A edição dos jornais internacionais de terça-feira (13/9) trouxe em meio ao noticiário – em muitos casos, com destaques na primeira página – uma informação sobre a explosão mais distante já localizada na história da civilização. Muitos telejornais trataram do caso no dia anterior. A explosão está relacionada à morte de uma estrela, evento ocorrido há 12,8 bilhões de anos (portanto, a 12,8 bilhões de anos-luz – um ano-luz equivale a aproximadamente 9,5 trilhões de quilômetros), mas que só no domingo, 4 de setembro, atingiu a Terra.
Qual o significado deste acontecimento, por que ele está na mídia e qual a importância, especialmente da mídia impressa, num evento desta natureza? Para responder a essas questões certamente vale a pena considerar que se trata de uma longa história e que está apenas começando, ao menos em relação ao grande público.
Para estabelecer-se um ponto de partida é preciso dizer que essa estrela, individualmente a mais distante já detectada, é do tipo supernova. Estrelas supernovas têm massa várias ou muitas vezes superior à do Sol e quando explodem ao fim de uma evolução relativamente rápida (quanto maior a massa estelar, mais rápida sua evolução, acelerada por sua própria gravidade) podem brilhar mais do que uma galáxia inteira, os ‘universos-ilha’, ou enxames cósmicos reunindo bilhões de estrelas como nossa própria galáxia, a Via Láctea.
A supernova em questão, identificada como GRB050904 (sigla em inglês para algo como rajada de raios gama combinada com a data da detecção, lida de trás para a frente), foi inicialmente identificada pelo satélite norte-americano Swift, operado pelo Centro de Vôo Espacial Goddard, da Nasa. Como acontece nesses casos, a coordenação do Swift repassa imediatamente os dados a observatórios que integram uma rede de observação para a localização precisa da fonte, tarefa que o satélite não pode cumprir.
Tecelãs de matéria
Como objeto estelar mais distante já observado, a GRB050904 é também a mais recuada no tempo. No cotidiano, quando observamos um objeto mais próximo, pode-se dizer que sua imagem é mais recente que a de um objeto distante. Assim, a imagem de uma árvore, por exemplo, a 20 metros de distância, é mais recente que a de uma montanha a 15 quilômetros de distância. Ou seja, a radiação luminosa emitida pela árvore demorou menos tempo para chegar à retina do observador que a emissão feita pela montanha. No cotidiano, essas diferenças são insignificantes, mas no caso de fontes celestes o cenário muda inteiramente.
O fato de assuntos dessa natureza ocuparem as primeiras páginas dos jornais deve ser celebrado como uma vitória da racionalidade/criatividade da ciência permeando o cotidiano das pessoas e trazendo uma nova imagem dos mistérios profundos da vida.
Estrelas de grande massa e antigas, como a supernova em referência, estão intimamente relacionadas à vida como tecelãs de matéria elaborada a partir de um elemento químico simples e abundante no Universo, o hidrogênio. Isso significa que estamos aqui como descendentes dessas gigantes do passado embora, à primeira vista, isso possa parecer tão desconcertante quanto poderosamente mágico.
Em clima de hostilidade
O destaque dado pela mídia a uma estrela tão distante indica, de forma inequívoca, uma perspectiva da ciência nas sociedades não apenas com função prática, mas como fonte de reflexões que dizem respeito à própria existência do Universo, da vida e do significado profundo de estarmos aqui.
Numa sociedade de tradição científica recente, marcada por um processo de urbanização completado há três décadas, como é o caso do Brasil, a oferta social desse tipo de bem cultural é de fundamental importância para a educação dos sentidos, ainda que considerações desse tipo não sejam freqüentes mesmo entre educadores. Daí a importância especialmente da mídia impressa, com mais condições de tratar esses temas de imediato, sem perder, necessariamente, a dimensão de sua complexidade.
Talvez fosse interessante considerar que o desenvolvimento do jornalismo científico no Brasil dependeu e ainda depende quase que exclusivamente dos próprios jornalistas envolvidos, às vezes até com certa hostilidade das empresas em que trabalham. As empresas jornalísticas, de forma geral, nunca se envolveram mais profundamente com educação científica (ainda que algumas exceções devam ser registradas, caso da Folha de S. Paulo), o que mostra a dimensão de seus próprios analfabetismos científicos.
Exemplo de cientista
Uma revisão de conceitos poderia facilmente levar a concluir que posturas éticas defendidas freqüentemente em editorais repetitivos não têm como serem sustentadas na ausência de um processo de sensibilização pela educação. E, neste caso, a presença da cultura científica é absolutamente indispensável, por muitas e diferentes razões.
A supernova GRB050904 emergindo como um fantasma poderosamente energético (a radiação gama é a mais intensa forma de energia) das profundezas do espaço-tempo tem algumas relações particulares com a ciência brasileira. Uma delas diz respeito à decifração do mecanismo de explosão de estrelas supernovas por perda de energia, trabalho realizado pelo físico russo naturalizado norte-americano George Gamow (1904-1968) em parceria com o físico brasileiro Mario Schenberg (1914-1990). Ficou conhecida como Processo Urca, por analogia com a velocidade em que se perdia dinheiro no antigo Cassino da Urca, no Rio de Janeiro.
O professor Schenberg, exemplo de inteligência, dignidade, sobriedade e afeto humano entre os grandes cientistas brasileiros, embora tenha destrinchado o interior dessas estrelas gigantes, permaneceu alheio à confirmação de sua própria descoberta, quando a primeira das mais próximas delas, a Supernova de Shelton, explodiu na Grande Nuvem de Magalhães, galáxia satélite da Via Láctea, em 1987. A essa época o professor Schenberg já estava enfermo, confinado a seu universo interior.
Nos melhores padrões
Se fosse possível para parte da classe política brasileira tomar conhecimento dos trabalhos do professor Schenberg e das maravilhas do céu que condicionam a ética e a estética dos homens esclarecidos, certamente haveria esperança de maior dignidade no trato da coisa pública em suas múltiplas manifestações. Um interlocutor eventual pode alegar que isso não passa de pura utopia. Pode-se dizer, em contraposição, que a vida é a maior das utopias e, ao que tudo parece indicar, pulsa em todo o Universo.
Apenas uma outra consideração, rápida e por isso mesmo um tanto sumária em relação à GBR050904, é que, uma vez captada pelo Swift, foi localizada no céu por jovens astrônomos brasileiros, trabalhando nos Andes chilenos, num observatório de que o Brasil é um dos sócios.
Por último e também de forma passageira, é preciso dizer que a qualidade do jornalismo científico no Brasil se equipara à dos melhores padrões internacionais. Muito acima do nível praticado no restante da América Latina. A matéria do repórter Salvador Nogueira, publicada pela Folha de S. Paulo (A18, 14/09) com o título de ‘Grupo vê explosão mais velha do Universo’, por exemplo, é prova inequívoca deste nosso potencial.