Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cordel para Eliza

O caso Eliza Samudio

Que tem chocado o Brasil

Emerge como prelúdio

De um grande desafio:

Exortar nossa Justiça

Pra deixar de ser omissa

Ante o machismo tão vil!

 

Trata-se de um momento

De grande reflexão

Pois não basta só lamento

Ou alguma oração

É hora de provocar

Propondo um outro olhar

Sobre processo e ação

 

Saiu na televisão

Rádio, internet e jornal

Notícia em primeira mão

Toda manchete é igual:

Ex-amante de goleiro

(Aquele cheio de dinheiro!)

Sumiu sem deixar sinal

 

Muita especulação

– discurso de autoridade –

Uns dizem que é armação

Outros dizem que é verdade

Polícia e delegacia

Justiça e promotoria:

Fogueira de vaidades!

 

Mei-mundo de advogados

Investigação global

Cada um no seu quadrado

Falando em todo canal

Subjacente a tudo

Um peixe muito graúdo:

Androcentrismo total!

 

A mídia fala em Bruno

Eliza e gravidez

Flamengo, orgia e fumo

– esta é a bola da vez! –

Tem muito ‘especialista’

Em busca de alguma pista

Pra ser o herói do mês

 

E a história se repetindo

Mudando apenas o nome

Outra mulher sucumbindo

Sob ameaça dum homem

Uma vida abreviada

Cuja morte anunciada

A estatística consome

 

Assim é a violência

Lançada sobre a mulher

Ela pede providência

E cara faz o que quer

Mas a Justiça, que é lerda,

Machista, ‘fazendo merda’

Vem com papo de mané

 

E oito meses depois

Da ‘denúncia’ inicial

Que é o feijão com arroz

Do distinto tribunal

Nadica de nada existe

Mas autoridade insiste

Que isto, sim, é normal:

 

‘A culpa é do Instituto

Que não mandou o exame’

– isto soa como insulto

e daquele mais infame –

Não era caso de urgência?

– tenha santa paciência! –

Para que serve um ditame?

 

A moça buscou amparo

Na Justiça do país

Agiu correto, é claro

E esperou do juiz

O tal reconhecimento

Sobre o pai do seu rebento

Tendo a vida por um triz

 

Também fez comunicado

Ao campo policial

Dizendo que o namorado

Praticou crimes e tal

Buscou as vias legais

Enfrentou feras reais

Terá sido este o seu mal?

 

Mesmo com a delegacia

Dita especializada

E com toda a apologia

De uma Lei avançada

Faltou ter a ruptura

Com aquela velha cultura

De que a mulher é culpada

 

E o cumprimento legal

No caso, muito importante

Seria mais um arsenal

Para enfrentar o gigante

Mudar a mentalidade

De nossas autoridades

É fator preponderante

 

E para que isto ocorra

Entre outra alternativa

Antes que mais uma morra

E o caso fique à deriva

É preciso compreender

Que Justiça é pra fazer

Enquanto a mulher tá viva!

 

Sei que nada justifica

Que haja tanta demora

E enquanto o caso complica

A vítima ‘já foi embora’

Sem medida protetiva!

Sequer prisão preventiva!

Quanta inoperância aflora!

 

Se o exame era necessário

À elucidação do crime

O Estado-perdulário

Neste campo fez regime

Ficando no empurra empurra

No velho: ‘mulher é burra,

e joga no outro time’

 

Todo crime tem problemas

De toda diversidade

Assim como há esquemas

Também há dificuldades

Mas pra mim é evidente

Que o machismo presente

Premia a impunidade

 

Machismo compartilhado

Por gente de toda cor

Do goleiro ao empregado

Do primo ao executor

Autoridades também

Implicitamente têm

Um machismo inspirador

 

Cada ‘doutor’ se expressa

Centrado no garanhão

É o mote da conversa:

Fama, grana e traição

Ao se referir a ela

Falam da menina bela

Que fez filme de tesão

 

Falta a compreensão

Da questão relacional

Gênero, classe, profissão

Cor e status social

O processo é narrativa

Que emerge da saliva

Falocêntrica-legal

 

E ainda que alguns digam

‘Oh, Eliza, coitadinha’

E suas doutrinas sigam

Desvendando pegadinhas

A escola dogmática

Do direito-matemática

Perpetua ladainhas

 

Processo judicial

Só serve para punir?

Havia tanto sinal…

Não dava pra prevenir?

E a tal ação civil?

Alimentos deferiu?

Para o bebê consumir?

 

É um momento de dor

Para a família dos dois

O caso é multifator

Não basta dar nome aos bois

A lógica policial

Cartesiana e formal

Festeja tudo depois

 

Por isso se faz urgente

Conjugar gênero e direito

Pois um trabalho decente

Que surta algum efeito

Não se limita a julgar

Mas também a estudar

O cerne do preconceito

 

Homens que matam mulheres

Em relações de poder

Isto tem se dado em série

Mas é preciso entender

Que subjaz ao evento

Um histórico comportamento

Que vai construindo o ser

 

A nossa sociedade

Apesar da evolução

Reproduz iniquidade

E também muita opressão

Homem que bate em mulher

– E ‘ninguém mete a colher’ –

Sempre foi uma ‘lição’

 

Aprendida por goleiros

Delegados, professores

Motoristas, marceneiros

Pedreiros e promotores

Garçons e malabaristas

Médicos e taxistas

Juízes e adestradores

 

Por isto em nossos dias

De conquistas sociais

De novas filosofias

Direitos especiais

Não podemos aceitar

Justiça só pra apurar

Crimes tão excepcionais

 

Que a Justiça também

Sirva para (se) educar

Chega deste nhem-nhem-nhém

Deste eterno blablablá

A Lei Maria da Penha

Existe pra que não tenha

Tanta morte a lamentar!

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Advogada, professora universitária, doutoranda em Estudos de Gênero e Direito na UFBA em Salvador (BA); seu blog