Na sociedade do espetáculo, tudo é espetacular no sedutor pesadelo fascista do espetáculo midiático: notícias, novelas, filmes, publicidades, programas de auditório, tudo é uma coisa e outra, tal que nada é nada e no fundo e no raso tudo é propaganda ideológica dos e para os multinacionais poderes constituídos e constituindo-se por todos os lados, em cada dicção de fala, em cada comentário, em cada flash facial, música escolhida, cenário adotado, trabalho editorial, posicionamento do foco da câmara, ângulo a ser mostrado e o modo de mostrá-lo, em contraponto com outro ângulo, jogo de luzes, cores; tudo é patrulha ideológica espetacular e plástica e tanto mais “espontânea” quanto mais o espetáculo midiático total se inscreve como jogo de máscaras para disfarçar a extrema concentração de poder e de riqueza do mundo atual, com sua consequente e despótica e implacável e intolerante e nazifascista disposição igualmente “espontânea” para matar milhões e deixar em desespero e desalento e abandono bilhões.
Estamos, nesse sentido, diante de duas espontaneidades contrapostas e postas para matar; de um lado o disfarce mágico, ilusionista, festivo, alegre, subjetivo; de outro a objetividade supostamente imparcial para decidir, projetar e acordar guerras e genocídios, em nome de mais concentração de riqueza, de mais poder, de subjetividade concentrada. De um lado, para continuar, a subjetividade total e autoconfiante (de sujeitos de notícias, publicidades, esportes e narrativas), cuja espontaneidade total deriva da objetividade total da concentração de poder e de riqueza do mundo contemporâneo. Não existe contradição entre um polo e outro, pelo contrário, são complementares: subjetividade total é igual objetividade total; primeira pessoa do singular, eu, é a contraparte da terceira pessoa, ele.
Além do bem e do mal
É por isso que Barack Obama pode fazer um “espontâneo” discurso, como fez há duas semanas, chamando a atenção de Israel a fim de que este país aceite as demandas territoriais dos palestinos, a de ter o direito a um Estado soberano cujas fronteiras sejam anteriores à guerra árabe-israelense de 1967, com o consequente intercâmbio de terra. Bravo! Pela primeira vez um presidente americano publicamente tem coragem de ecoar uma legítima e justa causa: a causa de um povo, o palestino, que vem sendo dizimado de forma sistemática e consciente pelo terrorismo de Estado israelense. Que acontecimento histórico extraordinário! Mídias objetivamente subjetivadas do mundo, divulguem-no!
No entanto, observando a sequência de acontecimentos midiáticos, evidenciamos: o discurso de Obama é retórica, é cinismo, é estratégia, ao fim e ao cabo, pois foi usado para motivar um encontro, em Washington, com o primeiro-ministro de Israel, Netanyahu, no dia 20 de maio, objetivamente para que este pudesse antecipar-se ao apoio legal que a Assembleia Geral da ONU oferecerá à Palestina, quando, em setembro próximo, votará o direito dos palestinos de um Estado soberano. Obama, com sua subjetividade total, preparou o cenário para que Netanyahu começasse seu jogo de pressão sobre os países que compõem a Assembleia Geral da ONU, como que a dizer, e objetivamente dizendo: não votem no direito dos palestinos de terem seu Estado soberano reconhecido internacionalmente, pois a sagrada segurança de Israel, a de se apropriar impunemente de terras alheias, é intocável, argumento objetivo que Obama ecoa subjetivamente dois dias depois, ao participar da reunião anual de política do Comitê EUA-Israel de Assuntos Públicos (Aipac), o principal lobby pró-Israel localizado nos Estados Unidos.
Sequência completa de acontecimentos ou montagem subjetiva-objetiva do lobby sionista: discurso “impactante” de Obama – e vem divulgação midiática –, encontro de Obama, em Washington, com Netanyahu para que este pudesse ocupar a cena – e vem divulgação midiática –, Obama discursa no Comitê EUA-Israel de Assuntos Públicos (Aipac) e defende a segurança intocável de Israel, segurança de continuar oprimindo e matando um povo inteiro (e vem divulgação midiática). Netanyahu, na semana seguinte, fala, no Congresso americano, para deputados e senadores, e expõe seu caudaloso e divino direito fundamentalista de estar além do bem e do mal (e vem divulgação midiática) e, após este artigo, certamente mais divulgações midiáticas focalizarão divinamente os passos seguintes do lobby sionista.
Um dispositivo gramatical de duas faces
A cena subjetiva toda, assim, objetivamente se define; Obama fez seu “histórico discurso” subjetivo para preparar o caminho para as pressões do lobby israelense, cujas sucessivas estratégias e presenças midiáticas têm como principal objetivo evitar que o assunto público, que será a votação de um Estado palestino pela Assembleia Geral da ONU, em setembro próximo, não seja público e nem aconteça, principalmente se depender da divulgação das mídias oligopolizadas, as quais, cedendo, como ocorrerá, às pressões do lobby israelense, farão questão, objetivamente, de que tal votação não seja divulgada, caindo no limbo das boas intenções, já que resoluções da ONU, sobretudo do Conselho de Segurança da ONU, só vale para os malvados terroristas que não entendem a missão civilizatória da subjetividade imperial.
Monta-se, midiaticamente, assim, todo um cenário subjetivo de encontro entre dois objetivos líderes de guerras e genocídios, Obama e Netanyahu, a fim de fabricar uma notícia, que é publicidade, que é patrulha ideológica ilusionista das oligopolizadas, objetivamente, mídias globais.
Existe, pois, um jogo orquestrado de uma gramática de duas faces: a gramática variável e subjetiva, ao estilo Obama; e a gramática não variável, objetiva, ao estilo Netanyahu, uma e outra formam um mesmo manual de comando e constituem, indissociavelmente juntas, um sistema de poder, o atual, levado a cabo sem cessar através do jogo sistêmico dessas duas faces gramaticais, uma flexível e outra inflexível.
Temos, portanto, um sistema de poder que utiliza esse dispositivo gramatical de duas faces com extrema flexibilidade e ao mesmo tempo com implacável objetividade; sistema que assim se experimenta e se constitui, como linguagem, no poder judiciário, no poder econômico, na sua dimensão política, no poder bélico e igualmente no poder midiático. Como sistema essa gramática de duas faces tem como objetivo inflexível a gestão global ou geográfica das populações do mundo: de um lado, países, cidades, regiões ou elites econômicas que nos são ideologicamente apresentados como flexíveis, variáveis, democráticos; de outro, por sua vez, regiões, como o Oriente Médio, cujas populações são implacavelmente condenadas a objetivas bombas na cabeça.
Civilizados versus bárbaros
Como não poderia deixar de ser, o nosso conhecido Jornal Nacional, da TV Globo, se inscreve nessa gramática de duas faces: aos amigos, a flexibilidade, a variabilidade, a projeção ilusionista e publicitária do nome próprio Aécio Neves, do nome próprio Fernando Henrique Cardoso, do nome próprio Serra, PSDB, DEM, EUA, multinacionais; aos inimigos, por sua vez, a implacabilidade objetiva da denúncia, da acusação sem presunção de inocência, da patrulha ideológica, que é patrulha econômica, cultural, política, sexual, contra o nome impróprio Lula, Chávez, Evo Morales, esquerda, movimentos sociais, como MST, do Brasil, ou as Farc, na Colômbia; e uma infinidade de outros nomes inflexivelmente apontados como impróprios, quando resistem ou propõem alternativas ao império dos déspotas esclarecidos, bem entendido, para transferir para as vítimas as suas inflexíveis armas preconceituosas e assassinas.
Como fiéis escudeiros desse sistema imperial-gramatical de duas faces, o casal vinte, William Bonner e Fátima Bernardes, constituem a encarnação duplamente facial do jogo entre objetividade e subjetividade. Bonner é a flexibilidade do galã, de um jornalista, que é ator, que é o sedutor, que é a vaidade em pessoa, com seu “espontâneo” sorriso, seu editado charme; Fátima Bernardes, por sua vez, é a objetividade, aquela que recrimina e incrimina, com dureza de expressão facial, com o olhar, a tudo e todos que são noticiados como impróprios, sob o ponto de vista da inflexibilidade acusatória do sistema imperial genocida.
Aparentemente, como se vê, existe aí uma inversão: a mulher e mãe, Fátima Bernardes, é apresentada como o lado inflexível da notícia, a patrulha ideológica em pessoa; e o homem, por sua vez, William Bonner, incorpora facialmente o lado ilusionista, sedutor, variável e publicitário da notícia. Trata-se de um sistema facial híbrido que constitui ou reproduz o cenário da cena familiar, no qual cabe à mãe, em nome do pai, recriminar inflexivelmente os filhos, com um simples olhar de viés, situação que todos nós vivenciamos como filhos – ou adotados, no sentido restrito e lato – que fomos ou somos.
O casal vinte do jornalismo brasileiro, portanto, é a extensão noticiosa da “sagrada família”. Ambos, Bonner e Fátima Bernardes, ocupam a base das duas pontas ou faces do triângulo edípico pai, mãe filho da “ família Jornal Nacional”, sendo que a ponta ou vértice do triângulo constitui a notícia a ser tratada, ora como um pai e uma mãe tratam os filhos diletos, com complacência, estímulo e elogios; ora como uma mãe e um pai tratam as ovelhas negras da família, com preconceito, acusação, descrédito, desdém, sempre, é claro, tendo como ponta de referência o filho e/ou filha considerados corretos, ajuizados e antes de tudo prováveis “legítimos” herdeiros do principal objetivo das famílias burguesas: acumular riquezas; ser uma família de posse.
É, pois, assim, que o Jornal Nacional, estrategicamente, procura produzir a suposta credibilidade de suas edições noticiosas, pondo como âncora um casal que representa exemplarmente o pai e a mãe das famílias de base burguesa e patriarcal. Para tal, William Bonner e Fátima Bernardes mimetizam o padrão burguês de família a fim de, de jornalistas para telespectadores, ou de pai e mãe virtuais para e mãe e pai reais, constituírem o padrão Globo que nada mais é que um edípico modelo de poder ocidental-planetário fundado no sistema de parentela das oligarquias, a um tempo flexíveis, para si mesmas, como filhos e filhas legítimos; e inflexíveis e implacáveis com os filhos e filhas bastardos, previamente culpados por terem nascido como “eles”, isto é, como terceiras pessoas ausentes da subjetividade total do eu-capital a absorver, como uma esponja letal, o planeta todo, sempre colocando na linha de frente, como lobby total, a subjetividade midiática total, dentro da qual e através da qual o mundo é dividido em civilizados versus bárbaros; democratas e terroristas; filhos legítimos versus filhos bastardos.
E depois ainda dizem que Marx está superado. Se quisermos, de fato, conhecer e destronar os verdadeiros bárbaros, basta invertermos a ordem.