Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Notícias esquartejadas com requintes de crueldade

O goleiro do Flamengo Bruno foi capa de Veja, IstoÉ e de Época. Ocupa amplo espaço nos jornais e telejornais. E sempre o assunto terá sobrevida ante qualquer mínima informação sobre o trágico, assustador e desumano destino imputado à mãe de seu filho, Eliza Samúdio. Nem vou entrar nos detalhes macabros porque seria de todo extemporâneo já que a imprensa martela o tema com precisão de tortura chinesa pingando em nossas consciências, atacando nossa sensibilidade e vendo seus pontos crescerem na escala da audiência e na venda de seus produtos em bancas de todo o país.


O fato é que a imprensa esquarteja as notícias com requintes de crueldade nunca antes vistos. E atira os pedaços à massa de leitores, telespectadores e ouvintes. Porque o bom senso parece não ter ainda provado que não é só doença que contagia, saúde também contagia.


João Hélio e Isabella


Foi assim quando o menino João Hélio, de apenas seis anos, morreu no dia 8 de fevereiro de 2007 após ser arrastado por mais de sete quilômetros, preso ao cinto de segurança do carro onde estava, no bairro Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio. Foi morto, destroçado por bandidos. O crime ocorreu durante um assalto. A mãe, uma amiga e a irmã de 13 anos de João conseguiram escapar, mas o garoto ficou preso ao cinto quando os assaltantes arrancaram com o carro.


O sensacionalismo, as páginas de cadáveres e sangue, os textos preconceituosos, a banalização do mal é o que turbina uma imprensa solícita por atender o que ‘entende’ ser o desejo de seus clientes e consumidores de informação. Foi assim quando, na noite de 29 de março de 2008, a menina Isabella Nardoni, cinco anos, foi jogada do sexto andar do Edifício London no distrito da Vila Guilherme, em São Paulo. Dias após, a investigação constatou que a tela de proteção da janela do apartamento foi cortada para que a menina fosse jogada e que havia marcas de sangue no quarto da criança. Detalhe: o pai foi acusado – e condenado – como autor do bárbaro crime.


Tragédia grega


No prato que a imprensa vem nos servindo o que chama mesmo a atenção é a frieza do assassinato de Eliza Samudio e mais que isto, a forma como teria sido dado sumiço ao seu corpo: devorada por cães da raça Rotweiller e o que sobrou concretado em algum sítio de Vespasiano, Minas Gerais. Isto me fez lembrar velhas lições de Direito ministradas pelo bom professor Condorcet no tempo em que a Faculdade de Direito Cândido Mendes funcionava no antigo ‘Forte Apache’, no centro do Rio de Janeiro.


Pois bem, Condorcet me ensinou muito sobre o papel de Antígona, a personagem que nomeia a tragédia escrita por Sófocles. Falou do seu empenho obstinado contra o decreto do Estado, emitido pelo rei Creonte, no intento de prestar honras fúnebres ao irmão morto em confronto. O texto grego dava conta de que o rei de Tebas ordenara que Etéocles fosse sepultado com todas as honras devidas pois morrera defendendo a cidade de Tebas e, simultaneamente, acusava Polínices de traição e, em conseqüência, proclamava um édito decretando ser ‘terminantemente proibido honrá-lo com um túmulo, ou lamentar sua morte; que seu corpo fique insepulto, para que seja devorado por aves e cães, e se transforme em objeto de horror’. A punição a quem violasse o decreto real seria a morte. Mas, para Antígona, permitir que seu irmão fosse privado dos rituais fúnebres e tivesse o cadáver exposto às aves e animais de rapina era algo, acima de tudo, inaceitável. Eis que Antígona se rebela contra a lei de Creonte, enfrenta a força do Estado e enterra o corpo de Polínices.


Detalhes sórdidos


É que vem de longe, muito longe, a compreensão humana de que existem ritos e gestos que antecedem a própria História, que encontram abrigo no Direito Natural e, como tal, desafiam o império das leis, do Direito Positivo. O que choca no hediondo crime que tanto mobiliza os meios midiáticos é que, nestes tempos pós-modernos, o goleiro do Flamengo Bruno e o ex-policial Bola, com o apoio decisivo de Macarrão e alguns familiares apaniguados, decidiram passar com trator de esteira por cima de Antígona, perfilaram-se assim com Creonte e emitiram atestado de sua completa falta de senso de humanidade.


Infelizmente, Antígona não encontrará espaço nem impresso nem televisivo. Vagará em nossa memória coletiva assumindo o nome de Eliza. Enquanto isso seremos saciados com mais detalhes sórdidos e aviltantes. Somos gigantes materiais e pigmeus éticos. Simples assim.