Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre baratas e percevejos

Na sexta-feira (27/5), dois dos maiores jornais do país publicaram versões quase idênticas de uma mesma matéria, a saber: “Inseto é fotografado comendo filhote de tartaruga no Japão“, no Estado de S. Paulo, e “Foto mostra inseto comendo filhote de tartaruga no Japão“, na Folha de S.Paulo. Os dois artigos são reproduções praticamente inalteradas, embora ligeiramente encurtadas, de uma matéria divulgada no mesmo dia pela BBC Brasil – “Inseto é fotografado comendo filhote de tartaruga no Japão“. A matéria original, intitulada “Giant water bug photographed devouring baby turtle“, assinada por Ella Davies, foi publicada no dia anterior pela BBC britânica.

O xis da questão é um registro científico algo inusitado: um zoólogo japonês (Shin-ya Ohba, da Universidade de Kyoto) documentou uma barata-d´água se alimentando de uma tartaruga jovem. Registro valioso, mas que por aqui deu apenas margem para matérias problemáticas. A versão em português da matéria contém alguns erros e mal-entendidos que não aparecem na matéria da BBC britânica. Os problemas aparentemente foram introduzidos durante o processo de tradução e edição do original, presumivelmente de responsabilidade do pessoal da BBC Brasil. Nesse caso, as editorias de Ciência do Estado e da Folha teriam apenas dormido no ponto e engolido mosca.

Mutantes assassinos?

Um problema grave da versão em português é que ela sequer esclarece o que são baratas-d´água. O texto informa que o inseto em questão pertence ao gênero Kirkaldyia (como também à subfamília Lethocerinae e à ordem Hemiptera), mas essas informações, além de incompletas, por si só não esclarecem a questão, ao menos para o leitor leigo. A palavra “percevejo”, que poderia facilitar o processo de identificação, não é citada uma única vez.

O texto também reproduz erros de linguagem, como chamar serpentes (snakes, no original) de “cobras” e informar que integrantes da subfamília Lethocerinae são encontrados em “lagoas de água fresca, lagos e córregos de baixa velocidade, além de rios”, quando o certo seria falar em “lagoas de água doce, lagos, córregos e rios de águas lentas” (freshwater ponds, lakes and slow-moving streams and rivers, no original). A expressão “lagoas de água doce” ressalta que esses insetos não vivem em lagoas de água salgada ou salobra; enquanto a expressão “córregos e rios de águas lentas” sugere que eles não são encontrados em córregos ou rios de águas rápidas.

Além de erros de linguagem, há erros de conteúdo. Os problemas são tais que, ao final da leitura, um leitor não familiarizado com o assunto pode ficar com a falsa impressão de que o inseto em questão é: 1) uma barata gigante de hábitos aquáticos; 2) um inseto voraz que voa à noite atrás de suas presas; 3) uma barata carnívora que subjuga e devora suas presas por meio de um “bico”; e 4) um inseto perigoso (mais um!) que pode atacar seres humanos dentro da água.

Nesse ponto, faltaria pouco para que alguns leitores concluíssem que o referido inseto é um verdadeiro “mutante assassino”. Afinal, quando se fala em Japão hoje em dia, muitos de nós imediatamente pensamos no grave acidente nuclear que ocorreu recentemente naquele país. Quem sabe, então, se o inusitado registro obtido pelo zoólogo japonês já não seria um indício de que a radiação ionizante liberada pelo acidente foi suficientemente alta a ponto de induzir o aparecimento de aberrações genéticas?

Sugadora e mastigadora

Apesar do nome, as baratas-d´água não são propriamente baratas, e sim, percevejos. A denominação popular, comum em todas as regiões brasileiras, é usada em alusão a diversas espécies de médio a grande porte (5-10 cm) da família Belostomatidae. São conhecidas cerca de 150 espécies desses percevejos, 100 das quais ocorrem naturalmente no Novo Mundo. Se a denominação popular tivesse uma estreita correspondência com a classificação zoológica, o certo seria chamar esses insetos de percevejos-d´água, não de baratas-d´água. (A propósito, certos animais comumente chamados de baratinhas-da-praia não são nem baratas nem sequer insetos, mas crustáceos. A distinção é simples: baratas verdadeiras, assim como os insetos em geral, possuem apenas três pares de pernas; os crustáceos – caranguejos, tatuzinhos etc. – possuem ao menos cinco pares.)

Existem milhares de espécies de percevejos (a maioria das quais é de hábitos exclusivamente terrestres), todas elas incluídas na ordem Hemiptera. Esta ordem abriga, além dos percevejos, vários outros insetos, como as cigarras, as cigarrinhas e os pulgões. Em termos zoológicos, os percevejos e demais hemípteros estão arranjados ao lado de tripes (ordem Thysanoptera); piolhos (Phthiraptera) e piolhos-de-livro (Psocoptera). As evidências disponíveis sugerem que essas quatro ordens descendem de uma mesma linhagem ancestral caracterizada pelo tipo de metamorfose (o ciclo de vida consta de três estágios: ovo, ninfa e adulto) e pela presença de peças bucais do tipo sugador.

Paralelamente, teria ocorrido a evolução de outra linhagem de insetos com esse mesmo tipo de ciclo de vida, mas que se diferencia da linhagem anterior pela presença de peças bucais do tipo mastigador. Na opinião de alguns estudiosos, esse segundo grupo incluiria 11 ordens de insetos viventes: pleocópteros (ordem Plecoptera); cupins (Isoptera); baratas, incluindo as conhecidas baratas domésticas (Blattodea); louva-a-deuses (Mantodea); griloblatódeos (Grylloblattodea); gladiadores (Mantophasmatodea); bichos-pau e bichos-folha (Phasmatodea); embiópteros (Embiidina); gafanhotos, esperanças e grilos (Orthoptera); tesourinhas (Dermaptera) e zorápteros (Zoraptera).

Cabe registrar que, além das 15 ordens mencionadas até aqui, a classe Insecta – que reúne todos os insetos (viventes e fósseis) – abriga ainda quase duas dezenas de outras ordens, entre as quais a dos besouros (Coleoptera); a das borboletas e mariposas (Lepidoptera); a das moscas, mosquitos e pernilongos (Diptera); a das vespas, abelhas e formigas (Hymenoptera) etc.

Mais rigor

Baratas e baratas-d´água, como se vê, não só pertencem a ordens distintas, como estão relativamente afastadas em termos evolutivos. Não é de estranhar, portanto, que elas tenham caracteres e hábitos de vida tão diferentes. As baratas, por exemplo, possuem um par de mandíbulas, com as quais cortam, trituram ou maceram seus itens alimentares; são onívoras (alimentando-se tanto de vegetais como de animais) ou detritívoras; a grande maioria é terrestre e umas poucas são aquáticas ou semi-aquáticas. As baratas-d´água, por sua vez, possuem um aparelho bucal do tipo picador-sugador chamado rostro, com o qual penetram e sugam os fluídos do corpo de suas presas; são predadores carnívoros, alimentando-se, sobretudo, de outros insetos, moluscos, peixes e anfíbios; são exclusivamente aquáticos ou semi-aquáticos.

O termo “rostro” não aparece na versão em português da matéria, embora conste da versão original. Foi uma omissão deliberada, não um erro de tradução. Os editores, ao que parece, fizeram isso tendo em vista a fluidez do texto, mas terminaram cometendo uma barbeiragem. Se o termo “rostro” necessita de explicação adicional, talvez bastasse descrevê-lo como “aparelho bucal semelhante a uma seringa” ou apenas informar que as baratas-d´água possuem um “rostro semelhante a uma seringa” (syringe-like rostrum, no original). O que os editores não deveriam ter feito foi justamente o que acabaram fazendo: descrever o aparelho bucal das baratas-d´água como um “bico semelhante a uma seringa”.

“Bico” é um termo mais ou menos informal aplicado a certas projeções rijas presentes em torno da cavidade bucal de alguns animais, incluindo moluscos cefalópodes (lulas etc.), tartarugas e, sobretudo, aves. Em todos esses casos, a estrutura se caracteriza por permitir que o portador manipule os itens alimentares; em nenhum deles, o bico por si só funciona como estrutura usada para sugar ou aspirar fluídos, a exemplo do que faz uma seringa. É sabido que algumas aves são capazes de sugar fluídos, mas isso ocorre devido à participação de uma língua muscular com estruturas especializadas. De resto, muitas espécies de aves utilizam o bico para cortar, triturar ou macerar o alimento, mais ou menos como as baratas e outros insetos fazem usando as suas mandíbulas. Em termos de analogia, portanto, o bico teria muito mais a ver com um alicate, por exemplo, do que com uma seringa.

Embora os diretores de redação em geral costumem argumentar que correm contra o tempo e, por isso, às vezes, erros e mal-entendidos passam despercebidos, não custa repetir (ver, neste Observatório, “Nem sempre é culpa da mídia“): os responsáveis pela publicação de material técnico ou de divulgação científica deveriam se preocupar mais com o rigor e a boa apresentação das traduções que oferecem aos seus leitores.