Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Por que a surpresa?

Natal e o Rio Grande do Norte foram tomados pela comoção depois que Amanda Gurgel deu seu depoimento na Assembleia Legislativa falando das condições de trabalho, do salário e de outras mazelas que os professores da rede estadual e municipal de ensino sofrem diariamente. Há anos vem sendo denunciado por órgãos de imprensa alternativa ou pela grande imprensa, que momentaneamente é oposição, a má condição de trabalho dos professores do RN, estado este que nem sequer paga o piso nacional da categoria. Os vencimentos de muitos professores, inclusive o de Amanda Gurgel, é de R$ 930 mensais para manter a qualificação inerente à profissão, bem como sobreviver minimamente de maneira digna.

O vídeo com o depoimento da professora de Português está no YouTube e, segundo o globo.com, virou hit. Em quatro dias, até 19 de maio à noite, o depoimento da professora havia sido visto 200 mil vezes graças à divulgação do referido vídeo nas redes sociais, neste caso especial, no Twitter. Muitas personalidades publicaram apoio, através da rede social, elogiando Amanda. Entre elas, Gilberto Gil, Zélia Duncan e Marcelo Tas, do CQC.

Participei de diversas coberturas jornalísticas em protestos e manifestações do movimento sindical e social do Rio Grande do Norte, em especial em Natal, capital do estado. Muitas vezes encontrei Amanda, inclusive entrevistando-a, certa vez, em reportagem sobre a greve dos professores de Natal para o http://foque.com.br/. Nunca vi nenhum jornalista da “elite” midiática de Natal entrevistá-la ou dar voz a qualquer outra militante, principalmente a filiados ao PSTU, que nas últimas eleições para o governo estadual (2002, 2006 e 2010) abordaram de maneira muito incisiva a má educação no estado. Educação essa que sempre fica entre os piores nos exames do Índice de Desenvolvimento da Escola Básica (Ideb), sendo o 6º colocado no Nordeste, ou seja, o antepenúltimo, já que o NE tem nove estados.

Secretária reconhece o problema

Enquanto trabalhadores que exercem sua profissão com determinação, sacerdócio e muito esforço para sobreviver com um salário irrisório, os deputados federais, alguns deles semi-analfabetos ou analfabetos completos, recebem por mês R$ 26 mil, para dizer em plenário, apenas, “Sim, presidente”; “Não presidente”.

Após a repercussão de um depoimento na casa legislativa do estado, onde se discutia a questão da educação e mais uma greve dos professores estaduais do RN, a imprensa pegou carona na popularidade de Amanda Gurgel e alguns blogueiros mercenários, alguns jornais, emissoras de televisão e estações de rádio que sentem asco, desprezo e chamam sindicalistas e militantes em greve de vagabundos, publicaram o depoimento em vídeo, áudio, ou realizaram entrevistas falando da “fama” de uma professora que já declarou não aceitá-la. Já existem blogueiros elegendo Amanda vereadora de Natal em 2012, o que seria muito melhor que os parlamentares que estão hoje na Câmara Municipal de Natal.

Avalio que a grande imprensa perdeu uma boa chance de questionar e realizar o trabalho que lhe foi conferido, de “guardar os cidadãos dos abusos dos governantes” (Traquina). Porém, fizeram o contrário. Distorceram o discurso de sete minutos da professora, transformando-a em hit de internet ou em famosa por ter recebido o apoio de diversos outros profissionais que, assim como ela, exercem uma profissão nobre esquecida pelo Estado brasileiro.

À InterTV Cabugi, filiada a rede Globo, a secretária estadual de Educação, Betânia Ramalho, elogiou a maneira de falar de Amanda e da sua explanação. Betânia Ramalho ainda declarou que a professora não disse nada de novo. Ora, sendo assim, a secretária de Educação reconhece o problema, mas não tocou no assunto, resumindo-se a elogios inoportunos. Assim como faltou à repórter tocar no ponto crucial da questão: “Qual a inflexão necessária para guinar a educação do RN?”

48ª posição em leitura, entre 56 países

O ponto alto do discurso de Amanda foi quando ela pediu para os deputados estaduais pararem de associar qualidade na educação com o professor em sala de aula “porque não tem condição de ter qualidade em educação com professores tendo de multiplicar o que ganham trabalhando em três horários em sala de aula: R$ 930 de manhã, R$ 930 à tarde e R$ 930 à noite”.

Acredito que para realizar o “compromisso com a verdade e com o povo”, os veículos tradicionais de imprensa deveriam se concentrar nos gestores do Estado para saber o que será feito de concreto pela governadora Rosalba Ciarlini (DEM) e pela prefeita de Natal, Micarla de Sousa (PV), para evitar, ao menos, que as escolas fechem suas portas por falta de merenda ou de água.

Em vez de enfatizar os 15 minutos de “fama” da professora Amanda, os veículos de comunicação deveriam questionar por que um país tão rico quanto o Brasil destina somente, de acordo com dados do Orçamento Geral da União (2009), 2,88% para educação, dos 1 trilhão de reais previstos nos gastos gerais da União. Um país que, enquanto isso, destinou para o pagamento da dívida pública 35% do orçamento. O mesmo país que gastará quase R$ 50 bilhões para receber uma Copa do Mundo fraudulenta e corrupta, paga com o nosso dinheiro.

Enquanto a imprensa regional comemora ter uma pop star por alguns dias, vendendo seus jornais e aumentando suas audiências, o último Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), em 2010, revelou que o Brasil ocupa a 48ª posição em leitura, em um total de 56 países. Além disso, a cada cinco estudantes entre 18 e 29 anos, um abandona a escola.

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Jornalista, Natal, RN