Uma das mais graves questões a acometer a vida contemporânea diz respeito à presença progressiva e intensa que as novas tecnologias da informação imprimem à construção da história. É nesse quadro, portanto, que se insere a estratégia de manipulação. Antes, porém, é preciso registrar que o desejo de manipular tem a mesma idade da história. O fundamento está subordinado ao mesmo impulso com o qual o ser humano desencadeia o propósito de dominar, de amealhar poder para preservá-lo ou expandi-lo. Assim, desde os sofistas, tem-se longa trajetória de práticas voltadas para o controle e/ou a delimitação da verdade. Durante boa parte do tempo histórico, a manipulação esteve a cargo dos engenhosos jogos da retórica, cenário que se altera com a chegada das tecnologias da comunicação e suas respectivas sofisticações no âmbito dos sistemas operacionais de edição.
É no curso do século 20 que, à luz de crenças teóricas calçadas um pouco antes na chamada ‘sociologia mecânica’, técnicas de manipulação por símbolos ou pelo desempenho de certos atos adquiriram difusão. Em face de seus efeitos, a sociologia política passou a julgar a manipulação como um processo de violência psicossocial e institucional.
O saber operatório que orienta as técnicas de manipulação se enraíza nas conhecidas ‘situações de condicionamento’. Primeiramente, com o estudo de S. Chakhotin, na obra Le viol des foules par la propagande politique (Paris, Galimard, 1952) e, posteriormente, com as contribuições de E. Goffman em Internados (Buenos Aires, Amorrortu, 1972), constata-se um tipo de realidade social na qual a manipulação se associa definitivamente aos meios de comunicação de massa. Obviamente não podem ser omitidas outras pesquisas, a exemplo do legado de P. Bourdieu e J. C. Passeron, em La riproduzione: elementi per uma teoria del sistema scolastico (Rimini, Guaraldi, 1972), além de La democracia manipolata (Milano, Comunità, 1965), de L. Cavalli e O poder simbólico’ (Lisboa, DIFEL, 1989), de P. Bourdieu. Feitas as referências históricas e bibliográficas, tratemos então do fato ‘jornalístico’.
A manipulação ‘global’ no caso Waldomiro
Na terça-feira (13/4), durante cinco horas, Waldomiro Diniz prestou depoimento à CPI, na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro que, por meio da recém-inaugurada TV Alerj (canal 12 – Net), transmitiu a sessão na íntegra. Sendo um canal de TV a cabo e de difusão local, poucos terão tido, a despeito das reprises, a oportunidade de registrar o fato nas suas dimensões plenas. Deste modo, o grande público, em âmbito nacional, ficou refém das passagens selecionadas pelos telejornais, bem como das respectivas matérias que circularam nos jornais do dia seguinte.
Como procedeu jornalisticamente a emissora que tem no Jornal Nacional, há décadas, insuperável audiência contra qualquer concorrente? Por critérios absolutamente obscuros, a edição de terça-feira do JN ‘selecionou’ a abertura do depoimento no qual figura a ‘antológica’ confissão de ‘culpa’ e de ‘pecado’, como abaixo transcrevemos:
‘Cometi um pecado. Cometi um pecado ao tentar ajudar um amigo, Armando Dile. Ao tentar ajudá-lo, tornei-me refém de uma engenharia criminosa, uma gravação premeditada, feita por uma pessoa inescrupulosa que a fez para aferir benefícios financeiros a seus negócios. O homem que aqui comparece é uma pessoa envergonhada, de alma quebrada /…/’
Nada contra o fato de o JN abrir a ‘cobertura’ com a declaração aqui reproduzida. A questão é saber por que – a favor de um jornalismo ético – não se seguiu à confissão inicial uma resposta ao deputado Paulo Melo que, indagando acerca dos vínculos de amizade, recebeu do depoente a seguinte declaração, devidamente transcrita na Folha de S.Paulo (14/4):
Era uma relação cordial, profissional, mas não freqüentava a casa dele [Armando Dile] nem nos encontrávamos nos fins de semanas’.
No mínimo, quando justapostas, as duas afirmações criam colisão semântica quanto ao conceito de ‘amizade’, principalmente pela natureza do pedido a envolver percentual em favor de um ‘amigo’ com quem travava nada além de um relacionamento funcional. Não só a TV Globo não exibiu como assim também não o fez o jornal O Globo que, na edição de 14/4, estampava o singelo título ‘Waldomiro chora e pede desculpas na CPI’. A bem da verdade, quem assistiu ao depoimento na íntegra sabe que, em momento algum, Waldomiro ‘chorou’. No máximo, denunciou breve estado de comoção rapidamente contornado. Nenhuma lágrima escorreu no rosto do depoente.
Também a Rede Globo não considerou jornalisticamente importante o fato produzido por uma pergunta do deputado Paulo Ramos a respeito do salário que, pelo cargo de presidente da Loterj, Waldomiro recebia. Respondeu o depoente que aferia em torno de 4.000 reais 4.500 reais mensais. Inquirido quanto a como o depoente vivia com o mencionado salário, o deputado ouviu a seguinte explicação: ‘Morava num apart-hotel, no Leblon’.
O deputado, espantado com o relato, quis saber se outros ganhos o depoente recebia. Sim, a título de ‘ajuda de custo’ – expressão usada por Waldomiro – recebia da Funpat – órgão prestador de serviço à Loterj – 8.000 reais mensais. O mais grave – e jornalisticamente significativo – foi, adiante, a confissão do depoente quanto ao fato de jamais haver declarado à Receita Federal a quantia ‘complementar’ que, simplesmente, era o dobro do salário. Ou seja, o depoente confessou publicamente ser sonegador. No entanto, este fato não sensibilizou a edição do JN nem do jornal da mesma empresa.
Lições nada construtivas
Ao final da sessão, outro dado jornalístico foi desprezado. O deputado Noel de Carvalho quis saber do depoente quem o havia indicado para Anthony Garotinho, à época governador do Rio de Janeiro. O depoente explicou que, na ocasião, quando Garotinho estava montando a equipe de seu futuro secretariado, foi a Brasília convidar Cristóvam Buarque para ser seu secretário de Educação. Ante a recusa do ex-governador do Distrito Federal, Garotinho pediu se Buarque conhecia alguém que, com eficiência, pudesse representar o Rio de Janeiro em Brasília. Daí então proveio a indicação do nome de Waldomiro Diniz, que se tornara assessor do gabinete de Buarque por sugestão do futuro chefe da Casa Civil, José Dirceu.
Ficou claro, portanto, que, até então, o governador do Rio de Janeiro não o conhecia. Dessa longa explicação feita pelo depoente, O Globo optou por outro trecho anterior:
‘Quem me convidou foi o então governador Antony Garotinho. Eu era representante do governo do Estado do Rio de Janeiro em Brasília’.
Os exemplos colhidos não deixam dúvida quanto a três possibilidades: 1) incompetência profissional daqueles que respondem pela edição, seja do telejornal, seja do jornal; 2) prática premeditada de ocultação de informações; 3) negligenciamento com o trato dos acontecimentos, fruto do ritmo alucinado com o qual crescentemente se conduz a prática jornalística.
É difícil aceitar as primeira e terceira opções, dada a reconhecida experiência dos profissionais envolvidos. É mais crível, pois, a segunda – o que é grave. Seja como for, em qualquer das três, o efeito é o mesmo: a população se torna objeto de controle por parte daqueles que teriam o dever de repassar ao público a verdade. Para tanto, o princípio elementar é a exposição do positivo e do negativo, a reunião do que possa contar a favor e contra. Sem a preocupação com o equilíbrio, o resultado é manipulação e, como tal, inaceitável. O mais curioso, porém, é que o caso veio a público exatamente por uma reportagem de revista pertencente à mesma organização. Trata-se de contradição ou de compensação? Quem explicará esse novo enredo de perfil ‘novelístico’?
Enfim, o que fica é mais um testemunho dos desvios de um certo ‘caráter nacional’ a deixar lições nada construtivas. A mídia vem exagerando na dose em dar visibilidade tanto à deformação ética quanto à exaltação de tudo que é simplório. A combinação dos dois enredos apenas se presta à degradação do tecido societário. Estamos muito mal em quase tudo…
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro