Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

As TVs como tribunal de exceção – II

Escrevi um artigo, publicado neste Observatório, ‘As tevês como tribunal de exceção’ (30/03/2010), quando do caso do julgamento do pai e da madrasta de Isabella Nardoni, acusados ambos de assassiná-la.


Na ocasião, argumentei que as TVs, na Sociedade do Espetáculo, que é a nossa, ocupam o lugar da justiça, constituindo-se como um tribunal de exceção, embora não como qualquer tribunal, mas como o epicentro déspota de um sistema de impostura acusatória que individualiza a culpa, como regra geral, o que me recorda, neste momento, aquela conhecida sentença de Walter Benjamin, a saber: ‘Na tradição do oprimido, que é a que vivemos, o estado de exceção é, na verdade, regra geral.’


E é regra geral a tradição do oprimido porque nossa história tem sido esta que o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, designou como a de oprimidos e opressores, tal que, para que estes últimos possam roubar, sequestrar, concentrar as riquezas econômicas, culturais, eróticas – e uma infinidade de outras – produzidas pelo conjunto da sociedade, os oprimidos devem fazer-se, eis o óbvio, como oprimidos, razão pela qual o estado de exceção é regra geral, por ser o dispositivo de poder usado para que os oprimidos aceitem a opressão.


A sociedade do espetáculo


Em nossa atual era da indústria cultural, no entanto, para que a tradição do oprimido se faça como regra geral, temos o que é possível chamar de dispositivos integrados de opressão. São eles: 1) o aparelho repressor do Estado ( que não é de direito coisa alguma), constituído pelas polícias civis, militares, municipais e as forças armadas; 2) os poderes constituídos do Estado, como o Executivo, o Legislativo e o Judiciário; 3) o aparelho clandestino do Estado, que são os paramilitares, ou os para-narco-militares, ou as privadas forças de segurança;4) os oligopólios privados, como os da comunicação, do petróleo, o farmacêutico, o dos commodities, constituídos por cerca de 500 empresas que mandam no mundo; 5) as agências internacionais criadas após a II Guerra Mundial, como a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC, Organização Mundial do Comércio; 6) o monopólio do dólar, como moeda mundial de referência; 7) as estratégias de invenção de inimigos, como terroristas e traficantes, usadas especialmente pelos Estados Unidos e pela Otan, a fim de justificar agressões de toda sorte à soberania de países e povos; 8) as igrejas, religiões e seitas do mundo todo, que, com raríssimas exceções, como no caso da Teologia da Libertação, são usadas para confundir e tergiversar, criando a Estória da Carochinha de uma vida pós-morte; 9) a sociedade do espetáculo planetária, que basicamente está a serviço dos oito dispositivos integrados de opressão anteriormente explicitados, sendo a que realiza o seu papel na tradição do oprimido, através de um efeito de ilusão constituído pela farsa de que são a vontade geral da nossa atual civilização, em todos os planos da vida, o afetivo, o cultural, o sexual, o informacional, o corporal, o humorístico e assim por diante.


Por causa disso, esse último dispositivo da dominação planetária, a sociedade do espetáculo, é o mais estratégico e por isso também, porque é o mais estratégico, não apenas tem que estar nas mãos de verdadeiros terroristas paramilitares armados – armados, bem entendido, através do controle/posse da infra-estrutura de comunicação –, mas também porque devem funcionar como o epicentro do tribunal de exceção, como regra geral, o tribunal de exceção a serviço de todos os outros dispositivos de controle mencionados antes, integrando-os a todos, via satélite.


O esporte mais visto e manipulado


Eis o porquê, no caso atual do crime de sequestro e assassinato da atriz Eliza Samudio, supostamente cometido/planejado pelo goleiro Bruno, do Flamengo, os meios de comunicação, e em especial as TVs privadas, novamente organizam o espetáculo do tribunal de exceção, transformando a culpa individual em regra geral, com o propósito nítido de continuar mantendo o Estado de exceção da tradição do oprimido, que é a que vivemos e, por consequência, manter o privilégio de meia dúzias de paranoicos narcísicos que estão a hipotecar o presente e o futuro da vida do planeta.


Individualizando a culpa, as TVs privadas, como caixas de ressonância dos meios de comunicação de modo geral, não informam (tendo em vista a bola da vez do assassinato de Eliza Samudio) o que realmente interessa, a saber: a fortuna concentrada nas mãos de poucos e, por conseguinte, o uso vaidoso, prostituto, arrogante e autoritário que esses poucos fazem do poder econômico de que usufruem ilegitimamente.


No caso do goleiro Bruno, do Flamengo, interessa é notar os salários escandalosos de alguns poucos privilegiados jogadores de futebol, por ser um esporte patrocinado pelos oligopólios privados e porque é, de longe, o esporte mais visto e manipulado politicamente do planeta – veja-se a propósito, a atual Copa do Mundo de Futebol.


Circo, às vezes pão, e bastante cacete


Como é possível um único jogador – e qualquer pessoa – ganhar mais de 100 mil reais por mês, às vezes milhões? É evidente que esse poder todo que adquirem vai ser, de uma forma ou de outra, usado indevidamente, seja através de exibicionismos diversos; de cinismos, indiferenças e vaidades; seja, inclusive, mantendo uma legião de subservientes, humilhados e obedientes empregados, ainda que parentes, como no caso do goleiro Bruno, sob o seu controle, sobretudo se consideramos, ainda como no caso de Bruno, a hipótese de uma pessoa que tenha se enriquecido isoladamente, vindo de uma família tão pobre,uma vez que passa a concentrar muito poder no interior da própria família, transformando-se num verdadeiro déspota, razão pela qual pôde/pode ter a seu serviço (de novo Bruno, mas não apenas) antigos amigos, ex-policiais, sobrinhos, como serviçais bem mandados, inclusive para matar, se for do interesse do amo.


É curioso que, principalmente durante a década de 90, os mesmos meios de comunicação tenham diariamente chamado a atenção sobre os salários de alguns funcionários públicos, considerados marajás, os quais, por mais altos, não chegam sequer a resvalar nas astronômicas cifras dos salários, rendas e cachês de alguns jornalistas, atores e animadores de auditório dos próprios meios de comunicação, sem contar a fortuna acumulada por atores de cinema de Hollywood, por diretores de multinacionais, cantores, especuladores, empresários, traficantes e assim por diante.


Claro que isto, informar o que interessa, seria pedir demais aos meios de comunicação, uma vez que o Estado de exceção contra os oprimidos tem que ser mantido com o circo, às vezes pão, bastante cacete e muitos, milhares, milhões e bilhões de assassinatos de crianças, jovens, adultos, velhos, humanos e não humanos, inclusive o da jovem Eliza Samudio, assassinada barbaramente pela arrogância, exploração sexual e egoísmo dos opressores jogadores da roleta russa do dinheiro contra a vida.

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Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), poeta, escritor e ensaísta