Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ateus, a omissão da mídia e dos grupos de DH

A repercussão (ou falta dela) do ‘caso Datena’, no qual foi escancarado o mais expressivo e público caso de preconceito contra ateus no Brasil nos últimos tempos, vem mostrando uma realidade difícil para quem não acredita em um ou mais deuses: sua situação como minoria intolerada não é enxergada como deveria ser pela mídia nem pelos grupos de defesa dos direitos humanos e combate à discriminação. Em comparação aos negros, LGBTT, mulheres e religiosos não-cristãos, os ateus como categoria discriminada estão muito atrás em visibilidade e em recebimento de solidariedade de quem milita pela igualdade de direitos e tratamento entre todos os humanos do país.

Para quem ainda não sabe o que realmente houve, explico resumidamente: no último 27 de julho, José Luiz Datena, apresentador do Brasil Urgente, na emissora de TV Band, proferiu discursos de profundo preconceito e intolerância contra os ateus, contra quem ‘não tem Deus no coração’. Além disso, mandou ao ar uma enquete perguntando: ‘Você acredita em Deus?’. Entre seus dizeres, destacaram-se:

– ‘Não importa se você é judeu, se você é muçulmano, se você é católico, se você é evangélico, vocês acreditam em Deus. Eu parto dessa pressuposição. Quem não acredita em Deus, não precisa me assistir não, gente. Quem é ateu, não precisa me assistir, não. Mas se eu fizer uma pesquisa aqui se você acredita em Deus ou não, é capaz de aparecer gente que não acredita em Deus. Porque não é possível, cada caso que eu vejo aqui é gente que não tem limite, é gente que já esqueceu que Deus existe, que Deus fez o mundo e coordena o mundo. É gente que não acredita no inferno. Esse é o detalhe.’

– ‘Vocês que não acreditam, se vocês quiserem assistir outro canal, não tem problema nenhum. Eu não faço questão nenhuma de que ateu assista o meu programa. Nenhuma. Agora, quem acredita em Deus, seja evangélico, seja muçulmano, seja judeu, seja católico, qualquer religião, entendeu, de quem acredita em Deus, continue comigo. Quem não acredita, não precisa nem votar, não. Não precisa, de ateu não quero assistindo o meu programa. Ah, mas você não é democrático! Nessa questão, não sou não. O sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites. É por isso que a gente tem esses crimes aí. Agora, vocês que estão do lado de Deus, né, como eu, como eu, podiam dar uma lavada nesses caras que não acreditam em Deus.’

O ‘bem’ dos crentes e o ‘mal’ dos descrentes

– ‘[…] eu quero ver como as pessoas que são crentes, que são tementes a Deus, são muito maiores que quem não teme a Deus. Mas quero mostrar também que tem gente que não acredita em Deus. É por isso que o mundo está assim. Essa porcaria. Guerra, peste, fome e tudo o mais, entendeu como é que é o negócio? São os caras do mal, entendeu? Se bem que tem ateu que não é do mal, mas o sujeito que não respeita os limites de Deus é porque… ahn… não sei. Não respeita limite nenhum.’

– ‘Quase mil ateus, gente que não respeita Deus. Entendeu? Provável que entre esses ateus exista gente boa que não acredita em Deus, não é? Mas que não é capaz de matar alguém. Mas é provável que tenham bandidos votando até de dentro da cadeia! Entendeu? Né? Vou provar pra esses caras que o bem é maioria. Eu quero ver 30 mil votos ali, no mínimo! 30 mil votos!’

– ‘[…] mesmo com tanta notícia de violência, com tanta notícia ruim, o brasileiro prova de uma forma definitiva, clara, que tem Deus no coração. Quem não tem é quem comete esse tipo de crime. Quem mata e enterra pessoas vivas, quem mata criancinha, quem estupra, quem violenta, quem bate nas nossas mulheres…’

– ‘Deixa a pesquisa aí. Tão me pedindo pra tirar a pesquisa por quê? Eu quero chegar a 50 mil votos de pessoas que acreditam em Deus. Porque mesmo nessa situação que nós vivemos no Brasil e no mundo, o bem é maioria, isso que eu quero mostrar, mais nada. Que o bem é maioria. O bem é maioria.’

Datena ainda tentava explicar nesse discurso que não queria generalizar que todos os ateus seriam criminosos, afirmando: ‘[…] Não tô dizendo que todos que não acreditam em Deus são pessoas capazes de matar porque tem gente que não acredita em Deus e não mata nem uma barata […]’, mas ficou clara sua ideia de que o ateísmo seria diretamente responsável pelos crimes mais cruéis e que os criminosos geralmente seriam pessoas descrentes em Deus, supostamente não sendo possível o contrário – teístas cometerem crimes contra a vida. Além do mais, ele recorreu a uma dualidade que opunha o ‘bem’ dos crentes em Deus e o ‘mal’ dos descrentes – se mais pessoas estavam votando na enquete, o ‘bem’ estava vencendo.

Ateofobia escancarada

O episódio teve repercussão instantânea entre os descrentes, crescendo ao longo dos dias seguintes. Blogs, fóruns de discussão, sites ateístas, sistemas online de relacionamento e alguns portais de pequeno porte foram divulgando o caso. O Twitter contou com o nome Datena entre os trending topics brasileiros, graças aos ateus que se indignaram com a ofensa e reproduziam o bordão ‘Cala Boca Datena’, uma alusão ao viral ‘Cala Boca Galvão’. O YouTube recebeu uma leva de vídeo-discursos com ateus, agnósticos e até um teísta solidário manifestando seu repúdio contra os dizeres de Datena – às 22h de 5 de agosto, havia 25 vídeos de protestos individuais.

Porém, o vácuo foi total na mídia mainstream. Os grandes portais de notícias omitiram por completo a irritação causada entre os ateus ofendidos. As grandes revistas, idem. O Google News só tem uma ocorrência relativa ao caso – de um pequeno veículo de notícias que comenta os fatos no YouTube. Mesmo no site do Observatório da Imprensa, há apenas um artigo referente ao caso (eu me proponho a fazer outros, caso ainda dê tempo). Mesmo a mídia impressa, que costuma publicar links de suas notícias, de acesso aberto ou restrito, deixou o incidente passar despercebido.

Para piorar as coisas, não foram só os noticiários online que ignoraram o ‘caso Datena’, mas também as páginas de organizações de defesa dos direitos humanos e de militância antidiscriminação. A solidariedade prestada até o momento por movimentos negros, feministas, LGBTT e de religiões minoritárias, que poderia ser medida pela repercussão nos sites dessas entidades, foi próxima de zero.

Na verdade, ainda estamos para ver se o possível revés judicial que Datena sofrerá por seu crime de preconceito repercutirá como a ofensa em si não conseguiu. Mas o que vemos no momento é até agora um nada quase absoluto nos jornais, revistas, emissoras de TV e grupos de DH e antidiscriminação.

É notável hoje em dia que notícias relativas a casos nacionalmente repercussivos de homofobia, racismo, machismo criminoso e intolerância de uma religião contra outra quase sempre ganham pelo menos notas não desprezíveis na mídia. Mas o mesmo não aconteceu com a muito escancarada ateofobia de José Luiz Datena, que expôs ao Brasil como existem formadores de opinião que odeiam a ideia de existirem pessoas não crentes no deus deles.

Não são vistos como vítimas de preconceitos

O discurso de Datena ainda se soma a duas pesquisas feitas nos últimos anos sobre como os brasileiros (teístas) veem os ateus: a da CNT/Sensus, feita em dezembro de 2007 e encomendada e divulgada pela revista Veja, na qual apenas 13% dos pesquisados declararam que votariam num ateu assumido; e a da Fundação Perseu Abramo, feita e divulgada em agosto de 2008, na qual a rejeição social dos ateus (repulsa e ódio mais antipatia) é ligeiramente superior à de viciados em drogas pesadas, sendo assim a minoria mais discriminada do Brasil.

Fica evidente com o episódio de 27/07 e as pesquisas citadas que a massa ateísta brasileira é uma minoria discriminada, assim como os homossexuais, afro-brasileiros, mulheres (que ainda têm poder sociopolítico de minoria apesar de serem mais da metade da população nacional) e politeístas. Apesar disso, é atualmente excluída do mapa da discriminação no Brasil, assim como está fora da bandeira da militância por direitos humanos, igualdade de tratamento e respeito às diferenças.

Os ateus vêm lutando sozinhos para serem respeitados, para mostrarem à população que os ateofóbicos estão errados em sua noção preconcebida de que quem não crê em um deus não teria discernimento moral e seria mancomunado com entidades sobrenaturais malignas. Há também a incipiente luta das ONGs – a já ativa Atea e a recém-nascida UNA –, mas há o problema das brigas internas e da resistência de muitos livres-pensadores à ideia de se sujeitarem a uma autoridade diretora, o que inibe a formação de outras organizações ateístas e dificulta muito a união dos descrentes em causas unificadas e coordenadas.

Esses fatos mostram que os defensores dos direitos humanos precisam, desde já, incluir os ateus em sua bandeira, e os militantes antidiscriminação precisam começar a enxergar estes como irmãos de luta, como companheiros de ativismo ávidos por sua solidariedade. Se não há ainda o reconhecimento da necessidade ateísta de ter seus direitos e dignidade defendidos, ele precisa surgir já. Os ateus são como os homossexuais, os negros e as mulheres – são discriminados tanto quanto eles –, mas têm a infeliz peculiaridade de ainda não serem vistos como minoria vítima de preconceitos.

Obs.: os agnósticos estão incluídos entre os ateus abordados neste artigo.

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Estudante de Meio Ambiente, Recife, PE