Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A magia do real

Difícil enquadrar nos gêneros jornalísticos o estilo ímpar das crônicas-reportagens produzidas por Eliane Brum. Sua aguçada sensibilidade, onipresente nas ricas apurações, rendeu-lhe a descoberta de magníficas histórias reais. Publicados aos sábados durante o ano de 1999, aqueles textos magistralmente escritos pela repórter especial foram dispostos no espaço intitulado ‘A Vida Que Ninguém Vê’, no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e renderam-lhe o Prêmio Esso regional.

Enganam-se aqueles que veiculam tal premiação a reportagens cujos personagens são influentes políticos que desviaram consideráveis quantias de dinheiro público através de nebulosos esquemas de corrupção. O olhar insubordinado, de Eliane Brum, brinda seus leitores em ‘A Vida Que Ninguém Vê’ com magníficos relatos, como o de Adail, o carregador de malas do aeroporto que nunca havia voado, e Geppe Coppini, o mendigo de Anta Gorda que nunca foi visto pedindo coisa alguma.

Estes são somente dois breves resumos dos dramas humanos reportados por Eliane Brum contidos na obra homônima que compilou suas colunas publicadas em 1999 no Zero Hora.

A gaúcha de Ijuí, nascida em 1966, apresenta à sociedade fascinantes personagens da vida miúda que até parecem ter saído de um épico. Porém são reais e somente permaneciam encobertos pela poeira do desprezo jornalístico. Desprezo jornalístico que, atualmente, não se restringe à obsessiva busca pelo furo para desmascarar homens públicos corruptos. Desprezo jornalístico que se encontra associado a tornar-se refém das novas tecnologias disponíveis aos jornalistas. Ficar escondido atrás de um computador, achando que o fato de escolher em que mundo virtual entrar quando sair, quais e-mails responder e quais deletar, é ter a vida sob controle configurado, talvez, a grande ilusão contemporânea.

Leitura obrigatória

Eliane Brum ganhou mais de 40 prêmios de reportagem ao desvendar segredos contidos na alma de milhares de brasileiros comuns na sua simplicidade. Eu não gosto de heróis. De mitos, só os da Antiguidade. Não gosto porque não acredito, porque acho pobre, porque acho chato. Se, de perto, ninguém é normal, de perto ninguém é herói. Um ser humano, qualquer um, é infinitamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói. Mesmo os super, dos quadrinhos e do cinema, pode reparar: o Homem-Aranha só consegue duas horas de filme por causa do atrapalhado Peter Parker e até o Super-Homem, que veio de outro planeta, só tem atenção por conta de suas fraquezas bem terráqueas. Inclusive demônios, como o Hellboy, só são interessantes pelo que têm de humano, da ternura ao mau humor.

A gaúcha de olhar insubordinado pontua antigas premissas ensinadas por experientes jornalistas para desenvolver as habilidades de um bom repórter.

Tudo é um jeito de olhar. Você pode olhar para o infinito, como Carl Sagan, e descobrir que é feito da poeira de estrelas. E pode olhar para o chão e acreditar que é um cocô de cachorro. É o mesmo homem que tem diante de si o infinito e o chão. Mas é nessa decisão que cada um se define. Como olhar para você mesmo é uma escolha. Um exercício da liberdade, de autodeterminação, de livre-arbítrio. Seja generoso. Arrisque. Ouse. Olhe.

Leitura obrigatória para estudantes de Jornalismo, A Vida Que Ninguém Vê’, que venceu, em 2007, o Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Reportagem, abre as cortinas para novas oportunidades a serem vislumbradas pelos focas que desejam diferenciar-se no concorrido mercado editorial, além de contribuir para a urgente e necessária reinvenção dos jornais impressos.

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Jornalista, Pedro Leopoldo, Minas Gerais