Dois debates suscitados pelo referendo sobre armas marcado para 23 de outubro são mais relevantes. O primeiro é sobre o próprio mérito da proposta de proibição da produção e venda de armas em território brasileiro, o sim ou não. O segundo é sobre a natureza da campanha que os dois lados desenvolverão até o dia da votação. O Observatório da Imprensa não é o território adequado para a troca de opiniões sobre o sim ou o não. Mas trabalha a segunda questão, em face da qual a mídia tem completa e insubstituível responsabilidade. Realismo ou ilusão dependem agora em boa medida da maneira como a mídia, em especial a televisão aberta, e, claro, a TV Globo, vão cobrir o assunto.
Três entrevistas estão transcritas a seguir. A primeira foi dada na quinta-feira (22/9), pelo delegado da Polícia Federal Antonio Rayol, contrário à proibição das armas de fogo. A segunda, do deputado federal Raul Jungmann, e a terceira, do professor da UFRJ Michel Misse, foram feitas na sexta (23/9). Misse é partidário do sim. Mas adverte que é um dever das pessoas mais responsáveis lutar para que o movimento da proibição das armas não crie a falsa impressão de que a adoção de medidas legais vai resolver o problema da violência.
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O delegado Antonio Rayol, da Delegacia da Polícia Federal de Crimes Contra o Patrimônio do Rio de Janeiro, é contra o desarmamento. Ele entrou no noticiário recente quando chefiou os policiais que prenderam Duda Mendonça numa briga de galos, no Rio de Janeiro. Membro do Conselho Municipal Antidrogas do Rio de Janeiro e conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito e Criminologia, Rayol fala em nome pessoal. Ele acha que o resultado do referendo pode surpreender porque no interior não existe o mesmo antagonismo às armas de fogo encontrado nas grandes cidades.
O senhor tem uma restrição a certas estatísticas.
Antonio Rayol – O cidadão que é bem-sucedido ao repelir um ladrão não vai à delegacia registrar a ocorrência. A pessoa que está em casa dormindo, ouve um barulho no quintal, abre a janela, dá um tiro para o alto e espanta o ladrão não vai à delegacia contar o que aconteceu. Quando essa discussão começou eu comprei um livro de um cidadão chamado John Lott, da Universidade de Chicago, More Guns, Less Crime, parece que já foi traduzido [foi, em 1999, mas com uma interrogação que não tinha no título original: Mais armas, menos crimes?], ele tem umas conclusões que são fruto de dez anos de pesquisa, baseia tudo isso em números. É claro que a realidade americana é diferente da nossa. Mas muitas das falácias estabelecidas com essa questão do armamento são iguais aqui como lá. Ele desmonta muitas dessas falácias com números, com estatísticas. [Em agosto de 2004 o site da BBC fez uma reportagem em que Lott defende seu ponto de vista].
O senhor acha que não vai mudar nada?
A.R. – Pelo contrário. Vai piorar. Na Inglaterra, comprovadamente, onde fizeram um grande programa de desarmamento, depois os números da criminalidade têm aumentado, inclusive o número de ‘arrombamentos quentes’. ‘Arrombamento frio’ é aquele em que o cidadão invade uma casa tendo certeza de que os moradores não estão presentes. ‘Arrombamento quente’ é aquele em que ele invade a casa a despeito dos moradores estarem dormindo lá dentro. Porque se ele tem certeza de que as pessoas não têm arma, e ele tem uma arma, entra mais tranqüilo, porque sabe que tem uma vantagem. Quando o criminoso, o mal intencionado, não tem essa certeza, pode ter dúvidas entre invadir ou não uma casa. O meu falecido pai dizia que bandido gosta de facilidade. Se gostasse de dificuldade, ia trabalhar. Quando eu tomei posse na Polícia, em 1977, fui trabalhar em Uruguaiana, que é uma cidade bem gaúcha, na fronteira tríplice entre Brasil, Argentina e Uruguai. A economia dessa cidade era baseada nas fazendas. Eu fui ao Banco Real pegar o meu primeiro pagamento e tinha um monte de gente armada na fila. Eram gaúchos vestidos com a roupa de trabalho deles, aquela roupa característica, e na cintura aqueles cinturões de couro que eles chamam de guaiaca com os revólveres espetados ali, aqueles revólveres Smith-Wesson, seis polegadas, aquela coisa bem antiga. Eu perguntei aos colegas da Polícia: Como é que é isso? Eles têm porte? E um colega antigo, gaúcho, disse: Não se meta com isso, é a tradição local, aqui ninguém tem porte, todo mundo anda armado, mas não há problema nenhum na cidade. E não havia mesmo. Não se via nem discussão de trânsito. Não se via assalto a banco. Quem vai entrar no banco para assaltar se a fila está cheia de gente armada?
Temos que buscar o conceito. Se extrairmos desse episódio um conceito aplicável a outras situações, ótimo. Mas aplicar a mesma coisa é totalmente impossível, inimaginável. Se o conceito é de que o bandido tem medo, isso pode ser resolvido com policiamento ostensivo, digamos, ou com uma rede de participação da comunidade, como na Inglaterra. A propósito, não sei como é a questão do desarmamento na Inglaterra.
A.R. – Houve uma campanha de desarmamento depois que um maluco entrou numa escola e matou um monte de gente. Isso precipitou os acontecimentos. Mas depois disso teve a história de um maluco que entrou numa igreja com uma espada e matou três, quatro pessoas. O elemento da violência é humano.
Tudo indica que o ‘sim’ ganhará no referendo.
A.R. – Eu não tenho tanta certeza assim. A visão que o brasileiro do interior tem da arma é outra, não é a do cidadão da cidade grande. É muito comum no interior o sujeito ter uma espingarda de caça em casa, um revolverzinho. A visão que o cidadão urbano tem, fruto da paranóia – não estou dizendo que é injustificada ?, é diferente. Pode haver uma grande surpresa.
O ‘sim’ pode ser vitorioso e isso não ter o resultado esperado?
A.R. – Em 1995, uma lei do [deputado] Miro Teixeira transformou porte de arma, que era contravenção, em crime. Seria muito bom se se conseguisse reproduzir o clima de euforia quando aquela lei entrou em vigor. Parecia que tinham abolido o câncer com uma lei. E não mudou absolutamente nada. Tanto que foi necessária uma nova lei… Pelo contrário, eles deram dois anos para o crime de porte de arma de calibre não permitido, logo depois veio uma lei do mesmo Congresso dizendo que o crime de até dois anos era de menor potencial ofensivo, não adiantou nada, o sujeito era preso e continuava sem ir para a cadeia. E agora nós já temos uma nova lei, mais rigorosa, e basta abrir o jornal todo dia para ver que não mudou nada. E não vai mudar nada. Aqui é o único lugar onde existe o ‘relativismo jurídico’: Vamos ver se a lei pega ou não. Isso para não falar em como é diferente o relacionamento entre sociedade e polícia no Primeiro Mundo e aqui. Lá se diz à criança: Se você se perder, chame a Polícia. Aqui, a mãe, para não comprar um brinquedo, aterroriza a criança: Se você não parar de chorar eu vou chamar o guarda. É verdade que nos Estados Unidos, por exemplo, quando você disca 911 o que acontece é completamente diferente do que acontece quando você liga aqui para o 190.
Voltando à campanha do referendo. Nós podemos sair da reflexão para uma campanha de marketing, que é o reino da superficialidade. Dos dois lados.
A.R. – A maioria da população das grandes cidades, amedrontada com os índices de violência muito altos, está vendo esse desarmamento como uma solução para o problema da violência urbana. O problema não vai ser solucionado por essa via e em pouco tempo quem votar a favor do desarmamento vai ficar muito frustrado. Quero deixar claro que não sou favorável à disseminação, ao uso indiscriminado de armas de fogo, nada disso. Sou contra o desarmamento por uma questão muito simples. Eu acho que o cidadão deve ter o direito de ter uma arma em casa se ele achar que deve exercer esse direito. Sou contra cassar esse direito do cidadão. Acho que pode ser feita uma grande campanha publicitária no sentido de que as pessoas não tenham armas, mas simplesmente suprimir do cidadão esse direito, eu sou absolutamente contra, e o que eu tenho visto através da grande mídia é que há uma propaganda maciça favorável ao desarmamento. Está havendo um desequilíbrio na publicidade dos dois lados da questão, e acho que isso não é saudável.
Quais seriam os caminhos para enfrentar a escalada de violência?
A.R. – Nosso principal problema é a falta de estrutura das polícias. Acho que tem que haver um investimento pesado em polícia, em treinamento para os policiais, em boa remuneração dos policiais, em equipamento de última geração, investimento em inteligência. Aliado também, claro, a um combate sistemático e permanente ao problema da corrupção. Enquanto não se trabalhar com seriedade em cima da questão policial não vamos ter solução para a questão da criminalidade nem a médio nem a longo prazo. Se começar a ser feito um trabalho agora pode ser que os resultados apareçam daqui a cinco, seis, sete anos. Mas eu não vejo nenhuma iniciativa nesse sentido. Pelo contrário. O que eu vejo é uma polícia mal remunerada, desmotivada, e isso gera toda uma espiral de problemas que impossibilita que se tenha um bom resultado numa política de combate à criminalidade.
Qual é sua expectativa quanto aos argumentos, à maneira como vai ser conduzida a discussão sobre o referendo?
A.R. – A discussão se dá muito em termos passionais. As pessoas que se pronunciam na mídia são pessoas que estão justificadamente amedrontadas com a questão da criminalidade. Você vê muitas opiniões apaixonadas e poucas opiniões equilibradas e técnicas. Às vezes eu vejo que quem é contra o desarmamento até tem receio de expor suas opiniões, tal é o predomínio das pessoas que se pronunciam a favor do desarmamento. Essa discussão tem sido conduzida de uma forma nada técnica, muito passional, e é por isso que eu acho que o resultado vai ser frustrante. Mesmo que o desarmamento seja vitorioso no referendo, em muito pouco tempo as pessoas vão se dar conta de que não mudou nada. Não é o cidadão de bem desarmado que vai ser uma solução na questão da criminalidade. O problema são os bandidos armados. E o bandido armado vai continuar armado. Não vai ser o referendo que vai fazer com que o bandido deixe de amedrontar as pessoas e causar esses problemas que nós vemos diariamente na mídia.
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Raul Jungmann foi ministro da Reforma Agrária de Fernando Henrique Cardoso e é deputado federal pelo PPS de Pernambuco. É secretário-executivo da Frente Brasil Sem Armas. Afirma que ninguém quer vender ilusões quanto à finalidade da campanha pelo desarmamento e lamenta que o movimento pelo sim no referendo tenha pouco tempo e quase nenhum recurso.
Em que medida a campanha pelo desarmamento vai contribuir para esclarecer e em que medida ela poderá criar uma ilusão que será frustrante depois?
Raul Jungmann – Nenhum líder da Frente Brasil Sem Armas prometeu ou se comprometeu em relacionar a campanha pelo desarmamento com a resolução dos problemas de segurança pública no Brasil. Não conheço uma declaração, não conheço um líder, não conheço um único ato em que isso tenha sido feito, seja pelos líderes da sociedade civil, seja pelos parlamentares. Todos nós temos sido extremamente rigorosos e cuidados em não prometer aquilo que não se poderá cumprir. Há um objetivo focado, preciso, que é, reduzindo o número de armas em circulação, sobretudo a médio e longo prazo, aumentando os rigores da legislação sobre a posse e o uso de armas, reduzir-se o número de homicídios por arma de fogo. Ponto. O que nós estamos dizendo é exatamente, precisamente o seguinte: menos armas, mais vidas. E isso vai ajudar, sim, direta ou indiretamente, na redução dos níveis globais de violência. Isso é até algo já comprovável, porque um relatório de vinte dias atrás, do Ministério da Saúde, diz o seguinte: os homicídios por arma de fogo no Brasil cresceram doze anos sem parar e alcançaram entre 1992 e 2003 aproximadamente um crescimento de 119%. Pela primeira vez, em 2004, esses índices caíram: 8,2% em escala nacional. A que se pode atribuir isso? A duas coisas, exclusivamente. Em primeiro lugar, o Estatuto do Desarmamento, que pela primeira vez possibilita você pegar bandido, botar bandido na cadeia, inclusive de modo inafiançável, por estar portando arma ilegalmente. Evidentemente que também o outro, o cidadão de bem. Mas ele dá instrumento à Polícia Civil e à Polícia Militar para que efetivamente se prenda e ele fique preso, podendo pegar inclusive de dois a quatro anos de cadeia, e a da chamada Campanha do Desarmamento, que já recolheu 450 mil armas. E isso também não é nenhuma pólvora, por assim dizer, porque no mundo inteiro, onde se reduziu, regulou, restringiu ou até eliminou armas homicídio e crime com arma de fogo despenca, cai. É isso precisamente que estamos debatendo.
A campanha tem alguma proposição ligada à melhoria da polícia, a uma política de segurança pública mais moderna, mais articulada?
R.J. – Nós temos mais ou menos um decálogo, uma série de propostas relacionadas ao esquema de segurança, ao nosso Judiciário e ao esquema prisional. O problema é que nós terminamos a braços com uma campanha para 122 milhões de eleitores e vinte dias de rádio e televisão, e apenas um mês e meio para montar essa campanha. Então, resultou absolutamente inviável se fazer um debate abrangente e amplo sobre segurança pública quando para o objetivo central, que é a correlação armas de fogo/homicídios por armas de fogo, sequer se dispôs de tempo suficiente, de meios eficientes. A menos de trinta dias da realização do referendo, não há um único real em caixa. É preciso entender que se nós ampliássemos o foco correríamos o risco de literalmente nos tornar ininteligíveis, dado o público universal com que estamos trabalhando, o público de uma campanha presidencial, uma coisa que começa a ser debatida, questionada – e já uma coisa com a qual as pessoas estão acostumadas – seis meses antes. Tem-se 45 dias no rádio e na televisão, um pessoal percorrendo o país inteiro. Não temos nada disso. Então, seria uma temeridade colocar em discussão todo o sistema de segurança, embora você o faça… nos debates Brasil afora, quando vamos ao debate com a platéia, há maior proximidade, dispomos de tempo, discutimos a questão de segurança, o sistema prisional, da justiça, do Judiciário. Mas para o grande público é praticamente impossível se relacionar de maneira consistente as demandas da segurança com os meios disponíveis.
O senhor ficará zangado se esse seu raciocínio for usado como evidência de que a campanha vai inevitavelmente produzir algumas ilusões? Essa explicação que o senhor está dando confirmaria a suspeita de que a campanha vai acabar no marketing.
R.J. – Nós não temos um tostão para marketing, então você é um gênio do marketing, porque sem um tostão, sem marqueteiro, com a sociedade civil… Conclusão sua, fica inteiramente à vontade.
A TV Globo adotou essa causa…
R.J. – E eu com isso, se a Rede Globo adotou? A Bandeirantes tem uma posição contrária, com audiência inferior. O número de vidas que se vai poupar, que já se está poupando, a redução da violência por crimes fúteis, por crimes imotivados, se isso, para você, resulta de uma campanha de marketing, viva o marketing! Se você tem a contraditar a uma campanha de marketing que ela é marketing porque ela salva vidas… Viva o marketing!
O relatório do Ministério da Saúde não parece tão convincente, no final hesita (‘Estas ações estariam tendo impacto positivo na redução da mortalidade por arma de fogo, em 2004, em todo o país, juntamente com outros esforços de difícil mensuração nesta pesquisa’). [Ver a íntegra, e também o documento ‘Vidas Poupadas’, aqui] Em São Paulo, por exemplo, o que se sabe é que a queda do número de homicídios tem muito mais a ver com abrir escolas para as famílias no fim de semana.
R.J. – E nos 17 outros estados, tem a ver com quê?
Não sei.
R.J. – Na Austrália, na Inglaterra, em qualquer lugar aonde você amplia o controle sobre as armas, reduz a circulação de armas, há um efeito. Reduzir o uso de armas, controlar o uso de armas, e ter, ao inverso, um incremento de mortes seria uma coisa fantástica, até por uma relação física, de meios. Estudos comparados mostram que no mundo inteiro há essa correlação. Portanto, não é nem grande mérito nosso. (….) Mas você tem todo o direito de achar que algum outro fator pela primeira vez leva, em treze anos, em dezoito estados, a cair em média nacional 8,2%, que na verdade seria mais do que isso se você traçasse o comparativo não para trás, como fez o Ministério da Saúde, mas para a frente, considerando, portanto, o cenário futuro e o incremento, que não se computou.
O questionamento é a respeito de se criar na população a idéia de que isso vai resolver as coisas, o que provavelmente levará a uma frustração.
R.J. – Pode-se escolher qualquer dos líderes desse processo, o [senador] Renan [Calheiros], eu, o Viva Rio, o Instituto Sou da Paz: se alguém deu uma declaração dessas, eu vou expulsar do nosso convívio. Somos absolutamente cautelosos em dizer o seguinte. Referendo não é passe de mágica. Não vai resolver o problema da violência. É um passo, uma tomada de consciência, e vai ajudar, sim, a reduzir os homicídios. Não se encontra na nossa propaganda institucional, no nosso site, na palavra dos líderes, em nada, e tampouco na propaganda que vamos fazer nos próximos vinte dias.
Existe algum oponente do desarmamento que seja considerado seriamente, respeitado, algum grupo, alguma corrente?
R.J. – Sinceramente, sem nenhuma falsa demagogia, gostaria de conhecer. Até agora, os pontos de vista, com absoluta sinceridade, zero manipulação, à exceção de um ou outro que você encontra num estado, um advogado que defende [a posse de armas], mas ninguém de expressão, todos, todos, sem exceção, movidos por uma relação, que é legítima, com o comércio ou com a indústria de armas. Eu, francamente, não conheço. O que não quer dizer que eles não devam ser ouvidos, considerados, que eles não tenham o direito de ter as relações que efetivamente entendam ter. Quem eu conheço aqui? É o [deputado Luiz Antônio] Fleury, que tem uma claríssima relação com isso, o [deputado Alberto] Fraga, que é o presidente, esse, então, nem se fala. Não conheço um médico, um professor, um artista, um religioso, não conheço um brasileiro que tenha projeção, densidade na sua área de atuação, que seja reconhecido, que esteja do lado de lá.
A deputada Denise Frossard, no início, era contra o desarmamento. Depois, mudou de idéia.
R.J. – Ela nos disse – e eu tenho especial amizade pela Denise, não apenas um convívio partidário – que num determinado contexto publicou um artigo nesse sentido, mas que se posiciona hoje radicalmente favorável ao desarmamento. E escreveu há poucos dias um artigo no Globo.
E todas as outras questões envolvidas?
R.J. – Quando eu vou aos debates, alguém inevitavelmente diz: E a concentração de renda, e a saúde, e o problema da segurança? Mas me provem o seguinte: que desarmar as pessoas, ou reduzir o comércio, amplia a concentração de renda, deteriora a saúde, piora a educação ou complica e inibe o problema da segurança. Se me provarem isso, largo agora.
Que outro tipo de dificuldade pode enfrentar a campanha?
R.J. – Nós podemos ter um problema complicado. Em função da crise, do pouco tempo, e também a nossa incapacidade de organizar nacionalmente esse debate como um todo – o que, de resto, seria impossível –, pode haver um nível de abstenção alto, é o maior perigo que vejo hoje, por falta de tempo hábil e incapacidade de mobilizar o que seria necessário. Nós deveríamos pegar toda essa energia, toda essa mobilização, e jogar em cima de um programa mínimo, um decálogo de segurança pública. Mas eu tenho seríssimas dúvidas de que com o tempo e o formato de comunicação que temos possamos conseguir veicular isso. Para um público universal de 122 milhões de pessoas, resulta complicado.
A mídia ajudará muito se disser: Não é milagre, nós temos um objetivo bem definido, mas restará depois uma grande tarefa. A mídia tem uma responsabilidade muito grande nesse processo, a TV Globo, principalmente, porque é a mídia que alcança toda a gente.
R.J. – A Globo apoiou abertamente esse processo até o momento em que o TSE regulamentou. A partir daí eles fizeram inclusive uma circular interna a partir da qual nós estamos sendo altamente prejudicados, porque ela diz o seguinte: Tem que cobrir os dois lados, tem que ser imparcial, não pode falar nada, não pode ter ator, praticamente um manual da restrição…
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Michel Misse é professor da UFRJ, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana. Ele propõe uma tarefa urgente para a campanha a favor do desarmamento. Evitar criar ilusões: ‘É importante, agora, que a campanha do referendo esclareça à população: não se devem criar falsas expectativas, porque senão o resultado será pior. Ninguém vai acabar com a violência’.
Qual é a experiência das campanhas de desarmamento?
Michel Misse – Países que adotaram bastante rigor no controle da comercialização de armas, ou até mesmo a proibição, obtiveram resultados promissores. Um dos países que tem tentado esse tipo de política é a África do Sul, e lá a campanha [de desarmamento] não teve o mesmo bom resultado que teve aqui, não conseguiram arrecadar tantas armas.
Qual é o principal argumento dos que são contra o desarmamento?
M.M. – É o da legítima defesa. É um argumento forte, porque é um argumento de direito. Todo cidadão tem direito à legítima defesa e se ele é desarmado diminui sua capacidade de legítima defesa. Esse argumento só teria validade se a legítima defesa fosse generalizada, se nós nos encontrássemos numa situação de conflito, em que o uso da legítima defesa fosse generalizado. Isso não acontece. A legítima defesa é, pelo contrário, extremamente rara. A maior parte dos homicídios dolosos ocorrem ou vinculados a situações criminais, envolvendo confronto com a polícia ou confronto entre os próprios bandidos, ou envolvendo conflitos interpessoais: vizinhos, parentes, relacionamentos amorosos atuais ou do passado, relações de trabalho – patrão, empregado, colega de trabalho –, etc. O volume desses crimes interpessoais é muito maior no interior, em termos relativos, do que nas regiões das capitais, onde existe crime organizado, tráfico, atuação criminosa mais organizada. O segundo argumento é o de que a maior parte dos homicídios está vinculada ao crime organizado e, portanto, o desarmamento não resolveria o problema. Esse argumento também é falho porque ele se refere a bandidos. Ora, bandidos, em qualquer parte do mundo, têm meios de obter armas, e um desses meios é utilizando-se das armas que a população possui. O desvio através de roubo é muito comum, principalmente no Brasil.
Como fazer a comprovação disso?
M.M. – É preciso uma pesquisa para se avaliar o volume de homicídios e ferimentos a bala que ocorrem em conflitos interpessoais. Há poucos trabalhos realizados. Estou realizando um, agora. O problema é a base de dados. Estamos trabalhando com os melhores dados que existem no Brasil, os dados do programa Delegacia Legal. E, no entanto, os dados são péssimos. A qualidade dos dados é ruim porque a maior parte das ocorrências não tem informações suficientes que permitam avaliar se havia relacionamento entre o autor e a vítima, por exemplo, e qualificar melhor a dinâmica do fato.
E qual é a percepção a partir desses dados?
M.M. – É significativo o número de homicídios, mas principalmente de lesões com projétil de arma de fogo, e homicídios culposos envolvendo pessoas conhecidas, parentes, amigos, etc. Isso no Estado do Rio de Janeiro. É provável que no interior de estados maiores, como Minas Gerais, São Paulo, Paraná, e outros estados, seja até relativamente maior o número de crimes letais, ou ferimentos com armas de fogo em confrontos interpessoais, do que vinculados ao crime organizado. Estou falando do Rio de Janeiro, onde se tem crime organizado.
Como essa campanha deve ser trabalhada pela mídia? Pode haver frustração, porque a polícia não vai melhorar depois disso…
M.M. – Acho que há uma confusão muito grande entre o trabalho da polícia e esse tipo de crime, que não tem nada a ver com polícia. Ocorre porque o sujeito que jamais mataria alguém, num momento em que ele está esquentado, e tem uma arma na frente dele, ou tem uma arma em casa, usa a arma. E depois se arrepende. Ele não é um criminoso. São crimes que não podem ser prevenidos. A única prevenção desses crimes é a pessoa não ter acesso à arma de fogo. A idéia do desarmamento é fundamentalmente para isso, para evitar que esses crimes ocorram. Os crimes dos bandidos não são evitáveis por campanhas de desarmamento, embora restringir a circulação de armas diminua também a possibilidade do acesso às armas roubadas. É claro que isso pode ser compensado por um mercado negro, que já existe. É claro que ficará também muito mais transparente, muito mais fácil, a delimitação entre o mercado negro e o mercado legal, do que atualmente. Como a comercialização ficará proibida, haverá um controle muito maior quanto às armas, às séries das armas. A numeração da munição também seria toda controlada. Isso permitiria à polícia maior capacidade técnica de esclarecimento dos crimes do que atualmente. Tudo isso é virtual, é possível. É claro que, com essa polícia atual, talvez não avancemos muito.
E quanto aos resultados da campanha, as ilusões que ela pode criar?
M.M. – Alunos meus da Escola de Guerra Naval também levantaram a preocupação de que a população esteja achando que a violência vai acabar por causa do desarmamento. É importante, agora, que a campanha do referendo esclareça à população: não se devem criar falsas expectativas, porque senão o resultado será pior. Ninguém vai acabar com a violência. A violência existe no mundo inteiro, não vai acabar. Vai-se tentar diminuir o número de crimes violentos, atacando uma área muito sensível, de pessoas que não são criminosas mas que acabam cometendo crime porque têm acesso fácil a armas de fogo. Quanto aos bandidos, bandido é bandido, é fora-da-lei, não tem lei no mundo que vá tentar regular bandido. A lei do desarmamento só vai visar o bandido secundariamente, na medida em que a diminuição da oferta de armas nas residência provocará uma diminuição de circulação de armas nas mãos de bandidos. Eles terão que se voltar inteiramente para o tráfico de armas, e nesse sentido vão ficar muito mais vulneráveis à investigação policial. [Postado em 23/9/2005, às 19h18]