Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a unanimidade causa miopia

A portentosa máquina administrativa do governo paulista, massiva e completamente imersa na tarefa de construir a candidatura do governador Geraldo Alckmin à presidência da República, começa a preocupar as demais forças do tucanato. Embora falte ao herdeiro involuntário de Mário Covas o carisma necessário à disputa – inimigos e até mesmo representantes do PSDB o chamam, estes reservadamente, de ‘picolé de chuchu’ –, ninguém em pleno juízo desprezaria a capacidade de convencimento do Palácio dos Bandeirantes.


E que tem a ver com observação da imprensa esse preâmbulo? – perguntaria o leitor atento. Tem que a disputa pela indicação do candidato à sucessão do petista Luiz Inácio Lula da Silva, no ano que vem, já começa a influenciar as pautas da imprensa nacional. Há cerca de dois anos, Alckmin começou a colocar em prática uma estratégia simples e inteligente, cuja matriz tem que ser creditada ao jornalista Luiz Salgado Ribeiro, sujeito discreto e experiente, capaz de superar com seu sotaque mordiscado de interiorano as mais árduas negociações. Ungido pelo governador, Salgado venceu a disciplinada máquina do antigo ‘partidão’, em que foi encaixado em tarefas mais operacionais que estratégicas, e passou a desligar a imagem de seu chefe do retrato de Mário Covas, devidamente incensado no altar tucano.


Bem assessorado pela combinação da lealdade de velhos amigos com a máquina disciplinada dos antigos comunistas, o governador vem ganhando espaços generosos na mídia e afastando da pauta alguns temas incômodos, como a suspeita de que sua polícia possa ter estabelecido relações mais do que fraternas com a chamada máfia dos bingos – nome que a imprensa dá aos bravos empreendedores que se dedicam a tomar dinheiro de cidadãos viciados em jogo.


Uma bela reportagem publicada na primeira semana de setembro pelo Jornal da Tarde, do Grupo Estado, sobre quadrilhas de ‘seguranças’ que vendem proteção a comerciantes e condomínios na capital paulista, apenas resvalou no assunto, mas não mereceu repercussão mais alentada nem no diário mais poderoso do grupo e se esvaiu sem continuidade, deixando mais dúvidas do que esclarecimentos.


Também desapareceu do noticiário o caso Naldinho – que contava a saga do bandido gorducho que conseguiu envolver sob sua influência o ex-goleiro Edson Cholbi do Nascimento, filho do cidadão que se tornou famoso sob o apelido de Pelé, rei do futebol, e jovens craques do Santos. A pauta sumiu no ponto em que um policial impertinente averiguava a possível participação, no esquema de investimento em empresas-fantasmas do exterior, de um empresário ligado ao PSDB que enriqueceu com a privatização de rodovias. O atacante Robinho, personagem muito visível da história, foi apressadamente transferido para a Espanha e o noticiário esfriou sem ter chegado à temperatura correta para ser levado à degustação da opinião pública.


Imprensa vulnerável


Complacente ao extremo com as fontes que lhe são simpáticas, a imprensa nacional tem mantido até o momento uma distância discreta da disputa que se desenha no ninho tucano, evitando posicionar-se mesmo quando ocorrem manifestações explícitas de apoio a uma ou outra das possíveis candidaturas.


Recentemente, abordado à saída de um evento na sede da Fiesp, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, questionado sobre uma possível volta ao Planalto, declarou: ‘Eu não, o candidato é Geraldo’. Não saiu uma linha sequer sobre essa primeira manifestação explícita do ex-presidente sobre o tema que nos próximos meses vai catalisar os debates políticos.


No atual cenário, até mesmo a omissão significa a tomada de uma posição explícita na questão sucessória. Ao ignorar os sinais de disputa interna no PSDB, a imprensa torna mais evidente sua adesão à candidatura tucana, qualquer que seja ela. O que permite calçar essa afirmação está distribuído pelo noticiário de todos os dias, como a recente entrevista do governador de Minas, Aécio Neves, ao âncora da Record, Boris Casoy, na qual o neto de Tancredo, num ambiente de indisfarçada camaradagem, deixou claro que também pretende ir à luta.


Engajada claramente em uma das vertentes das alternativas possíveis, a imprensa se torna vulnerável à competente ação dos assessores de imprensa e gera em sua estrutura os vícios que a tornarão dependente dos marqueteiros, quando a campanha esquentar. Dando de barato que a imagem do atual presidente estará completamente deteriorada daqui a um ano, os caciques da mídia consolidam no interior das redações a convicção de que o jogo está decidido.


No entanto, é bastante possível que o escândalo que se arrasta há quatro meses tenha afetado não apenas os políticos, estendendo seus efeitos deletérios à imagem da própria imprensa. A evidente unanimidade que se constrói na mídia muitas vezes causa miopia nos jornalistas e produz no público opiniões reversas. Nesse caso, poderemos assistir a um fenômeno raro, mas não inédito, no qual o noticiário constrói uma percepção da realidade que as urnas acabam desmentindo – como na ocasião em que, embalado pela imprensa, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso sentou prematuramente na cadeira de prefeito de São Paulo. Quando os votos foram contados, descobriu-se que o dono do assento era Jânio Quadros.

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Jornalista