A literatura, essa grande e antiga paixão nacional francesa, possui dois templos. O primeiro é a Academia Francesa de Letras, às margens do Sena, fundada em 1635. O segundo fica em uma das menores ruas de Paris. Mas o discreto número 5 da Sébastien-Bottin, nos arredores do Museu d’Orsay, é um endereço mítico, por onde já passaram os nomes mais gloriosos da literatura mundial do século XX e também da contemporânea. Ali está a sede da Gallimard, a editora que neste ano celebra seu centenário.
A Gallimard construiu uma reputação que ultrapassou as fronteiras nacionais. Franceses ou estrangeiros, escritores sonham ser publicados pela editora, cujo catálogo de mais de 40 mil títulos reúne celebridades como Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Marcel Proust, Marguerite Yourcenar, Le Clézio, Ernest Hemingway, Franz Kafka, Jorge Luis Borges e Mario Vargas Llosa, para citar alguns nomes da vasta lista de personalidades da literatura mundial que são prata da casa.
Aproximadamente 25 mil títulos já foram digitalizados e é frequente a oferta de lançamentos em formato eletrônico. Desse modo, a Gallimard procura estar presente num segmento de mercado com tendência de crescimento em todo o mundo.
A lista de grandes nomes publicados pela editora é tão expressiva quanto a reputação de seus escritores: 35 prêmios Goncourt (a mais alta distinção da literatura francesa, que seria o equivalente, no cinema, à Palma de Ouro do Festival de Cannes) e 36 prêmios Nobel.
Autonomia de gestão
Apesar do domínio no campo das premiações, a Gallimard não é a líder de mercado na França. Seu faturamento, de € 242 milhões, está bem abaixo dos quase € 2,3 bilhões do grupo Hachette, número um francês. Mas a Gallimard tem orgulho em frisar que é a maior editora “independente” do país, uma empresa familiar, comandada hoje por Antoine Gallimard, neto do fundador.
Tudo começou no antigo prédio de uma tinturaria, a primeira sede da editora. Em 31 de maio de 1911, Les Éditions de la Nouvelle Revue Française, antigo nome da Gallimard, surge como braço editorial da revista literária de mesmo nome, a Nouvelle Revue Française (NRF), criada em 1909 pelo escritor André Gide e um grupo de cinco autores. Gaston Gallimard, frequentador dos meios artísticos, é convidado por seu amigo Gide (Nobel de literatura em 1947) a administrar o negócio e se tornar um dos sócios.
O primeiro livro publicado, em maio de 1911, foi L’Otage (O Refém), de Paul Claudel, que marca o lançamento da famosa coleção “Blanche”, com suas capas cor marfim e decoradas até hoje de forma minimalista, com um traço preto e duas linhas vermelhas em volta das margens. Essa coleção é considerada a mais emblemática da editora (ao todo, são 70), por seu prestigioso catálogo de escritores franceses, que já venderam mais de 70 milhões de exemplares.
Atualmente, a Gallimard recebe, por ano, cerca de 6 mil manuscritos de autores que têm esperança de ver seus nomes nas capas da concorrida coleção.
É certo que nem todos podem ter talento literário. Mas o processo seletivo certamente não ficou livre de equívocos na longa história da Gallimard. Um deles, colossal. Por inacreditável que possa parecer, a editora recusou dois dos maiores nomes da literatura francesa do século XX: Marcel Proust e Louis-Ferdinand Céline. No Caminho de Swann, primeiro volume do clássico Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, acabou sendo publicado, em 1913, pela concorrente Grasset.
O equívoco de considerar as primeiras 700 páginas do texto de Proust “uma obra de lazer de um escritor mundano” foi corrigido pouco depois, graças ao empenho de Gaston Gallimard, que trouxe o escritor para a editora. Em 1919, À Sombra das Moças em Flor, segundo volume da série de Proust, ganhou o prêmio Goncourt. Foi o primeiro grande sucesso da Librairie Gallimard, como passou a ser chamada a empresa, depois que a NRF foi dissociada da editora, em 1919, e Gaston Gallimard assumiu o controle da nova companhia (que só se tornou Editora Gallimard em 1961).
O fundador decidiu, logo nos primeiros anos, diversificar o catálogo para assegurar a rentabilidade da empresa, o que incluiu revistas populares, temporariamente, com o objetivo simultâneo de constituir um fundo editorial com os autores mais promissores. Uma livraria foi aberta em Paris e o célebre comitê de leitura, que existe até hoje, já integrado por nomes como André Malraux, Albert Camus e Le Clézio (Nobel de Literatura em 2008), foi instituído no início dos anos 1920, para escolher os livros publicáveis.
O número de coleções da Gallimard foi bastante ampliado nas últimas décadas. Hoje, são cerca de 70, entre as quais a “Folio”, de livros de bolso, e a “Du Monde Entier”, de escritores estrangeiros, que já publicou os brasileiros Jorge Amado, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade.
Uma das coleções mais renomadas é “La Bibliothèque de la Pléiade”, considerada o Olimpo das obras da literatura mundial, escolhidas a conta-gotas (somente 568 títulos foram publicados desde 1933).
Se a Gallimard passou seus 12 primeiros anos com altos e baixos em termos de desempenho financeiro, pôde, enfim, dedicar-se a uma forte expansão a partir dos anos 1950. Chegou, então, a adquirir 13 outras editoras, das quais 4 (L’Arpenteur, Le Promeneur, L’Arbalète e Bleu de Chine), de menor porte, passaram a integrar seu catálogo de coleções. Hoje, é um grupo formado por 11 editoras e 11 livrarias (cinco em Paris, cinco em Estrasburgo e uma no Canadá). Em 1920, a Gallimard tinha apenas 25 empregados. Hoje, são mais de mil. O grupo possui ainda duas distribuidoras, a Sodis e a CDE, criadas no início dos anos 1970, após o encerramento do acordo de distribuição com o grupo Hachette, firmado na década de 1930. Essa decisão, tomada com o objetivo de manter a autonomia de gestão, e o lançamento da coleção de livros de bolso são considerados na empresa como momentos decisivos para a subsequente projeção da Gallimard entre as principais editoras francesas.
“Editora do século”
Como em outras empresas familiares, não faltaram crises de convivência na Gallimard. A editora poderia ter perdido sua independência no final dos anos 1980 em razão de desentendimentos entre os quatro filhos de Claude Gallimard, filho de Gaston, que comandou o grupo até essa época e morreu em 1991. Foi Antoine, designado pelo pai, Claude, quem assumiu a presidência em 1988, posição que mantém até hoje. Uma holding familiar criada em 1992, a Madrigall (anagrama de Gallimard), possui 98% do capital do grupo, dos quais Antoine e suas filhas detêm 60%.
Costuma-se dizer, nos meios editoriais, que o sucesso da Gallimard se deve, sobretudo, ao fato de que a editora foi criada sem apego a linhas ideológicas, e sempre esteve aberta aos diferentes estilos e movimentos literários, como o surrealismo e o existencialismo, sem levantar a bandeira de nenhum tipo de causa.
“Sem nenhuma ligação política ou religiosa, Gaston Gallimard só tinha uma ambição: reunir sob sua grife os maiores escritores”, afirma o historiador Michel Winock.
“Todos os movimentos foram representados na Gallimard. Ela foi fundada por escritores, sem objetivos comerciais, e voltada exclusivamente para a literatura. É algo raro”, disse ao Valoro escritor Roger Grenier, 92 anos, que entrou na editora nos anos 1960, para participar da direção literária.
Grenier, que até hoje integra o comitê de leitura da editora, trabalhou durante cerca de uma década com o fundador, Gaston Gallimard, cujo escritório, naquela época, ficava em frente ao seu. “A empresa se expandiu muito desde aquela época. Mas sua alma continua a mesma”, afirma.
“Publicamos livros que sabemos que não serão vendidos, mas achamos que possuem um interesse literário”, conta Grenier. Ele dá o exemplo de um autor que nunca vendeu mais de 2 mil exemplares, mas continua sendo publicado há 60 anos. É Marcel Jouhandeau. Sai em novembro um novo livro dele, de cartas ao escritor Jean Paulhan, que dirigiu a NRF.
A história da Gallimard se mistura à própria história da literatura mundial do século XX, numa caminhada, não livre de obstáculos, em que foram superados também os anos sombrios da Segunda Guerra. Para não fechar as portas, a editora fez um acordo com os alemães: Gaston continuaria a administrar a empresa, mas teve de aceitar que um colaboracionista dirigisse a revista NRF e também se envolvesse na editora. Mesmo assim, a Gallimard conseguiu criar uma resistência intelectual paralela e não perdeu o apoio de grandes escritores.
Apesar desse episódio, nada tira o brilho das comemorações do centenário da Gallimard, chamada por alguns na imprensa francesa de “editora do século”. A prefeitura de Paris também fará uma homenagem: a rua Sébastien Bottin, onde fica a sede da empresa, nome de um estatístico francês, passará a se chamar, a partir de 15 de junho, Claude Gallimard.
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Baudelaire, Rodin e Paul Gallimard
A Biblioteca Nacional da França celebra o centenário da editora Gallimard com uma exposição que apresenta raridades ligadas à história da literatura, muitas delas jamais expostas. É o caso de uma edição original do livro As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, ilustrada pelo escultor Rodin a pedido de Paul Gallimard, pai do fundador da editora, Gaston Gallimard. Também estão expostos os desenhos originais de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, emprestados por um colecionador particular.
A mostra “Gallimard, um século de edição” apresenta as “fichas de leitura” da editora, também jamais apresentadas ao público e que mostram o processo de seleção das obras. Nessas fichas, os membros do comitê de leitura (que existe até hoje e é formado por intelectuais e escritores célebres) julgam se os textos enviados à editora devem ser publicados, com comentários e notas que vão de 1 a 3 (3 significa que a recusa é certa). Para comprovar que leu o manuscrito, o membro do comitê precisa resumir a história.
A exposição, que fica em cartaz até 3 de julho na parte nova da Biblioteca Nacional, também conhecida como François Mitterrand, reúne numerosos outros documentos, entre manuscritos de grandes obras, com anotações de última hora feitas pelos autores, maquetes originais e também cartas trocadas entre escritores e a Gallimard. Entre elas, aquela em que Gaston tenta, em 1921, convencer Sigmund Freud a aceitar que suas obras sejam publicadas pela editora. “Nossa empresa não é puramente comercial. Antes de mais nada, são nossos gostos que prevalecem”, escreveu Gallimard ao fundador da psicanálise, que já estava comprometido com outra editora francesa, mas acabou aceitando posteriormente o convite.
Em exposição
A primeira sede da editora, no prédio de uma tinturaria: ali, em maio de 1911, iniciou suas atividades Les Editions de la Nouvelle Revue Française, antigo nome da Gallimard
Em outra carta, Louis-Ferdinand Céline, um dos maiores nomes da literatura francesa do século XX, apresenta o manuscrito de seu primeiro romance, Viagem ao Fim da Noite, e pede que Gaston responda “o mais rápido possível se deseja publicá-lo”. A obra, hoje classificada como a sexta entre os “100 livros do século” em pesquisa realizada pelo jornal Le Monde e pela rede de lojas Fnac, em 1999, foi recusada em 1932 pela Gallimard, que depois conseguiu, no entanto, integrar o escritor a seu catálogo.
A exposição também apresenta vários documentos audiovisuais, com entrevistas de grandes escritores, como Céline e Jorge Luis Borges, que analisam suas técnicas de escrita ou falam de livros que influenciaram suas obras.
Os documentos expostos integram os acervos da editora e as coleções da Biblioteca Nacional da França e de instituições francesas e internacionais. (D.F.)
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Quartier Latin perde suas livrarias, e um tanto da alma
Mundialmente famoso, o bairro parisiense Quartier Latin, onde fica a Universidade Sorbonne, está perdendo a essência de sua alma: as livrarias. Desde 2000, uma centena desapareceu nessa região bastante frequentada por estudantes e professores, por causa da grande concentração de faculdades e escolas, várias delas renomadas.
O número de livrarias no Quartier Latin passou de 225 para 124 na última década. Boa parte foi substituída por lojas de roupas. O fenômeno afeta até mesmo grandes nomes do setor, como PUF (Presses Universitaires de France) e Divan, do grupo Gallimard, que se mudou para outro bairro, onde os aluguéis são mais baratos do que no Quartier Latin.
Para estancar esse esvaziamento e evitar a descaracterização do bairro, a prefeitura de Paris decidiu incentivar a abertura de livrarias. O método utilizado é simples: apoio financeiro aos comerciantes, com aluguéis abaixo dos níveis de mercado. Por meio de uma sociedade de economia mista, a Semaest, a prefeitura compra os locais, realiza as obras necessárias e os aluga.”Constatamos que as livrarias, que registram pouca margem de lucro, têm problemas para enfrentar os aumentos dos aluguéis nesses últimos anos”, afirma Lyne Cohen-Solal, secretária municipal de Comércio.
O projeto, chamado Vital’Quartier, garante aos livreiros três meses de aluguel grátis para cobrir despesas iniciais com a abertura do negócio e também oferece aconselhamento em relação a empréstimos bancários e contratação de funcionários. Desde 2008, 11 livrarias foram inauguradas no Quartier Latin e duas novas editoras, com lojas, serão abertas nas próximas semanas.
“Sem esse esquema da prefeitura, não teria me lançado no negócio”, diz Olivier Pochard, que inaugurou em dezembro do ano passado, no antigo local de uma agência de viagens, uma livraria especializada em temas ligados à natureza, nas proximidades do Jardin du Luxembourg. Sua loja reúne cerca de 8 mil obras sobre jardinagem, botânica, ecologia e horticultura.
A iniciativa municipal permitiu a outro livreiro já instalado na região ampliar suas atividades. “O preço dos aluguéis nos impedia de criar uma seção infantil”, diz Jean-Paul Collet, diretor da La Petite Boucherie, de livros para crianças, inaugurada há seis meses ao lado de sua loja de literatura juvenil. Com a ajuda da prefeitura, ele conseguiu alugar 62 metros quadrados renovados sem precisar pagar entre €40 mil e €50 mil (mais de R$ 90 mil) de luvas.
Considerado o berço das letras na França, o Quartier Latin, cujo nome se deve ao uso exclusivo do latim nos cursos universitários na época medieval, foi também o centro dos protestos estudantis de maio de 1968. Preservar esse aspecto cultural do bairro “é uma expressão de vontade política”, diz a secretária municipal. (D.F.)