O caso Eliza Samudio
Que tem chocado o Brasil
Emerge como prelúdio
De um grande desafio:
Exortar nossa Justiça
Pra deixar de ser omissa
Ante o machismo tão vil!
Trata-se de um momento
De grande reflexão
Pois não basta só lamento
Ou alguma oração
É hora de provocar
Propondo um outro olhar
Sobre processo e ação
Saiu na televisão
Rádio, internet e jornal
Notícia em primeira mão
Toda manchete é igual:
Ex-amante de goleiro
(Aquele cheio de dinheiro!)
Sumiu sem deixar sinal
Muita especulação
– discurso de autoridade –
Uns dizem que é armação
Outros dizem que é verdade
Polícia e delegacia
Justiça e promotoria:
Fogueira de vaidades!
Mei-mundo de advogados
Investigação global
Cada um no seu quadrado
Falando em todo canal
Subjacente a tudo
Um peixe muito graúdo:
Androcentrismo total!
A mídia fala em Bruno
Eliza e gravidez
Flamengo, orgia e fumo
– esta é a bola da vez! –
Tem muito ‘especialista’
Em busca de alguma pista
Pra ser o herói do mês
E a história se repetindo
Mudando apenas o nome
Outra mulher sucumbindo
Sob ameaça dum homem
Uma vida abreviada
Cuja morte anunciada
A estatística consome
Assim é a violência
Lançada sobre a mulher
Ela pede providência
E cara faz o que quer
Mas a Justiça, que é lerda,
Machista, ‘fazendo merda’
Vem com papo de mané
E oito meses depois
Da ‘denúncia’ inicial
Que é o feijão com arroz
Do distinto tribunal
Nadica de nada existe
Mas autoridade insiste
Que isto, sim, é normal:
‘A culpa é do Instituto
Que não mandou o exame’
– isto soa como insulto
e daquele mais infame –
Não era caso de urgência?
– tenha santa paciência! –
Para que serve um ditame?
A moça buscou amparo
Na Justiça do país
Agiu correto, é claro
E esperou do juiz
O tal reconhecimento
Sobre o pai do seu rebento
Tendo a vida por um triz
Também fez comunicado
Ao campo policial
Dizendo que o namorado
Praticou crimes e tal
Buscou as vias legais
Enfrentou feras reais
Terá sido este o seu mal?
Mesmo com a delegacia
Dita especializada
E com toda a apologia
De uma Lei avançada
Faltou ter a ruptura
Com aquela velha cultura
De que a mulher é culpada
E o cumprimento legal
No caso, muito importante
Seria mais um arsenal
Para enfrentar o gigante
Mudar a mentalidade
De nossas autoridades
É fator preponderante
E para que isto ocorra
Entre outra alternativa
Antes que mais uma morra
E o caso fique à deriva
É preciso compreender
Que Justiça é pra fazer
Enquanto a mulher tá viva!
Sei que nada justifica
Que haja tanta demora
E enquanto o caso complica
A vítima ‘já foi embora’
Sem medida protetiva!
Sequer prisão preventiva!
Quanta inoperância aflora!
Se o exame era necessário
À elucidação do crime
O Estado-perdulário
Neste campo fez regime
Ficando no empurra empurra
No velho: ‘mulher é burra,
e joga no outro time’
Todo crime tem problemas
De toda diversidade
Assim como há esquemas
Também há dificuldades
Mas pra mim é evidente
Que o machismo presente
Premia a impunidade
Machismo compartilhado
Por gente de toda cor
Do goleiro ao empregado
Do primo ao executor
Autoridades também
Implicitamente têm
Um machismo inspirador
Cada ‘doutor’ se expressa
Centrado no garanhão
É o mote da conversa:
Fama, grana e traição
Ao se referir a ela
Falam da menina bela
Que fez filme de tesão
Falta a compreensão
Da questão relacional
Gênero, classe, profissão
Cor e status social
O processo é narrativa
Que emerge da saliva
Falocêntrica-legal
E ainda que alguns digam
‘Oh, Eliza, coitadinha’
E suas doutrinas sigam
Desvendando pegadinhas
A escola dogmática
Do direito-matemática
Perpetua ladainhas
Processo judicial
Só serve para punir?
Havia tanto sinal…
Não dava pra prevenir?
E a tal ação civil?
Alimentos deferiu?
Para o bebê consumir?
É um momento de dor
Para a família dos dois
O caso é multifator
Não basta dar nome aos bois
A lógica policial
Cartesiana e formal
Festeja tudo depois
Por isso se faz urgente
Conjugar gênero e direito
Pois um trabalho decente
Que surta algum efeito
Não se limita a julgar
Mas também a estudar
O cerne do preconceito
Homens que matam mulheres
Em relações de poder
Isto tem se dado em série
Mas é preciso entender
Que subjaz ao evento
Um histórico comportamento
Que vai construindo o ser
A nossa sociedade
Apesar da evolução
Reproduz iniquidade
E também muita opressão
Homem que bate em mulher
– E ‘ninguém mete a colher’ –
Sempre foi uma ‘lição’
Aprendida por goleiros
Delegados, professores
Motoristas, marceneiros
Pedreiros e promotores
Garçons e malabaristas
Médicos e taxistas
Juízes e adestradores
Por isto em nossos dias
De conquistas sociais
De novas filosofias
Direitos especiais
Não podemos aceitar
Justiça só pra apurar
Crimes tão excepcionais
Que a Justiça também
Sirva para (se) educar
Chega deste nhem-nhem-nhém
Deste eterno blablablá
A Lei Maria da Penha
Existe pra que não tenha
Tanta morte a lamentar!
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Advogada, professora universitária, doutoranda em Estudos de Gênero e Direito na UFBA em Salvador (BA); seu blog