Quando em 1727 o rei de Portugal proibiu que no Brasil se falasse a língua brasileira, a chamada língua geral, o nheengatu, é que começou a disseminação forçada do português como língua do País, uma língua estrangeira. O português formal só lentamente foi se impondo ao falar e escrever dos brasileiros, como língua de domínio colonial, tendo sido até então apenas língua de repartição pública. A discrepância entre a língua escrita e a língua falada é entre nós consequência histórica dessa imposição, veto aos perigos políticos de uma língua potencialmente nacional, imenso risco para a dominação portuguesa.
Agregue-se a isso, a proibição, com o advento da Revolução de Outubro de 1930, das línguas e dialetos originais falados por milhões de descendentes de imigrantes estrangeiros, especialmente italianos e alemães, vindos para o Brasil, com passagem paga pelo governo daqui, para suprir a carência de mão de obra decorrente da proibição do tráfico negreiro e da abolição da escravatura. Proibição que teve em vista forçar a disseminação, também no cotidiano, de uma língua nacional. Ficou nas exigências linguísticas do ensino formal essa herança de um período de autoritarismo político. Reconheça-se, entretanto, que nosso bilinguismo cimentou nossa unidade nacional, a despeito dos sotaques de múltiplas e suaves resistências a imposições oriundas de várias épocas.
Da repressão linguística ficaram sotaques na fala em português, e mesmo erros de escrita, e até curiosos detalhes: entre descendentes de alemães no Sul é fácil perceber o desencontro entre a respiração e a fala. Os falantes ainda respiram em função dos requisitos respiratórios da língua alemã quando falam em português, o que impõe à fala uma notória dificuldade rítmica. A mesma coisa constatou um linguista e musicólogo austríaco, Gehard Kubik, um dos estudiosos da língua dos negros da comunidade do Cafundó, na região de Sorocaba. Identificando-os como bantos, Kubik comparou seus ritmos respiratórios e gestuais aos dessas populações na África, regulados pelo pilar dos cereais, as mulheres com as crianças atadas às costas, respirando no mesmo ritmo das mães mesmo antes de aprenderem a falar. Dos últimos trazidos ao Brasil, no fim do tráfico, em 1850, os negros do Cafundó conservam essa espécie de DNA da língua.
Viso patriacal
Uma decorrência da proibição do nheengatu, que aliás, ainda se fala em várias regiões do Brasil, é que quase todos nós escrevemos o português da norma culta, mas falamos português, cotidianamente, com sotaque nheengatu. É o que se nota no deleite em pronunciar as vogais, em oposição ao português de muitas regiões de Portugal, de verdadeira aversão às vogais. Lá se fala “flor”, aqui se fala “fulô”; lá “orelha”, aqui muitos ainda dizem “oreia”. Aqui evitamos os infinitivos com os nossos “está”, “falá”, “cantá” ou com reduções como “tá”, “tô”, “né”. Sem contar o caso emblemático do “você”, incorporado à fala gramaticalmente correta, mas que é deturpação nheengatu do “Vossa Mercê”, da sociedade colonial e estamental, os cativos e os ínfimos, ainda que livres, pondo-se de pé e tirando o chapéu para dirigir-se às pessoas socialmente superiores. Tratamento que teve duplo percurso: na cidade virou “você”, na roça e nas regiões caipiras virou “mecê”. Nas cidades o “você” tornou-se pronome substituto do “tu”, da segunda pessoa do singular. Na roça, o “mecê” ainda é tratamento de terceira pessoa, resquício de hierarquias sociais antigas, ficando para a segunda pessoa a variante “ocê” ou o “vancê”.
No livro questionado, porém, o reconhecimento da legitimidade da fala popular se baseia numa premissa completamente falsa: “A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”. É falso que a “classe dominante” use a norma culta. Frequentemente, empresários urbanos e rurais tropeçam nas normas da língua. Basta acompanhar falas e debates da Câmara e do Senado para testemunhar o reiterado atropelo de nossa língua nacional pela elite do poder. Sem contar que durante oito anos um presidente da República valeu-se de suas próprias regras linguísticas para falar à nação e ao mundo.
É falso, também, o contrário, em relação aos “dominados”. Pesquisador em áreas sertanejas do país, durante muito tempo ouvi suas maravilhosas alocuções, sobretudo de analfabetos, no Maranhão, no interior de Minas e de São Paulo, no sertão do Nordeste, de Goiás, do Mato Grosso, do Pará, falando um português impecável, belo, rebuscado, barroco, a mesma língua dos sermões do padre Vieira. Ainda me lembro da resposta de um morador de povoado do sertão maranhense, um negro velho, de postura e viso patriarcais, a barba longa, mas rala, quando lhe perguntei se tinha chegado ali com toda sua família: “Não, meu senhor. Eu vim pr’aqui com toda minha linhagem”.
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Professor emérito da Universidade de São Paulo, é autor de A sociabilidade do homem simples (Contexto)