O historiador e pesquisador Luis Mir, ganhador do Prêmio Jabuti com a obra Genômica (2005), acaba de lançar o livro O Paciente – O caso Tancredo Neves (Editora de Cultura). Professor visitante da Faculdade de Medicina da USP, Mir reúne nesse novo trabalho farta prova documental para desnudar, e também pôr um ponto final, num episódio dramático que mudou radicalmente a transição democrática no Brasil: a morte do presidente Tancredo Neves na noite de 21 de abril de 1985, aos 75 anos de idade.
Mir reconstituiu minuciosamente o itinerário médico deste caso, com início desastroso em Brasília e desfecho dramático em São Paulo. Para isso, realizou entrevistas com os profissionais diretamente responsáveis pelo atendimento ao presidente, confrontando não as versões em torno do caso, mas as anotações feitas por eles mesmos no prontuário do ilustre paciente. ‘Essa documentação pertence ao país, sua validade corporativa expirou no falecimento do paciente. Como historiador, afirmo que a história médica de Tancredo Neves é parte indissociável de sua história política.’
Baseado nas provas que reuniu, Mir faz uma revelação ao mesmo tempo chocante e definitiva:
‘Tudo o que aconteceu clinica e cirurgicamente no Instituto do Coração para o paciente Tancredo Neves não alterou um centésimo seu estado critico – morreu cirurgica e hemorragicamente em Brasília e foi enterrado clinicamente em São Paulo.’
Para o pesquisador, a imprensa também foi vítima neste caso, pois os boletins divulgados pelas equipes médicas eram mentirosos. ‘As tentativas da imprensa de romper essa muralha indevassável eram publicamente ridicularizadas pelos médicos e poderosos da Nova República.’
Volta do exílio para a posse
Estar na hora certa, no lugar certo, fazendo a coisa certa. Para um historiador, essa experiência tem um significado realmente extraordinário. Pudera. Ele passa a condição de testemunha ocular de fatos relevantes, e não de mero narrador que tem que se contentar com as versões que simplesmente sobreviveram ao tempo, às vezes com feições esquálidas ou, pelo contrário, que se impõem com riqueza de detalhes muito mais pela vontade do poder dominante que pela voz dos vencidos.
Por volta das 18h do dia 13 de março de 1985, o historiador e pesquisador brasileiro Luis Mir teve sua oportunidade de ouro. Manteve um encontro oficial com o presidente Tancredo de Almeida Neves horas antes de o ilustre democrata ter sido diagnosticado, equivocadamente, com uma apendicite aguda e daí pra frente padecer uma sucessão de erros grosseiros que lhe ceifaram a vida.
Um parêntese. Como tantos outros brasileiros que optaram pelo auto-exílio, Luis Mir morava na Espanha desde 1973 e voltou ao Brasil em 1985 apenas para participar da festa de posse do mineiro Tancredo Neves, o primeiro presidente civil depois de 21 anos de regime militar. ‘Saí do Brasil por incompatibilidade de objetivos com os golpistas. Na época, eu participava, e continuo na militância, do Partido Comunista Brasileiro. Meu objetivo era ver Tancredo Neves tomar posse. Em poucos dias, regressaria à Europa para iniciar meu doutorado.’
Um pedido ao presidente
Mir tinha trânsito fácil junto ao presidente Tancredo Neves porque mantinha um relacionamento com Cynthia Peter, assessora no Comitê de Imprensa do gabinete, em Brasília.
‘Lembro como se fosse hoje. Eu estava na Asa Norte, nas dependências da Fundação Getúlio Vargas. Para chegar ao gabinete de Tancredo Neves, subi uma pequena escada; a sala ficava no final do corredor, à esquerda. A secretária dele pediu que eu fosse breve porque ele estava de saída para um compromisso. Ele apertou minha mão e pediu desculpas, dizendo que tínhamos pouco tempo para conversar. Chamou minha atenção uma pessoa, toda vestida de branco, sorridente, que estava ao seu lado. Mais tarde soube que se tratava do renomado clínico Renault Mattos Ribeiro. Então, com poucas frases, disse o que pretendia: ‘Presidente, vim lhe fazer um pedido especial em nome do Partido Comunista Brasileiro. O senhor, democrata de longa data, precisa dar apoio às negociações de paz na América Central. As guerras civis em El Salvador e na Nicarágua estão penalizando os povos, e digo isto com conhecimento de causa, pois acabo de voltar de lá.’
A resposta de Tancredo Neves, segundo Mir, foi esta: ‘Podem contar conosco.’ O assessor tomou nota, Mir entregou os documentos e todos saíram juntos, conversando. ‘Eles entraram num Galaxy e fiquei ali parado na calçada, até perder o veículo de vista.’
Erro de diagnóstico
Tancredo Neves estava a caminho do Centro Radiológico Sul para fazer um exame de ultrassom no abdome, que lhe doía. ‘A escala de horrores que foi o atendimento a este paciente começa aí, com um erro de diagnóstico primário. Confundiram um tumor com uma apendicite abscedada [aguda].’ Mir aponta com o dedo, na imagem ultrassonográfica feita no início da noite do dia 13/03 em Tancredo Neves, os contornos do tumor, cuja reprodução está na página 33 de seu livro.
‘A imagem é nítida quanto à existência de um tumor com necrose. De imediato, bastava entrar com antibioticoterapia, identificar o foco infeccioso e só depois operar. Na época, e ainda hoje, é esse o procedimento que deve ser adotado. Portanto, não havia urgência, não havia risco de vida, ele poderia ter tomado posse tranquilamente no dia 15.’
Na madrugada do dia 15/03, quando Cynthia foi chamada às pressas para ir ao Hospital de Base de Brasília (HDB), onde o presidente acabara de sofrer uma cirurgia cheia de complicações quase indo a óbito, Mir a acompanhou. Havia muito tumulto por lá. Jornalistas, curiosos, todos queriam saber o que estava acontecendo. Por volta das 4h30, o casal deixou o HDB.
‘Recordo que assim que chegamos ao hospital, encontrei dois amigos médicos que estavam de plantão. Eles não tinham participado da cirurgia, mas me apresentaram um neurocirurgião que tinha acompanhado alguns procedimentos quando Tancredo Neves foi removido para a UTI. Senti um enorme pesar ao compartilhar com Cynthia que, com base no que tinha apurado, ele não tomaria posse. Ela ficou incrédula. No dia 17/03, ele estava perdendo muito líquido e teve uma crise respiratória brutal. Pela segunda vez, quase vem a óbito.’
As cirurgias, os boatos e a farsa
A história clínica de Tancredo Neves é resumida assim pelo pesquisador: ‘Ele foi vítima de um erro de diagnóstico primário, seguido de uma cirurgia desastrada. O tumor de Tancredo Neves não estava provocando obstrução, hemorragia ou infiltrado na parede intestinal, daí ser dispensável a primeira cirurgia, onde a imperícia nas suturas fez com que o paciente sangrasse desde o primeiro momento. Não tenho dúvida que atenderam magnificamente bem o presidente, com muitas deferências, mas esqueceram do paciente.’
Questionado sobre as várias versões, algumas conspiracionistas, que até hoje circulam sobre a morte de Tancredo Neves, como a de que ele teria sido vítima de uma armação perversa dos militares que teriam ordenado a mal-sucedida operação no HDB para continuar no poder, Mir dispara:
‘Tudo não passa de boatos. A prova documental é robusta e inquestionável. Ele foi a óbito num quadro catastrófico decorrente de diagnósticos equivocados, procedimentos inadequados, avaliações heterodoxas, quebra de condutas e rotinas em cascata de responsabilidade de seis médicos que chefiaram o atendimento. Tudo o que aconteceu clinica e cirurgicamente a partir do dia 26 de março no Instituto do Coração não alterou um centésimo o estado crítico do paciente. Tancredo Neves morreu cirúrgica e hemorragicamente em Brasília e foi enterrado clinicamente em São Paulo.’
Acompanhar o cortejo fúnebre do presidente fez Mir, 25 anos atrás, tomar uma decisão: ‘Eu contaria essa história do ponto de vista clínico e cirúrgico, pois três coisas me incomodavam. Primeiro, ele tinha sido mal operado e mal acompanhado no pós-operatório. Passara por duas cirurgias desastrosas, precedidas de dois diagnósticos equivocados. Segundo, a morte de Tancredo Neves foi cercada de um emaranhado de tergiversações e de manipulações. A farsa precisava ser desmontada. Terceiro, resgatar a dignidade do paciente excelente que foi Tancredo Neves, pois ele atendeu todas as prescrições, foi disciplinado e sofreu muito e desnecessariamente.’
Um infortúnio médico o derrubou
Nas 384 páginas do livro O Paciente – O caso Tancredo Neves (Editora de Cultura), a documentação reunida por Luis Mir realmente impressiona. Melhor ainda é que tudo é explicado de forma que o leigo entende. Mas por que só agora a ‘verdadeira história’ vem a público?
‘Muita gente já me questionou sobre o motivo da demora para lançar esse livro, que iniciei em 1994, dei uma parada e só retomei as pesquisas em 1998, com todas as despesas de viagens bancadas por mim. Venhamos e convenhamos, ainda hoje essa historia é tão traumática e mais ainda é notória a resistência das pessoas em aceitar a verdade dos prontuários, dos exames, do laudo da necrópsia. Fiz a análise criteriosa de todos esses documentos, que somam mais de 900 páginas. Passei e repassei os fatos, com os prontuários em mãos, com todos os médicos que atenderam Tancredo Neves.’
O pesquisador revela que para ter acesso à documentação – o principal está no livro – precisou de mais de dez anos de muita persistência.
‘Escrevi esse livro na condição de historiador e pesquisador médico, queria colocar à disposição da sociedade brasileira documentos que servissem para esclarecer uma parte fundamental da História do nosso país. A coleta de dados também incluiu entrevistas que gravei com todos os médicos que atenderam Tancredo Neves. Houve casos de colegas que demoraram anos apenas para amadurecer a ideia de voltar a falar no caso. O interessante é que todos que deram depoimento chegaram à conclusão, cada qual a seu tempo, de que era hora de tirar todas aquelas vendas e manipulações. Só quando chegaram nesse ponto, puderam responder, com honestidade, às minhas perguntas. Ou seja, por que quebraram todas as rotinas em detrimento do bem-estar do paciente e não conseguiram mais parar com toda aquela loucura de novas intervenções? Não é demais lembrar que, quando abriram pela primeira vez o abdome de Tancredo Neves e perceberam que o diagnóstico estava equivocado, não havendo risco de morte, a única coisa que teria de ser feita era medicá-lo para que tomasse posse, admitindo a equipe publicamente o erro. Para mim é muito doloroso saber que este paciente foi um homem preparado a vida inteira e que merecia ser presidente. Um infortúnio médico, e não militar, o derrubou.’
Mentiras à imprensa, à sociedade, a todos
Luis Mir acredita que seu livro retira o cadáver de Tancredo Neves das costas da medicina brasileira ao atribuir responsabilidades a quem, de fato, contribuiu para o dramático desfecho desse caso clínico. ‘Os nomes dos profissionais que o atenderam estão dados e identificadas as responsabilidades ética e médica de cada um. Mas meu livro não é um tribunal e como autor eu não sou juiz de quem quer que seja.’
No dia 17 de abril de 1985, amigos de Luis Mir que trabalhavam como médicos no InCor (Instituto do Coração de São Paulo, onde Tancredo Neves estava sob os cuidados do cirurgião Henrique Walter Pinotti) confidenciaram que o presidente já estava clinicamente morto.
‘Até o último momento, o dr. Henrique Walter Pinotti, que comandava a equipe que tratou de Tancredo Neves no InCor, mentiu aos jornais, aos jornalistas, à sociedade, a todos. Tudo em nome de um pretenso direito do Estado de tranquilizar a opinião pública e a Nova República. Foi divulgada, mantida e afiançada uma farsa perversa com a própria família, que acreditava na palavra da equipe médica que ele sairia do hospital para tomar posse. Afirmo como historiador que os órgãos de imprensa brasileiros e os jornalistas que fizeram essa cobertura merecem um desagravo formal por parte das entidades médicas, pois a mentira foi completa, total e cabal. No livro reproduzo todos os boletins divulgados para a mídia que, comparados com os prontuários, mostram o grau de manipulação. Mais: as tentativas da imprensa de romper essa muralha indevassável eram publicamente ridicularizadas pelos médicos e poderosos da Nova República’ [os Conselhos Regionais de Medicina de Brasília e de São Paulo soltaram notas públicas em 26 de fevereiro de 1986 afiançando que as condutas adotadas e a competência profissional estavam corretas no caso Tancredo Neves].
A ‘judicialização’ da medicina
Segundo Mir, o epílogo da morte de Tancredo Neves foi ‘montado’ dentro do InCor. ‘Acharam que conseguiriam transformar a farsa em verdade ao dizer que a morte de Tancredo Neves foi uma surpresa para toda equipe. Essa versão foi decidida por Henrique Walter Pinotti. Impressionante como as pessoas acreditam equivocadamente que podem se apossar da história, determiná-la e conduzi-la. A história não pode ser determinada ou conduzida; é ela que faz isto conosco. Tive quatro entrevistas muito difíceis com o dr. Pinotti. Era um fantasma na carreira dele, o caso Tancredo Neves. E ele fez tudo por vaidade, pois acreditava que mantendo o presidente com drogas e aparelhos, ele tomaria posse, mesmo que fosse numa cadeira de rodas. Até o dia 17 de abril de 1985, os boletins médicos afirmavam, de forma mentirosa, que não havia sequelas neurológicas graves e que havia perspectiva de cura para o presidente. Tancredo Neves já estava clinicamente morto. Alguns médicos da equipe pediram afastamento. A expressão mais bondosa que ouvi de alguns deles sobre o Dr.Pinotti foi que ele estava surtado.’
Mir acredita que seu livro também tem o papel de informar a opinião pública e sensibilizar especialmente médicos e pacientes sobre a importância do prontuário médico e a existência dos limites do atendimento.
‘Todas as condutas e procedimentos devem ser cuidadosamente anotados. O médico precisa estar ciente que o fácil acesso ao prontuário é um direito de todo paciente. Outro aspecto importante: as pessoas precisam ter a noção de que, em medicina, não se podem fazer acusações gratuitas. O paciente que se sente prejudicado deve pedir perícia médica para verificar, à luz da ciência, a inadequação de procedimento ou conduta temerária de quem o atendeu. Pacientes verdadeiramente prejudicados devem ser indenizados.’
Sobre a chamada ‘judicialização’ da medicina no Brasil, Mir avalia: ‘Com base na Constituição Federal, muitas vezes o magistrado faz uma interpretação mecânica, confundindo direitos fundamentais do cidadão com os do paciente. O paciente tem direito a ser bem atendido, mas é preciso que se leve em conta as condições materiais e de trabalho para a atuação do médico, saber qual a sua formação naquele atendimento concreto. Mais: medicina não é ciência exata e determinadas evoluções no quadro do paciente são mesmo imprevisíveis e independentes do ato médico. A capacidade de diagnóstico também é limitada em termos físicos e de conhecimento. Infelizmente, morreram muitas pessoas até o HIV ser devidamente identificado. Hoje temos uma série de infecções oportunistas, as chamadas doenças reemergentes, mutações genéticas e outras `janelas´ que a ciência médica vai precisar de tempo para dizer o que está acontecendo. O fato é que não existem mortes inexplicáveis. O que temos são mortes ainda não esclarecidas por absoluta falta de conhecimento científico’, conclui Mir, que coordena uma pesquisa patrocinada pelos Ministérios da Educação e da Saúde que vai apresentar, até 2012, um diagnóstico completo da qualidade de ensino oferecida pelas 186 escolas brasileiras de Medicina.
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Jornalista com pós-graduação em Educação Ambiental e advogada