Como se fosse uma nova mania, começa a aparecer na mídia, em São Paulo ou no Brooklyn nova-iorquino, o interesse de curiosos e colecionadores com as antigas máquinas de escrever. Desde que foram deixando as redações dos jornais para dar lugar aos silenciosos computadores, o frisson de entrar naquele mundo de notícias em estado de composição nunca mais foi o mesmo.
Difícil esquecer a cena de jornalistas afogados em laudas e papéis-carbono azuis, em várias vias, diga-se, lidando com as suas máquinas. Soa ainda na memória uma batucada desencontrada de teclas construindo sílabas, palavras, frases e períodos. A partir daquele caos de tipos, num vaivém martelando as folhas de papel, nasceria sempre um jornal na alta madrugada.
A memória da primeira visita a uma redação grudou-se na história pessoal porque, aparentemente, foi em meio à cantoria das máquinas mecânicas e de seus “plins” agudos anunciando o fim da margem direita que se deu a escolha definitiva da profissão.
Testemunha ocular da história
Era numa sala pulsante como aquela, com seus tec-tecs secos, que uma aspirante a profissional desejava passar muitos anos da vida, reconstruindo, com o auxílio da máquina de produzir palavras, fatos vistos ou contados. Ela, a máquina, era a testemunha ocular da história que cada repórter contava ali, dedilhando as letras com a força dos dez ou de quatro dedos das mãos.
Quem experimentou a paixão pelo ofício de ordenar e contar fatos como sua rotina de trabalho sabe quantas histórias as máquinas transformaram em manchetes e quantas não foram lidas nem por quem comprou peixe na feira no dia seguinte. Mas esses instrumentos também provocavam cada um a sua história, enquanto resistiam à fúria pacificadora de quem os manuseava com vontade, puxando o carro de volta para contar mais uma linha.
Algumas com tipos quebrados ou travados obrigavam os repórteres, na pressa do fechamento, a preencher à mão as letras ausentes no texto. Esse era apenas um dos muitos longos e minuciosos trabalhos de recomposição a que as máquinas de escrever forçavam, e que não tornavam mais limpas as laudas datilografadas em fitas pretas e tinta pegajosa. Com digitais involuntárias impressas, lá ia o copidesque dar o seu jeito nos ensaios de realidade adornados com alguns borrões.
Para aguentar o tranco das paixões descarregadas em suas teclas, as máquinas viviam em manutenção, e as melhores chegavam quase a ser disputadas a tapa entre os colegas repórteres e os que faziam copy. Alguns mais passionais prendiam-nas à mesa, às vezes com um simbólico barbante, às vezes com corrente e cadeado, o que já era considerado apropriação de bem coletivo e acabava em desentendimentos reais. No JB, certa vez, ao ver que a sua Olivetti 88 havia sido surrupiada por um companheiro, o redator foi logo dizendo: “Só porque quer usar a minha máquina, você acha que vai escrever tão bem como eu?”
A intenção era a de que o companheiro, na rabeira da noite, não transferisse a máquina de mesa, principalmente nas redações cariocas menos aquinhoadas. As mais desejadas por seu estado de conservação ostentavam bilhetes com pedidos de carinho e atenção e, às vezes, adquiriam alma e pediam na primeira pessoa: “Não me tire daqui”.
Mas para manusear as pretinhas com louvor era preciso ter boa velocidade. Os chamados toques por minuto aumentavam o passe das secretárias e davam agilidade a qualquer profissional, desde que o pensamento estivesse no mesmo compasso. Os cursinhos de datilografia – asdfg /çlkjh – eram tão essenciais quanto foram as aulas de digitação, antes de os bebês já nascerem dominando todas as plataformas virtuais.
Ainda insubstituível para alguns ferrenhos apaixonados, que em algum momento do processo industrial terão digitados os seus textos datilografados, a máquina não revelava facilmente os seus mistérios: nunca foi autoexplicativa e carrega ainda consigo a sua maior incógnita, a de só servir para escrever. Ah, e imprimir.
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Jornalistas