Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Jornalismo em tempo de crise

Quem tem medo de crise?

O espectro da crise ronda o universo jornalístico desde que ingressei na profissão, há 52 anos.

Naquele tempo, vivenciávamos a crise política da guerra fria, com a ameaça soviética de lançar mísseis sobre o território norte-americano, a partir de bases nucleares instaladas em Cuba, numa conjuntura marcada pela revolução tecnológica da imprensa. Aposentando os arcaicos processos de composição a chumbo pelas modernas chapas de offset, a imprensa era estimulada a enfrentar a concorrência da televisão, difundindo imagens e cores nas páginas dos jornais diários.

Neste começo de século, presenciamos a crise da globalização geopolítica, em função dos trágicos acontecimentos de 2001. Comandos muçulmanos suicidas convertem as Torres Gêmeas em alvos bélicos, usando como armas letais jatos sequestrados, lotados de passageiros, configurando um espetáculo midiático com audiência planetária. O mais recente episódio desse conflito imprevisível foi a invasão ianque ao território do Paquistão para eliminar Osama Bin Laden e seu quartel-general.

Emoldurando tais fatos está a crise que atinge o sistema financeiro internacional, abalando as estruturas econômicas e sociais do capitalismo, vitimando cruelmente os imigrantes estrangeiros, refugiados nos EUA e na Europa.

O Brasil evidentemente não está imune à contaminação dessa crise que ameaça restaurar a espiral inflacionária. Tampouco está ileso à crise do mundo árabe, onde as rebeliões populares indicam a saturação dos regimes autoritários, embora sem perspectivas de vitória para a democracia.

Não obstante, creio que vivenciamos uma conjuntura singular, em consequência do aprendizado republicano instaurado pela Constituição de 1988, compensando o doloroso período da ditadura militar urdida pelos golpistas de 1964. Por isso, vou me limitar à consideração do panorama nacional, tal como o percebo nesta segunda década do século 21. A crise do nosso jornalismo tem conotações múltiplas: crise no mercado, crise na profissão e crise na academia.

Mercado

A crise no mercado é menos uma crise financeira, porque as empresas se beneficiaram com a estabilidade econômica da era FHC-Lula, ensejando o boom publicitário da última década. É muito mais uma crise estrutural, resultante das inovações tecnológicas que sepultaram a hegemonia da cultura gutenberguiana. Produto da modernização organizacional do negócio midiático, a implantação de padrões de qualidade editorial acarretou o enxugamento das redações e abriu o flanco para a institucionalização da influência das fontes na agenda noticiosa.

Trata-se de uma crise sem desfecho previsível, tendo em vista a situação privilegiada que desfruta hoje o nosso país como sétima economia do mundo, destoando do neopopulismo latino-americano pela sua estabilidade constitucional.

Profissão

A crise na profissão tem duas nuances, evidentes nas redações e nos sindicatos.

A disputa hegemônica nas redações decorre do conflito entre os endógenos (diplomados em jornalismo), mais alinhados com as lideranças sindicais, e os exógenos (formados em outras disciplinas), geralmente simpatizantes das demandas ocupacionais dos empresários.

Nos sindicatos, verificou-se uma gradativa acomodação à reserva de mercado implícita na “lei do diploma”. As lideranças permaneceram vigilantes quanto ao cumprimento da lei pelas empresas, mas foram displicentes em relação ao desempenho das universidades e à competência dos profissionais diplomados.

O desfecho dramático deu-se com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) tornando inconstitucional a reserva de mercado aos jornalistas diplomados. Surpresa e desprevenida, a liderança sindical não tem alternativa senão batalhar, na frente legislativa, para reverter o ato controverso do judiciário. Trata-se de uma contenda sem horizontes à vista.

Academia

A crise na academia tem facetas superpostas, no ensino e na pesquisa.

Historicamente, o estudo de jornalismo nas universidades brasileiras evoluiu de um estágio didaticamente experimental (anos 1940 e 50) para atingir patamar pedagógico com identidade própria (anos 1960 e 70).

O modelo vigente em todo o país preservou o equilíbrio teoria-prática, sem descuidar da sua vocação intrinsecamente profissional, qualificando recursos humanos para o mercado. Mas não deixou de estimular a produção de conhecimento, através da iniciação científica e da pós-graduação, bem como a criatividade, através dos laboratórios e das oficinas de extensão.

Nas duas últimas décadas do século passado ocorreu uma reviravolta nessa tendência de formação segmentada dos bacharéis em comunicação social. Com a adoção de um modelo de estudos polivalentes, supostamente integrados, impôs-se uma formação “pós-moderna”, abolindo as fronteiras ocupacionais e erodindo as identidades profissionais.

Essa crise está em processo de equacionamento, decorrente da arregimentação dos professores de jornalismo, através do Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo (FNPJ), e dos pesquisadores da área, através da Sociedade Brasileira dos Pesquisadores de Jornalismo (SBPJor). Sua meta foi sensibilizar os gestores da política educacional do Estado para as consequências desastrosas daquele retrocesso acadêmico.

Tanto assim que as Novas Referências Curriculares para os Cursos de Graduação, instituídas em abril de 2010 pelo Ministério da Educação, reconhecem e legitimam carreiras autônomas de: 1) Cinema e Audiovisual; 2) Jornalismo; 3) Publicidade e Propaganda; 4) Radialismo, Televisão e Internet; 5) Relações Públicas.

Assim sendo, o Ministério da Educação (MEC) desestimula a vigência das “habilitações” enunciadas pela resolução 2/84 do antigo Conselho Federal de Educação (CFE), promovendo a organização de diretrizes curriculares específicas, como o fez nas áreas de cinema, jornalismo e relações públicas. Estão pendentes as diretrizes dos cursos cujas comunidades acadêmicas ainda não se organizaram de forma institucional em todo o país.

Enfrentar a crise

Toda essa controvérsia suscita dúvidas quanto à sobrevivência da carreira, a continuidade do ofício e naturalmente sobre o futuro do ensino de jornalismo.

O negativismo não encontra respaldo no conjunto da categoria dos jornalistas, cujo retrato instantâneo foi feito recentemente por David Weaver e colaboradores no inquérito publicado pela International Association for Media and Communication Research (IAMCR). Pesquisando uma amostra de 21 países, os autores observaram que existe um consenso sobre o papel do jornalista, ao redor do mundo, ainda que persistam algumas discrepâncias sobre o desempenho profissional. Não obstante, a maioria dos entrevistados não deseja mudar de perfil neste momento.

Penso que a exacerbação dos ânimos, estabelecendo verdadeira situação de pânico, está ancorada em visões impressionistas. Tenho, aliás, a sensação de que o jornalismo nunca perfilou tanta vitalidade. Até mesmo porque seus ingredientes essenciais são o conflito, a contradição, o inusitado, o imprevisível.

O complexo de Superman assimilado por Clark Kent, o vigilante repórter das histórias em quadrinhos, motiva o profissional a sacudir a poeira e dar a volta por cima, como recomenda o sambista paulistano. Qual Fênix renascida das próprias cinzas, o jornalista reinicia cotidianamente seu árduo trabalho, estigmatizado pela maldição de Sísifo.

Descrever, esclarecer, elucidar os acontecimentos sinalizam sua vocação intrínseca. Os impasses representam forças motrizes, tornando-se a razão de ser da profissão. Logo, a crise faz parte do cotidiano jornalístico, mobilizando os praticantes do ofício para enfrentar adversidades.

Em síntese, a crise que tem perdurado no campo midiático é ao mesmo tempo uma crise tecnológica, decorrente da obsolescência da imprensa, e uma crise mercadológica, determinada pelo consumo regressivo do jornal e o incremento ascendente da internet.

Ultrapassar a crise

O panorama é complexo, confuso e movediço, demandando uma saída consentânea com a própria natureza do fenômeno estudado. Se a crise é nutriente vital do Jornalismo, convém retornar ao âmago da questão.

O que mudou no Jornalismo? Tenho a convicção de que não houve alteração na sua essência, motivação e fundamentos. A necessidade social da informação não apenas persiste, mas vem crescendo, de forma cada vez mais transparente. Logo, informação e opinião continuam a ser procuradas por todos os cidadãos.

O que mudou foi a natureza das demandas: além do arroz com feijão – notícias e comentários –, os novos cidadãos reclamam a explicação dos fatos – interpretação – e querem valores agregados – divertimento e utilidade.

As novas gerações nasceram e foram educadas num ambiente multimídia, distanciando-se portanto do habitus peculiar ao homem pré-moderno, aquele formado na mentalidade linear da cultura impressa (gutenberguiana). É verdade que, durante o século 20, essa cultura manteve-se hegemônica, na medida em que os meios audiovisuais de comunicação mimetizaram as estruturas narrativas da mídia impressa. Mas, pouco a pouco, a nova mídia foi criando sua própria linguagem, adotando maior plasticidade e logrando melhor comunicabilidade. É natural que seus praticantes tenham inventado novos modos de expressão.

Qual o perfil desse novo jornalista? A descrição consensual nas empresas mescla ingredientes receitados pelos editores e condimentos aduzidos pelos jornalistas. Aquele que, tendo “talento, formação, experiência e condição de trabalho” possa “oferecer ao leitor textos intelectualmente sofisticados, que tratem a notícia de forma multidimensional, com suas implicações humanas, sociais, políticas, econômicas e históricas.” (Sant’Anna, 2008.)

Mas esse é o tipo de profissional demandado pelos jornais de prestígio, cuja circulação privilegia as classes A e B.

“Aquilo que o jornal pode fazer melhor são histórias bem contadas, com contextualização, interpretação, análise e opinião. Mas ele está longe de ter atingido o ponto ótimo nessas tarefas. Na verdade, o jornal está muito mais estruturado para contar ‘o que’ do que para explicar o ‘por que’. As redações são compostas de centenas de profissionais cujo alcance técnico e rotina são mais ou menos adequados para a produção de notícias, não para agregar-lhes outros valores”. (Sant’Anna, 2008)

Restam os vastos contingentes situados nas classes C, D e E, que alcançam novos patamares de consumo, beneficiados pelo crescimento econômico vivenciado pelo país na última década.

É, sobretudo, para essa população excluída do jornalismo impresso diário que se devem voltar as atenções das universidades.

Eis o desafio inexorável a que não podem fugir as escolas de jornalismo: produzir um jornalismo popular, destinado às classes subalternas.

Precisamos corresponder a essa legítima aspiração, ensinando e pesquisando criticamente, com argúcia redobrada, nesta segunda década do século 21.

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Fontes

Cardoso, Gustavo (2011) – “El nacimiento de la información digital en red”, Telos, 86, p. 14-24           

Cebrian, Juan Luis (1999) – A rede, São Paulo, Summus

Machado, Elias & Teixeira, Tatiana (2010) – Ensino de Jornalismo em tempo de convergência, Rio de Janeiro, E-Papers/Capes

Marques de Melo, José (2001) – Jornalismo Brasileiro, Porto Alegre, Sulina

(2006) – Teoria do Jornalismo: identidades brasileiras, São Paulo, Paulus

(2009) – Jornalismo: compreensão e reinvenção, São Paulo, Saraiva

Marques de Melo, José & Assis, Francisco de (2010) – Gêneros Jornalísticos no Brasil, São Bernardo do Campo, Metodista

Nosty, Bernardo (2011) – La crisis en la indústria de la prensa, Telos, 86, p. 52-65

Primo, Alex (2010) – Mapeamento do ensino de jornalismo digital no Brasil em 2010, São Paulo, Itaú Cultural

Sant`Anna, Lourival (2008) – O destino do jornal, Rio de Janeiro, Record

Vieira, Geraldinho (1991) – Complexo de Clark Kent, São Paulo, Summus

Weaver, David (1988) – The Global Journalist, Cresskril, IAMCR/Hampton