Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O óbvio e o relativo

As férias escolares de julho vão terminar, o que parece ter trazido com renovado impulso à pauta de jornais e revistas o tema recorrente da qualidade educacional. Também as listas de ‘melhores’ e ‘piores’ escolas, com base nos resultados do Enem e do Ideb recentemente divulgados, despertam na mídia o desejo de dar aulas sobre o pedagogicamente correto.


O jornalista Daniel Salles, na Veja São Paulo (28/7), declina as ‘Dez lições da escola número 1‘. As dez obviedades, porém, explicam apenas que o sucesso do ‘campeão’ do ensino médio, o Colégio Vértice, reside em circunstâncias anteriores ao exame que faz dele um hors-concours.


Que sentido há em concorrer com o Vértice ou compará-lo com as demais escolas? Ele já começa a ‘disputa’ vencendo, como seu nome indica: ápice, cume. Os alunos só são admitidos porque aprenderam a estudar, seus pais podem pagar a alta mensalidade, os professores do colégio ganham cerca de 7 mil reais por mês, as turmas são pequenas, os alunos têm acompanhamento individualizado, existe um projeto pedagógico unificado, interdisciplinar, aberto a variados esportes e ao mundo artístico.


Não se questionam os méritos do Vértice. Questionável é relatar sem relativizar. Na outra ponta da história também é razoável relativizar o fracasso de grande parte das escolas do ensino médio brasileiras (públicas e privadas), na medida em que suas próprias obviedades (situação social precária, professores desvalorizados, classes lotadas etc.) invalidam desde o início a tentativa insignificante, e em última análise injusta, de denunciá-las como escolas fracas.


Outras qualidades essenciais


As notas médias de uma escola são relativas porque nem todos os alunos inscritos no último ano se submetem ao Enem, dado o seu caráter voluntário. A matéria ‘Qual é o peso do Enem?’, da revista Época (26/07), assinada por Camila Guimarães, enfatiza essa relatividade. De resto, verdade seja dita, tal consideração está explícita na Nota Técnica do Inep.


Nesta Nota, há algo mais. O desempenho dos alunos, que em tese reflete o nível da instituição onde estudam, não depende somente do quanto um colégio é ‘bom’ ou ‘ruim’. A Nota lembra a importância do trajeto escolar de cada estudante, das suas circunstâncias familiares, bem como da comunidade onde está inserido, e emprega ainda um genérico ‘entre outros aspectos’.


O fato é que a qualidade da Educação não se mede adequadamente (se é que se mede…) sem se levar em conta o imponderável, esses ‘outros aspectos’ que as provas não capturam. Não capturam, por exemplo, o heroísmo de tantos alunos que as enfrentaram em inferioridade de condições. Suas notas menores mereceriam ser elevadas à potência de seus esforços de superação, somados à generosa dedicação dos seus professores.


O Enem é instrumento necessário de avaliação. Ajuda-nos a ver o óbvio: existe uma seleção socioeconômica e cultural prévia, decisiva. No entanto, cabe à mídia relativizar esses resultados, cobrando, sobretudo em relação à educação pública, e em especial às prefeituras e aos governos estaduais, outras ‘qualidades’ que antecedem a própria realidade escolar: a qualidade da saúde, da alimentação, da moradia, do transporte etc.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br