Se ainda estivesse vivo, Paulo Francis iria completar 80 anos de idade em 2 de setembro. É de se prever que alguém aproveitará a data redonda e jubilosa para atribuir a morte do jornalista, em fevereiro de 1997, aos 67 anos, a uma ação de indenização proposta contra ele pela diretoria da Petrobras na época, liderada pelo presidente, Joel Rennó. Francis afirmou, pela televisão, que os diretores da estatal brasileira do petróleo (já não tão estatal assim) tinham contas secretas na Suíça, prova de seu enriquecimento ilícito.
Em outubro de 1996 os acusados processaram o jornalista por dano moral, cobrando indenização no valor de 100 milhões de dólares. Francis não tinha prova alguma do que afirmara. Mais uma vez, ‘chutara’ para provocar uma polêmica, uma das suas especialidades e a principal razão do seu sucesso profissional. Desde então, o enfarte fulminante que o matou na madrugada de 2 de fevereiro é atribuído – ou, pelo menos, associado – a essa ação.
Um livro esguio, em formato pequeno, talvez o melhor já escrito sobre o personagem (embora o menor), deve ajudar a acabar com esse mito. Paulo Eduardo Nogueira, atualmente editor da Scientific American Brasil, fez o que todo jornalista deveria fazer ao se propor abordar um tema: não ficou apenas nas versões (que, na maioria das vezes, são mais glamourosas ou interessantes do que a verdade) e foi atrás dos fatos em seu Paulo Francis – polemista profissional (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010, 160 páginas, coleção Imprensa em Pauta, R$ 19,90).
Ninguém precisaria ser advogado (bastaria ter rudimentos de direito) para perceber que a ação não prosperaria. É pouco provável que, por inadvertência, os dirigentes da Petrobras tenham proposto a demanda em Nova York, foro incompetente para processar o pedido. Afinal, a acusação de Paulo Francis foi feita no Manhattan Connection, programa semanal de talk-show do canal GNT (estreado em 1993), que só é exibido no Brasil. Não importa que a gravação tenha sido em NY: para fins de direito, o foro é o local de exibição (ou, no caso de publicação escrita, de sua circulação).
Sem surpresas
A proposição nos Estados Unidos tinha o evidente objetivo de se beneficiar da doutrina e da jurisprudência americanas, que (ao contrário do procedimento brasileiro) admitem valores elevados como verba indenizatória por danos morais, uma lesão subjetiva, difícil de mensurar.
Afora esse propósito, não parecia haver a determinação dos diretores da Petrobrás de sacar US$ 100 milhões de Francis. Talvez quisessem mesmo era assustá-lo, o que pode explicar a omissão do presidente Fernando Henrique Cardoso. Amigo de longa data de Paulo Francis, FHC não usou o poder que tinha para desestimular Rennó e colegas da ação, o que teria magoado Francis profundamente. Ele também sofreu com ‘o silêncio eloqüente da maioria dos colegas jornalistas, sobretudo de velhos amigos, que não saíram em seu apoio’, relata o biógrafo.
Francis contratou no Rio de Janeiro o advogado Paulo Mercadante, amigo de 40 anos, e em Nova York Deborah Srour, de um escritório de advocacia especializado em litígios no Brasil. Reclamava por ter de pagar US$ 7 mil a essa advogada. Mas já no início de janeiro de 1997 ‘seus advogados estavam otimistas. Semanas depois, a morte de Francis se encarregaria de encerrar a contenda. E o processo acabou arquivado por inadequação de foro: o juiz americano considerou que a denúncia deveria ser feita em cortes brasileiras’, informa Paulo Nogueira.
O próprio Francis ‘achava que venceria nos tribunais’. Sua rotina, que incluía intensa atividade cultural, não foi alterada. Ele ficou abalado pelo processo, mas seria ‘estupidez’ atribuir à ação a causa da sua morte, depõe Elio Gaspari, que tem outra explicação para o desenlace: ‘O traço obsessivo de sua personalidade, que com muita frequência colocava a serviço do conforto dos amigos, foi ocupado pelo assombro de ser perseguido’.
Paulo Nogueira faz a mais detalhada reconstituição psicanalítica do passado de Francis, com um pai frio e uma mãe amada, mas distante, da qual foi separado pelo internamento em colégios de beneditinos e jesuítas. Assinala todos os traumas e dificuldades que modelaram a personalidade de um homem aparentemente agressivo (e que de fato o foi em numerosas ocasiões), mas por dentro cheio de afetividade reprimida, malmente canalizada para seus amigos e mesmo desconhecidos. Alguém que se sabia menor do que pensava ser – e do que pretendia ainda ser.
Francis tomava antidepressivos à base de lítio para equilibrar-se: amanhecia de péssimo humor e só melhorava com o avançar do dia (e a ação do medicamento). Podia ter reações súbitas explosivas e manifestações inesperadas de paciência e carinho. Tinha que manter seu ego no altar para não sofrer recaídas. Em 1979, a reação ruim da crítica ao seu primeiro romance, Cabeça de Negro, arruinou seu aniversário de 49 anos. Tomou 10 Librium diários nesse período e, segundo seu biógrafo, chegou a pensar em suicídio.
Com um perfil que combinava total sedentarismo com consumo desenfreado de álcool e outras drogas em parte significativa da vida, além de outros complicadores, não surpreende a morte antecipada. Mas que podia ter sido adiada se o médico Jesus Cheda, que o tratava desde a década de 70, tornando-se seu amigo, ao invés de receitar mais injeções de cortisona para amenizar as dores da crônica crise de bursite, tivesse solicitado um exame do coração. O enfarte veio três dias depois da última aplicação. O médico já estava no Rio de Janeiro, para o carnaval.
Rico e conservador
O processo da Petrobras comprovava mais uma vez a restrição feita pelos seus críticos: de que ele não era rigoroso com os fatos, dos quais chegava a desdenhar ou que simplesmente inventava, da forma mais antiprofissional possível. Francis nunca foi exatamente um repórter, o que enfraquecia sua condição de jornalista. O título de o jornalista brasileiro mais bem pago, depois de quatro décadas em constante evidência, como grande polemista, um dos maiores de todos os tempos no país, se sustentava na sua excelente memória, rara capacidade de leitura, texto coloquial e vocação para agitar idéias, ‘raciocinando em bloco’, como se dizia na época de O Pasquim.
Por ser brilhante em muitas coisas, Paul Trannin Heilborn não foi consistente em nenhuma das suas múltiplas virtudes especificamente. Podia dar-se mal se fosse confrontar com especialistas cada uma das suas tiradas sobre história, ciência política, psicologia ou outros ramos do saber. É pouco provável, entretanto, que a esmagadora maioria desses acadêmicos conseguisse atrair a atenção do grande público como Francis, que não carregava no colete nenhum diploma universitário. Mal freqüentou aulas na Famosa Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio.
Mas em 1954 fez mestrado em literatura inglesa e teatro com ninguém menos que Eric Bentley, grande crítico e historiador do teatro. No Brasil dos nossos dias, não penetraria nos umbrais das universidades, ao menos as públicas. Muito menos seria jornalista, exceto agora, quando caiu o monopólio do diploma do curso de comunicação social para o exercício da profissão (mas só por ora, se depender das entidades corporativas).
A bibliografia de Paulo Francis, que compreende 13 volumes, com nove livros de ensaios e jornalismo, mais quatro de ficção, é pouco citada e o será cada vez menos com o passar do tempo. Grande leitor de romances e poesias, se frustrou naquela que era sua maior ambição: ser um grande escritor. Também ficou irrealizado seu sonho de se tornar intelectual do mundo: não conseguiu publicar artigos na Meca dos escritores, o semanário New York Review ok Books, nem ter um livro em inglês. O projeto de Getúlio Vargas, o homem que inventou o Brasil, não emplacou porque ele não se ajustou às exigências da prestigiosa Random House, depois de ter escrito 70 páginas do livro, em 1993.
Quando morreu, tinha duas páginas inteiras por semana em O Estado de S. Paulo, sem ser censurado (nem mesmo antes, porque os militares não prestavam atenção ao exterior, segundo Paulo Nogueira), o mesmo espaço em O Globo, aparições constantes na TV Globo e o Manhattan Connection, ao lado de Lucas Mendes e Caio Blinder. Era ao mesmo tempo influente e popular. Quantos jornalistas chegaram a esse topo?
Por isso, Sérgio Augusto, um dos seus amigos íntimos e o mais lúcido dos seus críticos, que não baixou a crista para os erros do colega, alerta no livro que não se pode ‘negligenciar a importância do convívio de Francis, a partir de certa época, com um círculo de ricaços e conservadores, gente como Delfim Netto e o banqueiro Ronald Levinsohn, que, a meu ver, muito mal fizeram à sua cabeça. A tão propalada guinada ideológica do Francis também é fruto de sua ascensão financeira como jornalista’.
Certa avidez pelo dinheiro, que o fazia lamentar o pagamento feito à advogada americana (o brasileiro provavelmente nada lhe cobrou), a ameaçar seu patrimônio material, e as idéias cada vez mais extremadas, perturbavam e o levavam a tomar posições incompatíveis com sua condição de analista. No depoimento que prestou a Gianni Carta para o livro À Margem do Sena, Reali Júnior aponta a distorção deliberada de Francis em outra acusação que fez: de que Lurian, a filha extraconjugal de Lula, era mantida pela Construtora Andrade Gutierrez em Paris como princesa.
Sua matéria causou estragos ao candidato do PT, na primeira disputa pela presidência da República, e beneficiou seu principal adversário, Fernando Collor de Mello, pelo qual Francis se entusiasmara tanto (por ser também rico e conservador como ele?), que praticamente adotara como seu príncipe (no conceito gramsciniano), apostando completamente errado, por qualquer critério de análise.
Polemista notável
O jornalista que estava acima de tudo para poder tratar de tudo e a tudo atingir, já descera à arena como personagem, não de fato, mas de papel, um mau papel, como em seus desconjuntados romances, sem tipos bem construídos, sem a grandeza da melhor literatura – e, no caso, nem do melhor caráter. ‘Francis morreu na hora certa’, definiu Sérgio Augusto com propriedade.
Talvez chegasse aos 80 anos como a negação do que foi de mais importante: um polemista notável e um editor como poucos. Basta lembrar sua trajetória por Senhor, a revista que esteve muito além do seu tempo (entre 1959 e 1962), o Quarto Caderno do Correio da Manhã (1967/68) e a revista Diner´s (1969), três das melhores publicações da história da imprensa brasileira.
Este Francis ficará. O outro, o mais recente, morreu antes de destruir o que construíra, conforme o enredo da má ficção que forjou.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)