo de comunicação brasileiro [Globo]’. Para o deputado, tentar controlar o incontrolável ‘é fazer uma lei que não poderá e não deverá ser aplicada’. Ele lembrou que com o fim da Lei de Imprensa não há sequer mecanismos claros para que se busquem direitos. ‘Faltam mecanismos infraconstitucionais que assegurem os direitos individuais’, disse.