Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

CQC, censura e o valor do humor

Em artigo publicado neste Observatório (‘O factóide da `PEC da cachaça´‘), o professor Michel Arbache considerou que o CQC, programa jornalístico exibido pela Band, foi sensacionalista na ‘‘pegadinha’’ da PEC da cachaça, que foi ao ar no dia 16 de junho. Para quem não leu o artigo de Arbache ou não viu o programa, segue um pequeno resumo: a bela repórter Mônica Iozzi, com a ajuda de uma também bela coletora profissional de assinaturas, foi ao Congresso Nacional com a missão de angariar apoio para a nobre causa de incluir na cesta básica do brasileiro um litro de cachaça. O autor da ideia em forma de PEC era um deputado fictício.

Após várias assinaturas terem sido coletadas, a repórter indagou aos deputados signatários o porquê das excelências terem assinado uma proposta sem ao menos se informarem do conteúdo. Em um país onde mingua a fiscalização das esferas públicas e que infelizmente a cobertura política prima por um tom excessivamente cordato e indireto, o quadro do CQC poderia ser visto como um alento.

O professor Arbache pensa diferente. Para ele, o factóide foi criado porque tenta retratar os políticos como gente incompetente que assina sem ler. Arbache acredita que o foco do quadro tinha de ser mais leve, um pouco mais light: deveria sugerir que outras pessoas importantes também assinam documentos sem ler, como burocratas e empresários, por exemplo.

Ocorre que essas classes não são iguais. Os políticos – no caso, deputados – são eleitos por voto direto para lidar com assuntos que são de necessário interesse púbico. Só isso já justifica o foco preferencial na classe política. Uma de minhas tias, que já teve relativo sucesso no ramo da fabricação de cajuzinhos, também assinava certas coisas sem ler. Isso, no entanto, não é de interesse público.

Alguém poderia argumentar que seria um tanto diferente caso isso ocorresse em uma grande empresa privada lidando com assuntos privados, com o que concordo somente no que diz respeito aos critérios de noticiabilidade. No entanto, mesmo assim estaríamos em outra esfera. Bem diferente, portanto, da ocupada por deputados e, claro, funcionários públicos.

Matar o portador das más notícias

Arbache também acredita que a ‘‘pegadinha’’ somente contribuiu para denegrir ainda mais a imagem já combalida do Congresso. Acho que o professor se engana. Quem de fato contribui para queimar a reputação de nosso Congresso são os próprios congressistas. No mais, mesmo que existam mecanismos que barrem uma PEC absurda como a proposta, ser leniente com a atitude dos deputados relapsos é um erro (como se os ocupadíssimos congressistas tivessem muito mais o que fazer).

Um mecanismo formal de filtragem não pode servir como atenuante perante uma falha de responsabilidade. Tal abordagem tortamente consequencialista alivia o lado do deputado porque há uma barreira no futuro. E se tal barreira não existisse? E será que os deputados sabem do funcionamento dos mecanismos? Vai saber…

O Congresso Nacional é caro e de qualidade baixíssima. E tanto melhor quanto mais isso for mostrado. De preferência, com humor. A crítica aberta e ácida é um bom meio de mostrar para as excelências que elas são serviçais da sociedade e que precisam ser vigiadas sempre. E a exposição de situações ridículas serve para mostrar que muitas vezes a vida pública é, digamos, ridícula. O legislativo por vezes é um circo. Reclamar de quem reporta o circo, como disse um leitor do artigo de Arbache, equivale a matar o portador das más notícias.

Proibição legal de troças é censura

Muita gente boa (e muita gente nem tão boa assim) advoga em favor de uma diferenciação entre ‘‘liberdade’’ e ‘‘libertinagem’’. Como rima, pega bem. Difícil é saber onde traçar a linha divisória. E é aí que entram os interesses pessoais. É impressionante como a separação entre uma coisa e outra costuma coincidir com a opinião daquele que a traça. Muitas vezes, o que se entende por ‘‘libertinagem’’ é simplesmente o exercício legítimo da expressão por algum meio não tão convencional. E talvez isso esteja na raiz da lei eleitoral, que restringe o humor em época de eleições.

A separação indiscriminada entre aquilo que é expresso e a forma como é expresso pode gerar anomalias como a tal restrição. O que não passou pela cabeça de quem elaborou essa lei é que o humor e o ridículo são formas de expressão por excelência, e que proibir a livre manifestação de uma forma de expressão que pode carregar a crítica em sua própria forma é censura pura e simples.

A tradição liberal em política não tem lá tanto apelo no Brasil, mas é dela que vou citar duas ideias, vindas de dois pensadores. Um deles é filósofo britânico Nigel Warburton, que escreveu o delicioso Free Speech: A Very Short Introduction (Oxford University Press, 2009). Ao explicar o significado de speech (discurso), ele o faz de modo a caracterizar a expressão no sentido mais abrangente possível. Assim, ele não acredita que a expressão é somente o que se lê ou escreve, incluem-se também ‘‘peças, filmes, vídeos, fotografias, cartuns, pinturas e assim por diante’’. A forma não apenas compõe a expressão, mas pode ser a manifestação da própria expressão. Provavelmente os legisladores não pensaram nisso antes de darem assentimento a mais uma medida que infantiliza o cidadão.

É impossível falar em liberalismo político sem falar em John Stuart Mill. Pensador prolífico, suas ideias sobre a liberdade estavam muito à frente do que a sociedade britânica poderia supor em meados do século 19. Em On Liberty, publicado em 1859, Mill avança alguns argumentos contra restrições à liberdade de se expressar. Um dos mais famosos é chamado ‘‘argumento da infalibilidade’’. Sempre que se proíbe a livre expressão de algum grupo ou pessoa (guardado o que ele chamou de harm principle), aquele que a proíbe assume para si o pressuposto da infalibilidade. E se é verdade que o formato humorístico pode, para além das proposições que eventualmente emite, ser uma forma de expressão em si, a proibição legal de troças nada mais é – vale repetir – que censura. E os legisladores, poderia dizer Mill, asseguram para si uma inexistente postura de infalibilidade.

Humor e democracia

O humor colabora com a democracia. É um aliado dela. Ajuda a mostrar como se comportam instituições democraticamente instituídas em situações constrangedoras. O CQC por vezes mostrou que alguns congressistas não se dão tão bem assim com o regime de liberdades que os colocou na situação de representar a população. O humor não relata determinada situação com a frieza e grau de objetividade de um lead. Faz mais: mostra o ‘‘estado de espírito’’ de determinada situação. Capta o que há de bocó, de idiota e de ridículo em muitas partes da nossa vida – sobretudo a vida pública. Isso é importante porque um fato de interesse público não precisa ser contado apenas com o recurso da narrativa objetiva; pode-se adicionar a ele as impressões que passa e as interpretações que permite. No caso das trapalhadas políticas, o humor pode ter um papel fundamental na indignação da sociedade. Fazer piada é coisa séria.

É difícil dizer quais são as condições suficientes para se ter uma democracia. Mas acho que podemos dizer com razoável segurança que uma das condições necessárias de qualquer regime que se pretenda democrático é a livre manifestação da expressão em suas mais diversas formas. O humor é mais uma delas. A conta é simples: menos tolerância ao humor, menos democracia. Liberdade de expressão dá trabalho, ninguém disse que não dava. Mas a falta dela dá mais trabalho ainda.

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Estudante de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto, atualmente residindo em Dublin, Irlanda