Quando o ‘comitê central’ da empresa Jornal do Brasil começou a examinar, na segunda metade dos anos 50, a ideia de definir o futuro com base em critérios universais do jornalismo moderno, foi abalado pela profecia segundo a qual jornais que chegam à beira do colapso não voltam a ter circulação digna de sobrevivência. Ninguém se lembrava de jornal que tivesse se recuperado de decadência prolongada.
A imprensa brasileira da época estava em olor de antiguidade. Diz a tradição oral que a condessa Pereira Carneiro não levou a profecia a sério e bateu o martelo em favor da reforma. Tinha como garantia a receita dos anúncios classificados, que jorravam nos guichês das agências e asseguravam o monopólio natural da oferta e procura de trabalho, oportunidades e necessidades. Era aos classificados do JB que recorria quem precisasse de uma cozinheira, o que lhe valeu o apelido de ‘jornal das cozinheiras’. O olho gordo do mercado cobiçava o privilégio.
A tradição oral do JB também diz que, por ocasião das sucessivas crises engatadas -suicídio de Getúlio e campanha presidencial precipitada por JK-, as primeiras-damas e viúvas dos jornais do Rio se encontraram num evento social e trocaram ideias sobre a situação tensa. Depois que Niomar Moniz Sodré (pelo Correio da Manhã) e Ondina Dantas (pelo Diário de Notícias) opinaram, a condessa Pereira Carneiro emitiu a opinião pelo Jornal do Brasil. Ao terminar, ouviu uma delas observar, com espanto simulado: ‘Então o `jornal das cozinheiras´ já tem opinião formada?’.
Reforma completa
A ideia de recorrer a uma reforma completa não tinha precedente digno de registro. O jornal, que havia se reduzido ao mínimo indispensável, fornecia também informações práticas demais para serem publicadas como notícias, ao lado de telegramas internacionais e textos de colaboradores, de preferência os acadêmicos da casa, o ministro Annibal Freyre, Manuel Bandeira, Múcio Leão e Josué Montello.
A direção, a Redação e as oficinas do jornal estavam, desde o começo do século 20, no número 110 da avenida Rio Branco, o primeiro edifício na América Latina construído em estrutura metálica, de procedência inglesa. A reforma não sintonizava com as pessoas nem seria compatível com o jornalismo burocrático, conformado à rotina sem criatividade. A velha Redação, sem ao menos uma máquina de escrever, se negava a apresentar outra visão dos fatos e outra maneira de apresentá-los.
A resistência finalmente se rendeu e se afastou, ao custo de um atraso providencial na execução do novo JB. A direção aceitou os riscos e alongou os prazos para que a nova Redação praticasse o moderno jornalismo que blindou o jornal na hecatombe nos anos 60, quando desapareceram de cambulhada os vespertinos, substituídos pelo jornalismo da televisão na hora do almoço.
Em seguida, chegaria a vez dos matutinos, reduzindo o número de jornais de repercussão nacional (Correio da Manhã, Diário de Notícias, O Jornal, Diário Carioca) ao longo dos anos 60. O JB se destacava pelo modo de fazer jornal e representar a classe média, que veio inaugurar a sociedade de consumo, cujo símbolo seria o automóvel de fabricação nacional. O governo JK [1956-61] começava a ser reconhecido e se reservava lugar no futuro.
Novas exigências
A liberdade de imprensa se ampliou. Daí por diante, o jornal ocupou o espaço vazio entre a imprensa anterior e os novas exigências do jornalismo, que experimentava recursos ainda distantes do Brasil, mas já tirava de cena os resíduos provincianos.
Até então, o prestígio do jornalismo se aferia no emprego público dos que assinavam artigos e reportagens. Para os demais, o jornalismo não passava de reforço do orçamento de cada um. Nos anos 50, eram sagradas nas redações as relações de nomes de desafetos do dono ou da família dele, que não deviam comparecer às páginas de jornais senão em notícias depreciativas. Em poucos anos, o jornalismo alcançou um padrão de salários que pressupunham trabalho em tempo integral e dedicação exclusiva.
O jornal deu a medida de sua criatividade na foto da reunião em que JK se dirigia fagueiro ao secretário de Estado americano Foster Dulles. A legenda subentendia no gesto dos dois uma peça de sucesso no teatro de revista: ‘Me dá um dinheiro aí’. O episódio gerou estremecimento entre o Palácio do Catete e o JB, mas chamou a atenção para o novo jornal.
Nem só de mocidade se fez, no entanto, a reforma, que começou pela limpeza gráfica. O JB, que deu o toque brasileiro aos fatos internacionais, com correspondentes nas matrizes dos fatos, já estava em condições de administrar, mais do que salários, a consideração profissional. O jornal entrava com a sua parte e o Brasil completaria, com inesperados e contundentes episódios, acumulados e mal resolvidos desde 1930.
Literatura e artes
Precedidas pelo ‘Suplemento Literário’ do Jornal do Brasil, que saiu um ano à frente do novo jornal e anunciou o novo tempo, a literatura e as artes plásticas derrubaram preconceitos estéticos com alegria renovadora e humor de competição. A crise política não fez cerimônia: alinhavou o sentido oculto nos fatos, desde a morte de Getúlio Vargas e o advento fulminante da candidatura Kubitschek.
(A sucessão presidencial se enrolou preliminarmente e, quando nada mais havia a perder após a vitória de JK, reapareceu o tumulto, para complicar a posse. A aparência de normalidade seria mais uma vez recomposta e a crise entraria de férias, para se reapresentar mais adiante, por iniciativa do presidente Jânio Quadros, à frondosa sombra da democracia.)
Movido pela mocidade de sua nova Redação, o JB acertou o passo com os fatos e não mais ficaria para trás. Em 1960, compareceu com convicção e vontade à inauguração de Brasília, em abril; integrou-se à cobertura da sucessão presidencial e foi testemunha da vitória de Jânio Quadros.
A reforma que trouxe o Jornal do Brasil do anonimato dos classificados para uma nova realidade política coincidiu com a dificuldade latente na vida brasileira.
De crise em crise
A crise voltaria logo, pela renúncia presidencial, e o novo JB aprenderia depressa a lidar com material diferente da rotina e a se fazer presente onde quer que a notícia acontecesse. E não deixava de acontecer. Já não se referia ao ‘jornal das cozinheiras’, mas ao ‘jornal da condessa’.
De Jânio Quadros, a crise política passou aos cuidados de João Goulart e acabou nas mãos dos militares, sem deixar de ser a mesma crise, vista com outros olhos. A sequência de presidentes militares pelo voto indireto (do Congresso) só terminaria em 1985, por exaustão, com a volta do poder à responsabilidade civil.
O lançamento nacional da reforma do JB se consolidou a partir da renúncia de Jânio e da difícil negociação em torno da posse de Goulart. Foi um momento de atualização intensiva para a rapaziada, que entendeu a oportunidade como um presente dos deuses. E passou a aplicar-se, em tempo integral, sem assinar ponto e sem hora de chegar e sair. Uma nova associação de vida e trabalho.
A crise, sempre renovada, foi em frente. Depois da renúncia, atormentou o governo João Goulart e culminou no golpe de Estado de 1964. O JB fez um curso rápido de crises e se diplomou em dificuldades específicas de situações previsíveis.
A edição histórica do dia 14 de dezembro de 1969 apresentou o Ato Intitucional nº 5 no papel de bruxa de Shakespeare. A edição valeu a aprovação dos mais velhos e credibilidade junto à juventude. O efeito multiplicador reforçou a imagem do jornal.
Ficou na tradição oral do jornalismo o episódio em que a condessa Pereira Carneiro, em almoço a ela oferecido pelo presidente Costa e Silva, dele ouviu a queixa da severidade com que o tratava o JB em seus editoriais. E explicou que era norma a ‘crítica construtiva’, que ele reconheceu e agradeceu, com a ressalva de que ‘gosto mesmo, senhora condessa, é de elogio’.
Reavaliação
A matéria-prima política desse período, que misturou causas e consequências, ajuda a situar no tempo, 25 anos depois da abertura política, a reavaliação -sob outra ótica- do declínio e desaparecimento de empresas jornalísticas no obscuro período sob a censura.
O JB foi um caso à parte. Não foi sobrenatural, mas coincidência que o acaso se recusou a assumir. Não constou da ata a ressalva de futuros ajustes, nem recibo de quitação. Há mais a decifrar do que a sobrevivência do JB por um período que o tempo compactará como a sequência que levou a nação a conclusões ainda por serem explicitadas.
Os jornais passaram a conviver com os efeitos do impacto das novas condições da economia, entre os quais o advento da classe média com ímpeto participante, embora em outro contexto político, sob o signo da normalidade institucional.
O saldo do JB deixou o exemplo de uma escola moderna de jornalismo, ainda a ser estudada no quadro político, econômico, social e cultural do tempo já histórico em que transcorreu. Pois à medida que a crise política se impôs, o Jornal do Brasil marcou presença junto aos fatos e com opinião representativa e a coerência possível. Com a volta à normalidade política, porém, a empresa se desencontrou do destino que os jornais também têm, mas que não se lê nas estrelas.
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Jornalista