Um escândalo sexual deu a Dominique Strauss-Kahn uma notoriedade global jamais alcançada como deputado, professor, ministro da Economia da França e diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI). Muita gente de peso o considerou competente em todas essas funções. Mas, antes de ser preso em Nova York, acusado de ataque a uma camareira, seu nome raramente apareceu nas primeiras páginas de jornais fora da Europa.
Leitores de todo o mundo aprenderam muito, nos últimos dias, sobre outros escândalos, sobre sua fama de mulherengo e até sobre sua mulher, uma ex-jornalista famosa e muito rica, Anne Sinclair. O Globo publicou sobre ela excelente matéria no domingo (22/5). Mas pouco se publicou, até o fim de semana, sobre os desafios do próximo ocupante do cargo.
A diretoria executiva do FMI, responsável formal pela escolha do diretor-gerente, divulgou na sexta-feira (20/5) uma nota sobre a sucessão. Segundo a nota, a seleção será baseada no mérito e realizada por meio de um processo aberto. Poderão concorrer, portanto, candidatos de qualquer país sócio da organização. Pela primeira vez serão admitidos oficialmente nomes apresentados por países de fora da Europa. Além disso, no texto aparecem os pronomes “ele” e “ela”, na descrição do perfil apresentado como desejável.
Papel relevante
Os grandes jornais do Rio e de São Paulo deixaram de aproveitar esse material. Mas a nota é mais que um documento burocrático. É politicamente importante, porque oficializa, de certa forma, a adoção do novo critério. A partir de agora, pelo menos formalmente, deixa de vigorar o acordo original entre as grandes potencias do pós-guerra – um europeu para chefiar o FMI e um americano para comandar o Banco Mundial.
Na prática, o velho esquema poderá funcionar mais uma vez, com apenas um toque de novidade. Até o fim da semana, a figura mais cotada para assumir o posto era a ministra da Economia da França, Christine Lagarde. Ela é reconhecida, amplamente, como dotada dos atributos apontados como desejáveis para a função – por exemplo, uma atuação destacada na elaboração de política econômica, em postos superiores, um currículo profissional notável, capacidade administrativa e habilidade diplomática para conduzir uma instituição multilateral. Outros candidatos podem ter várias dessas qualidades – e isso inclui alguns nomes de países emergentes –, mas Lagarde tem também um inegável prestígio político internacional.
Seu favoritismo tem sido apontado nos jornais, mas os jornais teriam prestado um bom serviço adicional se explorassem a nota da diretoria executiva. O posto é político, sem dúvida, mas o perfil do candidato desejável ajudaria a entender o assunto. A combinação de capacidade profissional e de talento diplomático é especialmente importante em vista das novas funções do FMI.
O Fundo tem sido essencial para o funcionamento do Grupo dos 20, como organismo técnico e também como formulador de propostas políticas. Tem participado do esforço de reforma do sistema financeiro internacional, juntamente com a Junta de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board) e com o Banco de Compensações Internacionais, de Basileia, também conhecido como Banco Central dos Bancos Centrais. Tem realizado os primeiros ensaios do sistema de avaliação mútua, lançado pelos governos do G-20, e deve exercer um papel relevante na supervisão do sistema financeiro e na tentativa de prevenção de crises. Isso vai muito além de funções técnicas e dos papeis desempenhados até o fim dos anos 1990.
Estereótipo fácil
A mera oficialização do novo critério é politicamente relevante e configura uma vitória de governos do mundo emergente, incluído o brasileiro. Os emergentes podem contabilizar esse ganho, mesmo se for escolhido, mais uma vez, um nome proposto pelos europeus.
Esse avanço se deve, em grande parte, ao trabalho de Dominique Strauss-Kahn. Sua biografia combina, de forma surpreendente, uma reputação de brutalidade com as mulheres – uma delas o descreveu como um macaco no cio – e uma reconhecida competência diplomática no trato com governos de todos os grupos de países. Sua condição de favorito, até há poucos dias, na próxima eleição presidencial francesa completa o retrato de articulador político.
Também esse contraste torna o seu caso notável. Qualquer das imagens, tomada separadamente, enquadra-se num estereótipo sem dificuldade. Intrigante é a sua combinação. Os jornais mostraram isso, até certo ponto.
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Jornalista