Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Anchieta pagou resgate de Hipólito

Na sua edição de 7/7, uma quarta-feira, a Folha de S.Paulo surpreendeu seus leitores com uma brevíssima informação sobre a escolha de Hipólito da Costa como o primeiro herói nacional (pág. C-4). A consagração deu-se por meio da Lei 12.283 promulgada em 5/7/2010 pelo presidente da República então em exercício, José Alencar Gomes da Silva.

Incrível, fantástico, extraordinário! Há dois anos, em 2008, quando se festejou com pompa e circunstância a chegada da corte portuguesa ao Rio e obrigatoriamente deveria ser lembrado o início da circulação do primeiro periódico brasileiro sem censura (por isso impresso em Londres), o nome de Hipólito da Costa e os 200 anos da imprensa brasileira foram misteriosamente embargados e evaporaram do noticiário.

Depois comprovou-se que a manipulação histórica foi iniciativa da Opus Dei, então muito próxima da ANJ, Associação Nacional de Jornais, que não desejava a glorificação de um maçom, arqui-inimigo da Inquisição.

Este Observatório da Imprensa protestou, esperneou, deblaterou, reclamou junto ao Ministério da Cultura – nada feito: Hipólito não existia e a imprensa não deveria ter história, fruto de geração espontânea. Apenas a TV Brasil encomendou ao cineasta Silvio Tendler um documentário em duas partes, Preto no Branco exibido no fim de 2009.

Esperar para ver

De repente, um milagre e a inesperada escolha de Hipólito da Costa como primeiro Herói Nacional. Tudo se esclarece no próprio registro da Folha: o outro herói nacional escolhido pelo governo na mesma data (Lei 12.284) é o beato José Anchieta (1534-1597), jesuíta espanhol, apóstolo do Brasil, um dos fundadores de São Paulo.

Sob o ponto de vista literário ou mesmo como militância em defesa dos indígenas, Anchieta não se compara ao Imperador da Língua Portuguesa, o grande Antonio Vieira, também jesuíta. Mas Vieira era um ‘subversivo’, enfrentou a Inquisição, defendeu a volta dos cristãos novos a Portugal e escreveu uma utopia ecumênica denominada A História do Futuro. Encarcerado pelo Santo Ofício, escapou de castigos maiores porque foi chamado ao Vaticano.

Graças à ficha limpa de Anchieta, o governo não teve problemas em tirar Hipólito da gaveta dos esquecidos e convertê-lo em herói nacional.

Valeu, Anchieta! Os jornalistas brasileiros recuperaram o seu patrono. Política é a arte do possível.

Além da Folha, nenhum dos três jornalões ou semanários registrou a audaciosa manobra do governo. Resta saber como agirá a grande mídia para recolocar Hipólito da Costa no lugar que lhe cabe na história do Brasil.

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Em Tempo 1: O ‘Livro dos Heróis da Pátria’ foi criado pela Lei 11.597, de 29 de Novembro de 2007 assinada pelo então ministro da Cultura, Gilberto Gil e o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Em Tempo 2: Uma corrente de estudiosos da vida e obra de Anchieta acredita que o seu avô materno, Sebastião de Larena, era cristão novo (judeu convertido a força). Se a hipótese se confirmar, os dois primeiros heróis nacionais – Hipólito da Costa e Anchieta – seriam vítimas da intolerância religiosa ibérica. Faz sentido.