“A justiça foi feita!” (Barack Obama)
A eliminação de Osama bin Laden, numa ação militar fulminante, provocou compreensível euforia cívica, com certo sabor de desforra, misturada com um sentimento de relativo alívio no seio da sociedade norte-americana. Afinal de contas, a caçada de muitos anos ao feroz dirigente da sinistra Al Qaida foi encarada sempre como questão prioritária por parte das autoridades governamentais do mais poderoso país do mundo no combate ao terrorismo. Os pormenores da operação, executada com impressionante eficiência e precisão, liberados em meio às celebrações, deixaram uma pá de interrogações em suspenso. Enigmas que, mais pra frente, quem sabe, acabarão sendo devidamente decifrados.
Bin Laden foi executado sumariamente ou foi conduzido à prisão para interrogatórios? Seu corpo foi atirado ao mar? Como explicar o fato de elemento tão influente nas aguerridas hostes terroristas não dispor de qualquer segurança armada para fazer frente a um eventual ataque adversário? Sua segurança era garantida por militares paquistaneses, incompreensivelmente ausentes dos postos de vigilância à hora da chegada da força especial americana? E o Paquistão, os militares desse “confiável aliado”, responsáveis pela guarda de respeitável arsenal atômico, qual será mesmo a deles nessa colossal encrenca? As perguntas se amontoam. Sem respostas satisfatórias, por enquanto.
Desastrado e hipócrita
O que se tem mesmo como certo, por agora, é que a morte do “inimigo público nº 1” não significará, inapelavelmente, o fim (tão almejado) das ações desencadeadas pelo terror. As falanges fundamentalistas radicais que atendiam à voz de comando de Bin Laden permanecem com as estruturas intactas. Aglutinam – tudo leva a crer – outras fanáticas lideranças. Pessoal firmemente propenso a dar continuidade a incendiários projetos. Contam também, para a consecução de seus pérfidos desígnios – e nisso aí se descortina cruel paradoxo –, com a contribuição inestimável de insuspeitados parceiros. Um complexo político poderoso que um filósofo norueguês radicado nos EUA, Jon Elster, rotula de “força civilizadora da hipocrisia”. Que outra coisa não aponta senão os tortuosos caminhos (e descaminhos) geopolíticos percorridos, não é de hoje, em patético relacionamento com o mundo árabe, pode-se dizer islâmico, pelas potências ocidentais – os Estados Unidos em incontrastável primazia no cenário.
A localização do refúgio (com certeira certeza um dos numerosos refúgios) de Bin Laden naquela mansão da zona urbana de uma cidade populosa, a curta distância de importante base militar, a poucos quilômetros da sede do governo paquistanês, apresentado na estranha retórica oficial como poderoso e decisivo aliado norte-americano na ofensiva contra o terrorismo, é um dado revelador a mais (de eloquente contundência) de que o comportamento ocidental no relacionamento com o universo árabe anda clamando por urgente reconsideração. O que é dito em comunicados, o que se alardeia na propaganda disseminada por uma mídia cúmplice, complacente, não se coaduna, jeito maneira, com a estarrecedora realidade dos fatos. A prevalência de interesses econômicos estratégicos (com destaque para a ganância pelo controle da exploração petrolífera) nos pactos políticos firmados com reconhecidos déspotas árabes coloca-se em flagrante colisão com a apregoada disposição de incremento das práticas democráticas na região. Esse jogo de maquiavélicas conveniências, carregado de artimanhas, dissimulações, equívocos, faz-de-conta, não atende, está na cara, aos justos anseios e clamores das populações sob o jugo opressivo dos tiranos escalados em espúrios arranjos.
Anotem aí: a “primavera árabe”, que brotou espontaneamente nas ruas impulsionada pelo inconformismo da juventude e que ainda não rendeu os frutos democráticos almejados, poderá implacavelmente, imperdoavelmente, sucumbir diante dessas marotas e incongruentes estratégias geopolíticas. O combate eficaz ao brutal e anacrônico complô terrorista, ninguém se iluda, há que passar indesviavelmente pela total reformulação do esquema de atuação, desastrado e hipócrita, levado a cabo pelas potências ocidentais no conturbado cenário árabe.
A criatura contra o criador
“A política pode arruinar o caráter” (Bismarck)
Os finados Osama bin Laden e Saddam Hussein, tal como Mubarack, Kaddafi, Idi Amin Dada e outros menos votados, tiveram também seus bons momentos de fastígio na corte, proporcionados pelas superpotências em suas sempre inextricáveis manobras geopolíticas, sobretudo em regiões onde o petróleo costuma, por coincidência, jorrar com abundância. Um e outro dispuseram, nos períodos em que desempenharam as funções de “aliados confiáveis”, de todo o aparato logístico necessário para estruturar aguerridas forças políticas e militares. O ex-dirigente supremo da sinistra Al Qaida, príncipe da casa real saudita, desfrutou por bom tempo das regalias atribuídas a um “leal combatente” da causa da liberdade. Jogaram-lhe nas mãos recursos ilimitados para sustentar a guerra contra os invasores russos no eternamente convulsionado Afeganistão.
O tratamento a pão de ló que lhe foi concedido nessa época – os de boa memória hão de se lembrar – rendeu louvações em verso e prosa na mídia (com direito até a filmes de grande bilheteria) aos feitos heroicos de seus comandados. Os chamados mujahidins, que outros não eram senão os notórios guerreiros terroristas das mundialmente conhecidas milícias talibãs. A TV costuma projetar, com frequência, nas constantes “super-estreias” das fitas de sempre, um filme estrelado por Silvester Stalone, onde o feroz Rambo aniquila, com a habitual competência, os inimigos da ordem democrática, no caso específico soldados russos. O imbatível herói conta ali com decisiva ajuda dos milicianos talibãs, impertérritos defensores das liberdades e dos direitos humanos, na elogiável empreitada em prol da reinstauração da democracia no território afegão… Taí interessante amostra dos contrassensos históricos colossais que movem as pedras no xadrez político internacional. São equívocos e contradições do gênero que vêm assegurando a permanência no poder, como se está a ver agora mais nitidamente, desses personagens assustadores colocados na alça de mira das multidões árabes que, nas ruas, declaram-se neste momento ávidas por mudanças.
O resultado de toda essa “melódia” sabemos bem todos qual acabou sendo. Assim que os invasores russos deixaram o solo afegão, a criatura (leia-se Bin Laden) resolveu voltar-se contra o criador. Danou a aprontar horrores. As falanges fanáticas sob sua liderança compuseram atemorizante rede terrorista. Espalharam os tentáculos por tudo quanto é canto, alterando para sempre os relacionamentos na esfera internacional. Apontado como inimigo público nº 1, cabeça a prêmio, detentor de currículo sanguinário, Bin Laden não se defrontava com dificuldades, incompreensivelmente, nos deslocamentos pelas regiões onde ditava suas palavras de ordem aos tresloucados seguidores. E pelos territórios dos países vizinhos.
Bastante fortes eram os indícios de que recebia apoio permanente de setores supostamente comprometidos com a gigantesca e dispendiosa operação político-militar articulada com o fito de localizar-lhe o paradeiro e desbaratar as forças que conseguia arregimentar. As dificuldades encontradas em sua captura alimentavam graves suspeitas. A ação que acabou resultando em sua retirada de cena comprovou a procedência das suspeitas. As complicadas maquinações geopolíticas em que se acham enredadas as superpotências, apostando obsessivamente em alianças nada confiáveis no mundo árabe, tornam a interpretação das coisas bastante difícil. Bin Laden prova isso. E quanto a Saddam Hussein? História um tanto quanto parecida com a de Bin Laden. Tema pra próximo capítulo.
Julgado, condenado e executado
“Uma das fontes da política externa é a perversidade” (Voltaire)
E quanto a Saddam Hussein? Esta indagação arrematou o comentário anterior, onde lançamos algumas informações concernentes às espúrias alianças que as superpotências, com suas alopradas estratégias geopolíticas, destituídas de preocupações éticas, na base do vale-tudo, têm estabelecido, ao longo dos tempos, nas convulsionadas paragens árabes. Ocupamo-nos nas considerações alinhadas de um sinistro personagem, Osama bin Laden, alguém que, por longo período, desfrutou das boas graças de seus arquiinimigos.
Saddam, antigo senhor feudal do Iraque, também protagonizou, por longo período, em intrigante enredo, o reluzente papel de valoroso “combatente da causa da liberdade”. Cumpriu, parece que satisfatoriamente, a missão que lhe atribuíram. Para executá-la recebeu todo o apoio logístico requerido. Sustentou uma guerra demorada com o vizinho Irã na tentativa de conter as ameaças expansionistas da revolução islâmica patrocinada por aiatolás raivosos e fanáticos seguidores. Sem que ficasse exposto na ocasião, como merecido, por omissão da mídia, aos holofotes da opinião pública mundial pelas felonias cometidas, usou os armamentos que lhe foram dados para dizimar também adversários no plano doméstico. Apagou de seus domínios qualquer tênue traço de oposição. A paranoia em torno da segurança interna montada em seu governo era de tal ordem que uma simples máquina de escrever manual ou um mero mimeógrafo, peças hoje recolhidas ao museu das invenções, eram considerados provas arrasadoras no enfrentamento pelas forças de segurança de ações subversivas contra o Estado constituído. Como as ditaduras de todos os matizes se parecem, Santo Deus!
Houve um instante, porém, em que Saddam Hussein – talqualmente ocorreu com Osama bin Laden e com Idi Amin Dada – resolveu, como se diz no popular, trocar de lado. Deu no que deu… Avançou estrepitosamente o sinal no Kuwait, tentando anexá-lo ao Iraque. Topou pela frente poderosa coalizão de forças dos antigos aliados. Atraiu, de quebra, o repúdio da opinião pública. Viu-se, naturalmente, obrigado a retroceder. Nessa invasão iraquiana ao Kuwait aconteceu um episódio singular, clamorosamente desprezado pela grande mídia. Vale a pena rememorá-lo, uma vez que ilustra com adequação a natureza sibilina e perversa do relacionamento desde sempre mantido pelas grandes potências com os regimes despóticos do universo árabe. Assim que as tropas de Saddam pintaram no pedaço kuwaitiano, a família real deu no pé. Carregou o que pôde de seus respeitáveis haveres, buscando refúgio na Arábia Saudita. Quem cuidou de montar, valentemente, uma linha de resistência aos invasores foram palestinos residentes no país. O esforço defensivo estabelecido retardou um tanto a marcha das tropas em direção aos poços petrolíferos. As forças da coalizão apareceram e os iraquianos tiveram que se bater em retirada.
Recuperado o controle do país, a realeza do Kuwait reempossou-se solenemente das funções. Mais do que depressa, sem conceder tempo para manifestações de simpatia popular aos palestinos combatentes, tratou de eliminá-los, na acepção mais completa da palavra. Os monarcas kuwaitianos cuidaram “prudentemente”, com o truculento recado, de proclamar sua inabalável discordância quanto à possibilidade de despontarem, eventualmente, na cena pública, aureolados ou não com fama de heróis, novos, incômodos e certamente contestadores líderes. Silêncio sepulcral baixou sobre o expurgo. Nenhum governo da coalizão que libertou o Kuwait chiou. Ninguém cobrou dos augustos soberanos explicações pela pérfida façanha. A grande mídia, a seu turno, deu preciosa demão na ocultação dos fatos. Isso aí…
É sempre assim. As coisas que rolam nesses misteriosos recantos árabes do orbe terráqueo dominados por monarquias feudais e tiranias militares e religiosas brutais e corruptas desafiam sempre a lógica comum.
Voltando a Saddam. O que sobreveio após a frustrada tentativa da anexação do Kuwait, todos conhecemos razoavelmente bem. O antigo e prestimoso aliado de Washington, que se acreditou em desvario provocado por ambições pessoais doentias, suficientemente fortes para enfrentamentos mais pesados e desafiadores, veio a ser apeado do poder, anos depois, na guerra suja, sem fim à vista, desencadeada pelo xerife George Bush com a prestimosa ajuda de seu fiel aspençada Tony Blair.
O homem forte do Iraque foi julgado, condenado e executado. Os registros históricos relacionados com esses fatos fazem parte da memória de nossos tempos.
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Jornalista, Belo Horizonte, MG