Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Novo sonho de consumo: ser garota do tempo

Há quase quinze anos, atuo no ensino de jornalismo. Trabalhei em diversas faculdades, ministrando cursos de graduação e pós-graduação. Esse tempo de rodagem me permitiu entender que o perfil do aluno egresso se modifica através do tempo.

Ninguém, em sã consciência, entra num curso universitário para estudar o que não gosta. Tem de ter, no mínimo, afinidade com os temas abordados na grade curricular.

Quando mais jovem, meus colegas do curso de jornalismo manifestavam a vontade de atuar no campo político e, com o passar do tempo, percebi que alguns já enveredavam para a área do esporte, especificamente, o futebol. Hoje, noto claramente que o esporte ainda é o principal desejo dos meninos, por exemplo.

Mas, e as meninas? Lógico, trabalhar na televisão abarca o sonho de muitas delas. Não vou entrar na discussão sobre por que a televisão hipnotiza as estudantes. Só reconheço que muitas delas se utilizam do jornalismo para adentrar nesse mundo mágico e, depois de formadas, vão ser atrizes, celebridades etc. É uma estratégia bem inteligente, pois é bem menos desgastante do que cursar uma Escola de Artes Dramáticas da USP ou o famoso Tablado e tentar competir, nas artes cênicas, com Fernanda Montenegro, Marília Pêra e tantas outras atrizes consagradas.

Entretanto, surge outro fenômeno no que tange ao desejo profissional entre as alunas de jornalismo. O fascínio pela, digamos, atividade de ‘garota do tempo’. Bem vestidas, animadas, cabelos ao ar e até distribuindo piscadinhas aos telespectadores, as jornalistas que apresentam a previsão do tempo, em várias emissoras de televisão, copiam o modelo estadunidense e acrescentam a ele o nosso jeito brejeiro de ser.

Serviço imprescindível

O serviço denominado previsão do tempo surgiu no jornal inglês The Times, em 1875. Com traços rústicos, o desenho tinha como principal objetivo informar sobre tempo e as marés, já que os habitantes das ilhas britânicas tinham como principal meio de transporte o marítimo, pois as ilhas são banhadas pelo Mar do Norte, Canal da Mancha, Oceano Atlântico e Mar da Irlanda.

Já nos EUA, a previsão do tempo é um serviço de informação reconhecido como fundamental. O país tem o tráfego aéreo mais intenso do mundo. Basta lembrar do dia 11 de setembro de 2001, quando após os atentados terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono, mais de 300 aeronaves tiveram que aterrissar urgentemente. A qualquer alteração brusca do tempo, os aeroportos fecham para pouso e decolagens.

Além disso, eles têm ao norte muitas tempestades de neve e ao sul, principalmente na Flórida, tornados e até tufões. Portanto, para eles, o serviço de informação sobre as condições do tempo é imprescindível.

No Brasil, copiamos o formato estadunidense. Mas os motivos pelos quais apresentamos a previsão do tempo não são baseados nem em sua origem, no The Times, tampouco nas necessidades deles.

Relevância social

Então, o que estamos fazendo no Brasil não é importante? Acredito que mostrar que há sol em Maceió não seja interessante para alguém em Porto Alegre e vice-versa. Para que o serviço de previsão do tempo seja realmente um serviço ao telespectador, devemos tirar do centro do formato o pequeno showzinho das lindas meninas piscantes e introduzir informações importantes para o telespectador.

São Paulo, por exemplo, sofre com as pancadas de chuva. Há dias que são mais de 200 quilômetros de congestionamentos pela cidade devido às fortes chuvas. Mas a informação antecipada prevendo essas chuvas não é fornecida, exceto por algumas rádios.

Outro ponto que não é mencionado, no que tange à previsão do tempo para São Paulo, são os níveis de poluição. Extremamente importante para a saúde de seus habitantes, esse tipo de informação é ignorado.

Pesquisa recentemente divulgada pela Universidade de São Paulo indica que oito paulistanos morrem a cada dia por causa de doenças relacionadas aos efeitos da poluição. Na atividade jornalística, apesar de muitos não pensarem assim, prefiro manter a relevância do jornalismo para a sociedade do que sucumbir ao sonho de consumo de alguns estudantes de jornalismo.

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Pós-doutorando em Comunicação e Tecnologia na Universidade Metodista de São Paulo