Friday, 20 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Estado de S. Paulo

WIKILEAKS
Denise Chrispim Marin

WikiLeaks traz à tona debate sobre limites

Tratado como uma ameaça à segurança nacional pelo governo dos EUA, o vazamento de documentos secretos pelo site WikiLeaks não pode limitar a liberdade de expressão no país. A conclusão é de quatro especialistas das áreas jurídica, de defesa e de política exterior consultados pelo ‘Estado’.

Em sintonia, todos reconheceram que o episódio inaugurou uma nova série de dificuldades para as democracias, sobretudo a americana, manterem informações sensíveis sob sigilo sem coibir a liberdade de imprensa. Nos EUA, ela é uma garantia protegida pela Primeira Emenda da Constituição e tratada com deferência e orgulho.

O texto expressa a proibição de formular leis para cercear a livre expressão e o trabalho da imprensa. Diante do vazamento dos 251 mil telegramas diplomáticos, há duas semanas, o Departamento de Estado definiu o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, como um ‘criminoso’ e ‘anarquista’. No entanto, isentou de culpa os veículos de mídia que receberam o material do site em primeira mão.

‘Nada do que ocorreu muda a importância que atribuímos à liberdade de imprensa. A existência de uma imprensa vibrante é vital para qualquer democracia’, afirmou Philip Crowley, porta-voz do Departamento de Estado.

Responsável pela defesa jurídica do jornal The New York Times na época da publicação dos Papéis do Pentágono, nos anos 70, o jurista Floyd Abrams teme que a Primeira Emenda não seja suficiente para impedir ações legais do governo contra Assange ou para conter futuras ameaças legais ao trabalho da imprensa.

Em sua opinião, ‘perigosos limites’ à atividade jornalística podem surgir em função de pressupostos de segurança nacional e de direito à privacidade. ‘Esse é um interessante caso de liberdade de expressão, porém significa uma potencial ameaça à segurança nacional dos EUA’, disse.

‘Se os EUA processarem Assange, será uma controvérsia e novas regras podem surgir para ameaçar a imprensa americana’, disse Abrams. O jurista avalia que a responsabilidade maior deverá recair sobre o autor da entrega dos telegramas para o WikiLeaks, supostamente um funcionário público – a culpa tem sido atribuída ao soldado Bradley Manning.

Allen Weiner, diretor do Programa de Direito Internacional e Comparado da Universidade Stanford, acredita que o centro da discussão é o roubo. ‘Esse caso não é de Primeira Emenda, é um caso de roubo de informação do governo americano. É o mesmo que alguém entrar na sua casa, roubar um vídeo com imagens embaraçosas e entregá-lo a sites jornalísticos da internet.’

Lawrence Korb, especialista em política internacional do Centro para o Progresso Americano, defende a divulgação de qualquer segredo oficial. Como referência, menciona a invasão ao Iraque, em 2003, que teve como base a necessidade de eliminar um arsenal de armas de destruição em massa, que nunca foi encontrado pelo Exército americano. Posteriormente, essas ‘provas’ acabaram desmentidas.

A criação de concorrentes do WikiLeaks, sob seu ponto de vista, é oportuna e bem-vinda. Pelo menos mais dois sites do gênero já entraram em operação. Dedicado ao vazamento de informações secretas da União Europeia, o OpenLeaks foi fundado pelo alemão Daniel Domscheit-Berg, ex-companheiro de Assange no WikiLeaks. Em Nova York, o arquiteto John Young criou o Cryptome.

‘O direito dos cidadãos de saber como, onde e porque os EUA empregam suas forças é fundamental’, defendeu Korb.

William Hartung, especialista da área de segurança da Fundação Nova América, ressalta a dificuldade de o governo americano controlar as informações. Mas defende a divulgação. ‘De qualquer maneira, a divulgação faz mais sentido do que a restrição’, afirmou.

 

TECNOLOGIA
Mariana Mandelli

Jovens trocam livros por ‘leitura digital’

No bolso do jeans, um BlackBerry. Na escrivaninha do quarto, um laptop. Dentro da mochila da escola, um iPod Touch com conexão wireless. Tudo ao redor dos jovens de hoje oferece conexão 24 horas por dia nas mais diversas redes sociais. Como deixar de lado todas as infinitas possibilidades que o mundo digital oferece e se dedicar à leitura de um livro, com suas centenas de páginas, cheias de palavras e letras inertes, exigindo concentração para serem decifradas?

Dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) divulgados nesta semana afirmam que a leitura não está entre as prioridades dos jovens de 15 anos. Nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 46% dos estudantes afirmam que leem apenas para obter as informações que precisam; 41% só leem se forem obrigados; e 24% acham que ler é um desperdício de tempo. Apenas um terço disse que a leitura é um dos hobbies favoritos.

Apesar dos dados do Pisa, especialistas em educação e tecnologia discordam da ideia de que o jovem de hoje lê menos. Muito pelo contrário: afirmam que os adolescentes nunca leram tanto. A diferença é que, agora, não são só os livros que são ‘lidos’, mas vídeos, sites, SMS, e-mails e uma gama imensa de informações.

‘O adolescente lê e escreve muito, comunica-se muito mais por escrito. As gerações anteriores liam só os livros da escola. Os jovens de hoje não: estão sempre se informando dentro dessa vida social digitalizada’, diz Rosa Maria Farah, coordenadora do Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática da PUC-SP.

O que perdeu espaço na vida dos jovens não é o hábito de ler, mas a leitura formal que os livros, por exemplo, oferecem. ‘O texto existe, só que de outras formas, e agora oferece acesso amplo e irrestrito. A leitura digital é mais lúdica e interessante porque não é linear e permite uma liberdade multimidiática’, explica Claudemir Viana, pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).

Segundo Viana, trocar SMS com os amigos, postar no Twitter e ver recados no Facebook são atividades mais prazerosas que ler um clássico literário porque dão mais autonomia. ‘Se cansar do site em que está navegando, é só abrir um outro link. Não precisa mais ler página por página, na ordem. Por isso, o que o jovem está perdendo é a paciência, não a concentração.’

O maior desafio do jovem é lidar com a diversidade de estímulos que recebe de todos os lados – o que não significa que ele esteja mais distraído, afirmam especialistas. ‘O adolescente tem de prestar atenção em várias coisas ao mesmo tempo. Ele é multifocal e deve se dividir por vários canais’, diz a psicóloga Ivete Palange, da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed).

Dar atenção a várias mídias sem perder o interesse no conteúdo de cada uma delas é o que acontece na casa da empresária Hermina Ejzenmesser, de 44 anos. Além do computador da família, de uso comum, seu marido e cada um de seus três filhos têm um notebook. Renato, de 16 anos, é o mais antenado: tem iPhone e usa diversos programas em seu laptop. ‘Antes, eu até gostava mais de ler livros, mas fui perdendo o estímulo. Gosto de jornal, mas se você for pegar para ler no fim da manhã, já está tudo velho’, diz Gustavo.

Para Hermina, o gosto de Renato por tecnologia é positivo. ‘Ele faz trabalhos em vídeo, edita e coloca áudio. E estuda muito com os amigos via Skype.’

Aptidões perdidas. Para os educadores, a falta de interesse pela leitura formal pode levar à perda da habilidade de se concentrar quando necessário. ‘O jovem não consegue mais ler um texto inteiro. Ele não cria essa habilidade porque não precisa mais dela’, explica Teresa Ferreira, psicopedagoga da Unifesp.

Ainda é cedo para afirmar o quanto isso pode ser prejudicial no futuro. Mas os especialistas alertam: ler apenas o essencial e aquilo que interessa pode levar à perda da aptidão para analisar situações com mais profundidade. ‘O jovem sabe de tudo o que acontece, mas não aprofunda o conhecimento dos fatos’, destaca a psicóloga Dora Sampaio Góes, do Programa de Dependência da Internet do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (Amiti), da USP. ‘A dúvida é: até que ponto essa abordagem generalista é benéfica?’

 

INTERNET
Renato Cruz

No interior, internet chega pelo rádio

Ainda existe muito a ser feito no mercado brasileiro de banda larga e pequenos provedores enxergaram nisso uma oportunidade, partindo para competição com grandes operadoras. Eles resolveram criar sua própria infraestrutura de acesso, com tecnologia via rádio em faixas de frequência que não exigem licença da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Em algumas localidades, são a única opção de internet rápida.

Juliana Michele de Oliveira, de 20 anos, mora num bairro afastado do centro de Itapetininga, no interior de São Paulo. Apesar de a Telefônica e a Net oferecerem banda larga na cidade, os serviços dessas empresas não estão disponíveis no bairro de Juliana. Ela trabalha na lavoura. O computador, que ganhou de um tio, é compartilhado com um irmão de 22 anos e duas irmãs, uma de 15 e outra de 18 anos.

Ela é cliente da Zuknet, empresa de internet via rádio. Para que serve a conexão? ‘Orkut e MSN’, responde Juliana, acrescentando que também vê vídeos no YouTube e que seus irmãos às vezes baixam músicas. A conta mensal de R$ 85 normalmente é paga pela mãe, que trabalha na Fazenda Vista Alegre, no cultivo de cana-de-açúcar. Antes de optar pela internet via rádio, Juliana chegou a tentar um acesso via rede celular. ‘Chegamos a pagar uma conta de R$ 200’, diz ela. ‘E ainda era bem lento.’

Sem fio. O sistema de rádio da Zuknet funciona na faixa de 2,4 GHz, a mesma usada pelos roteadores Wi-Fi, normalmente empregada para redes locais sem fio. Dimas Ivanczuk Trackzuk criou seu provedor em 2006. Antes disso, trabalhava como professor universitário.

‘Nós chegamos onde não tem ninguém’, afirma Trackzuk. ‘Em determinados bairros, eu posso chegar com pacotes de R$ 100 que tem demanda.’ A Zuknet tem uma conexão de 30 megabits por segundo (Mbps) da Telefônica, que utiliza para atender cerca de 1,5 mil clientes. A empresa instalou 29 antenas repetidoras para cobrir a cidade de Itapetininga.

O pacote mais barato da Zuknet, com velocidade de 256 quilobits por segundo (kbps) custa R$ 49,30. Pode parecer pouco ante as conexões de 2 Mbps oferecidas pelos concorrentes, teoricamente oito vezes mais rápidas. Mas Trackzuk afirma garantir, em contrato, pelo menos 98% da banda contratada, enquanto o normal dos concorrentes é garantir 10%.

Não é o caso da Zuknet, mas existem provedores que contratam uma banda larga comum da operadora, de uso individual, para redistribuir o sinal aos seus clientes.

A internet via rádio é a tecnologia presente em mais municípios do País. Apesar disso, sua participação de mercado é pequena. Segundo a consultoria Teleco, existem cerca de 580 mil acessos de rádio, num total de 12,8 milhões.

‘As operadoras estão sempre focadas no filé mignon’, diz Eduardo Parajo, presidente da Abranet, associação dos provedores. ‘Os provedores criam alternativas concorrenciais importantes.’

Uma pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil apontou que 14% das residências com acesso à internet são atendidas via rádio. ‘Os pequenos empreendedores estão animados’, afirma Milton Kashiwakura, diretor do Comitê Gestor. ‘Muitos dizem que a situação é temporária, porque a operadora chega e os empurra para mais longe.’

Licença. A Zuknet tem como parceira a empresa Complexus Objectus, de Sorocaba (SP). A Complexus Objectus tem uma licença da Anatel, para o chamado Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), que dá a ela o direito de operar serviço de dados.

A Zuknet não tem essa licença, e as duas companhias oferecem acesso à internet em conjunto. Esse formato criou problemas com fiscais da Anatel em São Paulo para a empresa. ‘Estamos totalmente de acordo com a lei e a regulamentação’, garante Onei de Barros Jr., sócio-diretor da Complexus Objectus. A empresa tem parceria com 15 provedores de acesso.

Barros chegou a entrar com uma representação junto ao Ministério Público Federal contra a Anatel. A agência informou que abriu um processo administrativo contra as empresas e que a Polícia Federal de Sorocaba instaurou um inquérito sobre o assunto.

 

REDE SOCIAL
Antonio Gonçalves Filho

O horrendo culto da vaidade no Facebook

A traumática substituição da cultura humanista pela tecnológica provocou uma espécie de neurose afásica entre os jovens. No caso do americano Mark Zuckerberg, fundador do site Facebook há seis anos, essa afasia deixou marcas visíveis em seu inexpressivo rosto. Em outras palavras: mesmo quem conhece Zuckerberg pessoalmente, diria que ele se parece mais com o ator do filme A Rede Social do que com ele mesmo. Jesse Eisenberg, o Zuckerberg do filme de David Fincher, interpreta o novo magnata da internet como um cidadão Kane autista, um isolado portador da síndrome de Asperger, incapaz de se comover com a dor alheia. E pior: irresponsável demais para ser confiável, o que é duplamente perigoso em se tratando de um hacker sem escrúpulos e familiarizado com a ordenação de algoritmos, a confiar no filme de Fincher.

Hoje empenhado em ser o mensageiro oficial do mundo, o Mercúrio do cyberspace, ele está prestes a lançar um correio eletrônico, após o sucesso do Facebook Messages, seu serviço de mensagens da rede conectado a celulares. Zuckerberg tem no cadastro de seu Facebook mais de meio bilhão de usuários, o equivalente a quase um terço da população da China. Quando a notícia se espalhou, no mês passado, centenas de usuários da internet se manifestaram contra o novo email do Facebook. Muitos apontaram como principal risco o de ter sua correspondência pessoal violada e a privacidade exposta por um homem que, segundo o filme de Fincher, roubou dos colegas de Harvard a ideia de seu website e expôs ao vexame digital a própria namorada. Imagine agora seus dados pessoais e suas preferências – sexuais, partidárias, religiosas – caindo nas mãos de hackers. Ou de Zuckerberg. Ou de anunciantes. Pior: tente imaginar o que fariam com essas informações regimes totalitários e terroristas.

Fincher, em A Rede Social, retrata Zuckerberg como um hacker megalomaníaco e socialmente inadaptado. O efeito residual dessa crítica é ainda mais duro que o de testemunhar o ressentimento de um inseguro gênio da informática e seu desprezo por todos os que considera ‘inferiores’ – como os advogados de seus amigos, lesados no processo de construção do site. Deixa-se o cinema com a sensação de que se viu um filme de terror. Não é preciso ter lido Marcuse para saber que o sistema assimila tudo, acabando por integrar toda a diversidade, de um jeito ou de outro. A internet é isso, um saco de gatos cheio de ratazanas autodestrutivas, loucas para serem devoradas. Ferramentas sociais como o Facebook lidam com a ingenuidade narcísica de jovens que gastam, no mínimo, 19 minutos por dia para se comunicar com ‘amigos’ dos quais não sabem absolutamente nada. Fincher retrata Zuckerberg como o gato maluco que vai devorar esses ratos, caídos na cilada virtual de uma rede que cria usuários dependentes. Eles ‘postam’ uma inocente revelação pessoal no Facebook e em poucos minutos todos estão dando palpite na vida do infeliz. Uma promíscua cyberfavela, enfim.

No filme, o primeiro exemplo das consequências na vida real do delírio digital de Zuckerberg é o bullying promovido pelo jogo que deu origem ao Facebook. Nele, o hacker rouba dados de várias fontes, faz downloads de fotos e em poucas horas, usando um algoritmo a que recorrem jogadores de xadrez, cria o website Facemash com a ajuda do brasileiro Eduardo Saverin. No Facemash, Zuckerberg expõe a namorada que o rejeitou ao lado de outra garota e promove o concurso ‘quem é a mais quente’, forçando a interatividade dos colegas e reduzindo suas vítimas à condição de vacas leiteiras.

Essa taxonomia esquemática, destruidora de reputações, seria impensável numa cultura humanista, em que vida privada e pública não se misturam, mas parece ‘normal’ numa cultura tecnológica. Por quê? Porque o hedonismo dos jovens do século 21 é vicioso, desconhece limites. Tudo vira jogo nesse ambiente virtual de monomaníacos, que desperdiçam o tempo em conversas fúteis, desprezam a ética e são assaltados por uma psicose social que os leva a ver o ‘outro’ como uma abstração. Estaremos diante de uma mutação antropológica? É provável. A internet virou o tabernáculo eletrônico de jovens que se confessam e punem uns aos outros ao expor rostos e almas no altar do Facebook, onde reina Lady Gaga, dona do perfil mais seguido nesse horrendo culto. Vendo como se comportam os nerds de Palo Alto no filme, não surpreende.

 

ACESSO À INFORMAÇÃO
Carlos Fico

Público e inacessível

Ao contrário do que muita gente pensa, os arquivos da ditadura militar brasileira já foram abertos. O Brasil detém o maior acervo de documentos outrora secretos entre os países latino-americanos que viveram ditaduras militares. Em um primeiro momento, nos anos 90, papéis dos extintos Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que eram ligados às secretarias estaduais de Segurança, foram transferidos para os respectivos órgãos públicos estaduais. No final dos anos 90, foi transferido para o Arquivo Nacional (AN) um primeiro conjunto de papéis então sigilosos da esfera federal pertencente à antiga DSI (Divisão de Segurança e Informações) do Ministério da Justiça.

Desde então, vários outros acervos federais foram transferidos para o AN, processo que ganhou impulso quando Dilma Rousseff, então chefe da Casa Civil, assinou com o presidente da República um decreto determinando a transferência para o arquivo dos papéis do SNI (Serviço Nacional de Informações), do Conselho de Segurança Nacional e da Comissão Geral de Investigações. Essa medida estimulou outros órgãos, como o Departamento de Polícia Federal, que também liberaram sua documentação. Até mesmo alguns papéis tidos como eliminados, como os do Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica), já chegaram ao AN, iniciativa que deveria servir de exemplo aos comandantes do Exército e da Marinha para que também abram os papéis do CIE (Centro de Informações do Exército) e do Cenimar (Centro de Informações da Marinha).

Muitos desses acervos foram expurgados previamente, mas ainda assim são importantes, até porque os órgãos da repressão trocavam informações freneticamente e duplicavam papéis. É possível encontrar cópia de um original destruído. A quase totalidade dos documentos transferidos é inédita, porque a pesquisa histórica profissional demanda tempo. Há, evidentemente, muita coisa por ser feita, já que outras instâncias do Estado ? inclusive do Poder Judiciário ? ainda não liberaram os seus. O principal problema, entretanto, é outro. Não basta que o material esteja nos arquivos públicos: é preciso que o cidadão tenha acesso a ele.

Infelizmente, vários procedimentos equivocados têm dificultado a consulta aos papéis. Um deles é o entendimento de que os documentos que foram classificados como secretos pela ditadura ainda sejam sigilosos. Isso é falso. Passado o prazo de classificação, o documento sigiloso torna-se ostensivo. Existe uma legislação que cuida de material sigiloso, mas ela não se aplica a documentos que foram desclassificados. Embora isso seja evidente, alguns arquivos continuam considerando os documentos da ditadura como ‘secretos’ ? expressão que deveríamos abandonar.

O direito de acesso à informação não pode ser obstruído por procedimentos burocráticos. Os formulários do Arquivo Nacional são restritivos. Para obter informações sobre alguém vivo é preciso anexar uma procuração reconhecida em cartório. No caso de dados sobre mortos, o usuário precisa comprovar parentesco.

Mas o principal problema diz respeito à proteção da intimidade: o AN impede a consulta de documentos que, segundo seu critério, ponham em risco a imagem, a privacidade ou a honra de alguém. Como o direito à privacidade perdura por cem anos, o acesso a esses papéis estaria praticamente proibido. Trata-se de um grave erro. A consulta à documentação do regime militar não põe em risco a intimidade das pessoas neles mencionadas. Os documentos da repressão não são um testemunho da verdade, mas o registro histórico do arbítrio. O Arquivo Nacional não pode se arvorar em intérprete do direito à privacidade e arbitrar ? conforme as idiossincrasias do funcionário ocasionalmente situado na posição de decidir ? se este ou aquele papel agride a honra ou a imagem de alguém. Esse comportamento extravagante tem origem no temor que dirigentes e funcionários dos arquivos brasileiros têm de serem processados caso os documentos sejam divulgados. Entretanto, como é evidente, se algum usuário fizer mau uso do material, o arquivo não pode ser punido por isso.

Essas atitudes restritivas podem se transformar em censura: durante a campanha eleitoral, o AN impediu a consulta a documentos sob a alegação de que jornalistas estariam fazendo uso indevido e buscando dados sobre os candidatos. Por essa razão, afastei-me do Memórias Reveladas, projeto criado pelo governo, em 2009, com o objetivo de divulgar os arquivos da ditadura. Felizmente, o debate em torno do assunto tem servido para esclarecer a questão: o STM, quando julgou a liberação do processo contra Dilma Rousseff, não aceitou a tese de que a divulgação desses documentos afronte o direito à privacidade. Do mesmo modo, no dia 2, o Ministério Público Federal enviou recomendações ao Arquivo Nacional no sentido de eliminar as restrições.

CARLOS FICO É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UFRJ E AUTOR DE COMO ELES AGIAM: OS SUBTERRÂNEOS DA DITADURA MILITAR (RECORD)

 

TELEVISÃO
Cristina Padiglione e Alline Dauroiz

Vamos sorrir e cantar

Se vale a máxima de que nenhum reality show é de fato real porque ninguém se comporta naturalmente diante de uma câmera, Silvio Santos, puro show, é exceção à regra. Não que Senor Abravanel estampe o tempo todo aquele sorriso contemplado pela TV. O caso é que o homem, 80 anos completados hoje, não tem como fugir daquela voz que tudo lhe deu, daquele timbre de quem venderia geladeira até no Polo Norte, e daquele senso de humor que nem as próprias desgraças perdoa.

Silvio sabe rir dos outros – mais do que de si. Ao fim daquele fatídico dia em que o sequestrador Fernando Dutra Pinto invadiu sua casa e lhe fez refém, diante de um exército de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas, teve humor para contabilizar quantas horas a Rede Globo, sua rival, havia lhe dedicado em toda a programação.

Avesso a entrevistas, mas vaidoso, adora posar para a Caras. Há coisa de dois anos, fotografou, feliz da vida, para a capa da revista, ao lado dos manequins de cera em tamanho natural que trouxe dos Estados Unidos. Como empresário, Silvio Santos é excelente animador, e tem ciência disso – há um mês, por ocasião do rombo anunciado no Banco Panamericano, admitiu que nunca havia pisado na instituição e que seu negócio, em todo o grupo de 44 empresas, é de fato a televisão. A seguir, o Estado revela histórias, manias e paixões de Senor Abravanel, o camelô que virou magnata, por quem o conheceu por trás do pancake.

Silvio por Luciano Callegari (ex-diretor artístico e de programação do SBT, foi seu braço direito por 43 anos): ‘Com aquela risada, quem vai falar mal dele? Ele começa a dar risada na hora em que entra no palco, aquilo é uma máscara. Quando corta, é outro cara, e depois dos 70 anos, ele perdeu o rumo. Ele administra por conflito, gosta de jogar um executivo contra o outro. A liderança dele é a liderança do terror. Ele não tem amigos, não sabe participar de roda de amigos. Conta piada só no palco. Não tem vida social. Está recluso em Celebration, município ligado a Orlando. Leva filmes do Brasil para assistir lá. É ‘Um pobre homem rico’.’

Silvio por Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ex-vice-presidente de Operações da Rede Globo): ‘Silvio Santos e Senor Abravanel não são a mesma pessoa, como se pensa. Silvio Santos é o maior apresentador da televisão, em todos os tempos, comparável aos melhores do mundo. Senor Abravanel é um empresário centralizador que se orgulha de ter soluções próprias, quase sempre de bolso de colete, inesperadas e pouco convencionais. Às vezes dá certo, às vezes não. Mas temos que reconhecer que os dois são brilhantes, fato comprovado pela carreira deles.’

Silvio por Roque (Gonçalo Roque, coordenador de auditório, fiel escudeiro há 47 anos): ‘Conheci Silvio Santos na Rua Sebastião Pereira, na Rádio Nacional, quando eu entregava correspondência e trabalhava na portaria. Acabei indo ajudá-lo nos programas de auditório, atendendo o público e entregando brindes. O segredo dele para encantar uma plateia é o coração. Uma vez ele me disse: ‘Meu público é o que tenho de mais importante.’ Um dia ele voltou dos EUA e falou: ‘Trouxe uma ideia: a partir de agora, quero os banheiros que recepcionam o público mais limpos que qualquer cozinha de casa.’ Hoje nossos banheiros têm o melhor papel higiênico, flores e até coqueiro. E ele inspeciona de vez em quando.’

Microfone de lapela. Por Callegari: ‘Era o tempo da TV Paulista ou já início da Globo. O Silvio mandou trazer dois microfones (de lapela) dos Estados Unidos, eram os únicos no Brasil. Chamou o Hélio Siqueira, e disse: ‘Você vai ser responsável por esses microfones.

Quando for gravar, quando for embora, você tem que estar junto com isso, não larga, é sua responsabilidade’. Um dia o Hélio pegou os microfones, colocou no carro, banco de trás, e saímos, eu, ele e o Neymar de Barros, com umas meninas. Fomos jantar e tal, e quando voltamos, 4h da manhã, tinham roubado os microfones. Foi na rua Major Diogo, na Bela Vista. O Hélio ficou tão apavorado que perdeu a memória e foi internado. O Silvio chamou a gente de moleque, ameaçou mandar embora, e o Hélio lá internado. O Silvio foi ver o Hélio e o Hélio dizia ‘quem é o senhor?’ (Luciano conta às gargalhadas). Ele ficou quatro dias no hospital. Quando voltou a trabalhar, o Silvio foi até ele: ‘Tá melhor? Ótimo. Não pense que eu esqueci, não: você vai pagar 200 cruzeiros por mês, que eu vou descontar do seu salário, até pagar tudo’.’

Bebedeira. Por Boni: ‘Ainda na TV Paulista, aluguei uns quartos no Hotel Jequitimar no Guarujá, que muito tempo depois viria a ser comprado pelo Silvio. Por acaso encontrei o Silvio na praia e convidei-o a tomar uma caipirinha especial, feita por mim. Como se sabe, o Silvio não bebe. Mas, talvez para fazer uma média comigo, topou. Tomou a caipirinha de uma vez, como se fosse remédio, e caiu duro na areia. Tivemos que removê-lo para o quarto e arejá-lo. Chamamos um médico, mas antes ele voltou a si, dizendo: ‘Se você quer o meu horário eu dou, não precisa me matar’.’

Rotina. Por Roque: ‘Dia sim, dia não ele está no SBT. Chega geralmente 8h30, 9h. Grava três vezes por semana. No camarim dele não tem luxo. Mas ele faz questão da grelha e do fogão lá, porque é ele mesmo quem cozinha, quase sempre bife. E adora os queijinhos dele, provolone… Quem cuida do camarim é a dona Raimunda, que está com ele há uns 15, 20 anos.’

O artista. Por Callegari: Ele contratou a Carla Perez no auge. Aí dizia: ‘ela está fazendo muito sucesso, deixa esfriar um pouco pra gente colocar ela no ar’. Ela ficou quatro meses na geladeira. A minha leitura é a seguinte: ele vê em cada cara que faz sucesso uma concorrência pra ele. Quantas vezes ele prejudicou o Gugu porque o Gugu dava mais audiência que ele? Ele aumentava os breaks (comerciais ) do Gugu, colocava calhau (publicidade do Grupo SS)…’

Dica para o momento. Por Boni: ‘O Silvio Santos precisa de muitas dicas artísticas, mas antes o Senor Abravanel precisa de muitas dicas empresariais. Como os dois são rápidos e inteligentes, o SBT poderia reassumir logo a sua posição.’

Demissão. Por Roque: O Silvio nunca gostou que dirigissem pra ele. Mas o Palito era um manobrista que trabalhava para o Silvio há anos. Ele só manobrava o carro do Silvio, não dirigia. Mandaram o Palito embora uma vez e, quando o Silvio descobriu, falou que tudo bem, mas que ele só voltaria a trabalhar quando o Palito estivesse de volta.’

Silvio por Silvio. ‘Fui obrigado a ser dono de televisão, eu não nasci dono de televisão, eu nasci animador de programas e continuaria sendo animador de programas, se os homens não fossem tão vaidosos, tão poderosos.’ (em 1989, em seu programa)

 

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