Problema crônico na área de segurança pública, a corrupção policial é um dos principais fatores que contribuem para o aumento da violência urbana. Notícias sobre conivência de policiais com o crime organizado, repasse de armas a bandidos, pagamento de subornos a policiais são freqüentes nos meios de comunicação de todo o país. No Rio de Janeiro, que vive um momento positivo com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e comemora a queda nos índices de homicídios, a situação é ainda mais grave, com a existência de grupos de policiais |
Em fevereiro, a Polícia Federal (PF) realizou, em conjunto com a Secretaria de Segurança do estado e o Ministério Público Estadual, a Operação Guilhotina, que deu origem a uma das mais graves crises na cúpula da polícia do Rio de Janeiro. Entre os 38 presos na operação, conta-se 30 policiais. Um deles era o delegado Carlos Oliveira, que chefiou da Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos e era o braço-direito do então chefe da Polícia Civil, Allan Turnowski, que acabou entregando o cargo. O Observatório da Imprensa exibido pela TVBrasil na terça-feira (12/4) analisou o papel da mídia na investigação no setor de segurança pública e de que forma os meios de comunicação podem cobrar das autoridades uma maior transparência nos casos de corrupção policial.
Alberto Dines recebeu três convidados no estúdio do Rio de Janeiro para discutir esta questão: o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares e os jornalistas investigativos Vera Araújo e Bruno Paes Manso. Ex-secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estácio de Sá. Foi subsecretário de Segurança e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro. Paes Manso é repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Aluno do doutorado em Ciência Política pela USP, pesquisa o crescimento e queda dos homicídios em São Paulo. Jornalista há 24 anos, Vera Araújo é repórter do jornal O Globo. Trabalhou no Jornal do Brasil e em O Dia. Em 2010, ganhou o Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo com a reportagem ‘Exército de Laranjas’.
Lavagem de dinheiro na mira
Em editorial, Dines destacou que a Operação Guilhotina foi amplamente noticiada em uma primeira fase, mas depois o assunto foi esquecido pela imprensa. ‘O inquérito, evidentemente, é sigiloso. Ninguém se arrisca a vazamentos. E, sem os subsídios de fontes policiais, os jornalistas que investigam o caso enfrentam dificuldades para avançar nas apurações. Normal. Tudo deixa de ser normal quando lembramos que, no início de dezembro do ano passado, portanto há três meses, aqui neste Observatório, logo depois da reconquista da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, lembramos a advertência pública do ex-Secretário Nacional de Segurança, Luiz Eduardo Soares, a respeito da diversidade dos vilões: além dos traficantes entocados nos morros e favelas, o crime organizado conta com um poderoso sistema de lavagem de dinheiro para financiar suas operações’, sublinhou Dines.
A reportagem exibida pelo Observatório entrevistou o deputado estadual Marcelo Freixo, ex-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias. O parlamentar explicou que a corporação surgiu em 1808, com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, para proteger a nobreza e a classe mais abastada das ‘ameaças’ da nova sede do império luso-brasileiro: os escravos e a população de rua do Rio de Janeiro. ‘Em alguma medida, a polícia não perdeu esse perfil, essa sua capacidade de proteger uma determinada elite e a manutenção de uma ordem. Para isso, utilizando de instrumentos violentos e que sempre passam pela lógica da corrupção’, disse Freixo.
Para mudar o quadro de corrupção disseminada que se instalou no Rio de Janeiro, na avaliação de Freixo, é preciso pensar na relação entre a política e a polícia. A elite política do estado é ‘profundamente corrupta’ e acaba determinando que a cúpula policial também aja desta forma para se manter no poder. ‘A polícia é o braço deste Estado no controle destas periferias e das áreas pobres. Essa polícia faz o papel sujo que nasce na política’, enfatizou. Freixo lembrou que o jogo do bicho e o tráfico de drogas não conseguem operar sem o pagamento informal de policiais, prática conhecida como ‘arrego’.
Uma esfera nebulosa
Jorge Antônio Barros, repórter do jornal O Globo especializado em segurança pública, destacou que a corrupção policial é um dos principais fatores do aumento dos índices de criminalidade no Brasil. Para o repórter, o trabalho da imprensa na área de corrupção policial é mais difícil do que aparenta ser. ‘Os jornais e jornalistas fazem trabalhos nesta área, mas como o nível de transparência dos governos é muito baixo, há também uma grande dificuldade de se apurar este tipo de matéria’, explicou.
No debate no estúdio, Luiz Eduardo Soares foi enfático ao avaliar a corrupção na área de segurança pública. ‘Não é que haja um problema de corrupção nas polícias. É que segmentos policiais ainda resistem a esta avalanche, a este tsunami de corrupção’, disse. O sociólogo destacou que este é um fenômeno de grandeza apreciável, permanente e que tem se agravado ao longo do tempo. Luiz Eduardo relembrou que há dez anos, quando deixou o governo Anthony Garotinho, declarou que a corrupção policial não era apenas um problema, mas sim o grande desafio a ser enfrentado pelo Estado do Rio de Janeiro para reduzir a criminalidade e fazer valer o Estado Democrático de Direito para a maior parcela da população.
Nesta época, Luiz Eduardo chamou a atenção para o fato de que a corrupção já não se restringia às esferas inferiores do sistema de segurança pública, mas atingia também à cúpula. Nós últimos dez anos, quatro chefes de polícia acabaram envolvidos com acusações gravíssimas. Alguns foram presos, outros respondem em liberdade mas já foram julgados e condenados em primeira instância. Na opinião do sociólogo, se o aparelho policial está desta forma contaminado, a situação é grave. ‘Não basta caçar culpados individuais. É preciso refletir sobre a instituição e começar um trabalho de refundação’, alertou.
Corrupção alastrada
Vera Araújo contou que o processo da Operação Guilhotina revela o histórico da corrupção policial no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. ‘Os policiais esqueceram que estavam com os telefones grampeados e começaram a falar um monte de coisas’, relembrou a jornalista. Em um momento de euforia, os policiais comentaram que seria desencadeada uma ‘corrida ao ouro’ em busca dos bens que os traficantes deixaram para trás na fuga da comunidade depois da entrada das forças de segurança. Policiais negociaram abertamente por telefone com informantes dentro da comunidade e, inclusive, fizeram a partilha do que seria encontrado.
A repórter concorda com a argumentação de Luiz Eduardo Soares de que a corrupção atinge todos os níveis da corporação, embora nem todos os policiais sejam corruptos, e destacou que um chefe de polícia cumprir a pena em um presídio de segurança máxima é uma ‘desmoralização total’ para a corporação. Luiz Eduardo Soares comentou que o salário dos policiais do Rio de Janeiro é o segundo pior do país, mas que existem muitos policiais que arriscam suas vidas e ainda mantém a honestidade preservada e agem de forma competente.
Dines perguntou a Bruno Paes Manso como a população de fora do Rio de Janeiro percebe a corrupção policial. O repórter contou que recentemente em São Paulo houve uma situação interessante envolvendo a imprensa. O secretário de Segurança Pública do Estado no governo de José Serra, Antônio Ferreira Pinto, permaneceu no cargo no governo de Geraldo Alckmin e desde a gestão anterior apura casos de desvio de conduta da corporação.
Por conta das investigações, houve a tentativa de desestabilizar a atuação do secretário para que este deixasse o cargo. ‘Gravaram o secretário indo se encontrar com um repórter do jornal Folha de S.Paulo em um shopping. Provavelmente, o telefone do secretário estava grampeado. Fizeram uma ilação de que ele teria entregue ao repórter um material que desestabilizaria o governo Alckmin, tentando ‘fritá-lo’ novamente’, disse. O repórter investigativo contou que a imprensa percebeu a manipulação e o ‘tiro saiu pela culatra’, pois o secretário saiu fortalecido do episódio.
Dinheiro sujo
Dines comentou que o Laboratório de Tecnologia contra a Lavagem de Dinheiro (LAB-DL) da Polícia Civil do Rio de Janeiro, órgão pioneiro no setor, até o momento não conseguiu ações efetivas. Em oito meses de funcionamento, pegou apenas ‘sardinhas’ e deixou livres os ‘chefões’ do tráfico de drogas. Luiz Eduardo Soares contou uma ‘lenda’ do universo da segurança pública, ambientada em 2009, que exemplifica o funcionamento do setor: ‘Conta a lenda que policiais corruptos, porém competentes, teriam manejado muito bem os equipamentos e, com autorizações judiciais, teriam chegado rapidamente a familiares de importantes traficantes do Rio de Janeiro. Mas, então, ao invés de conduzir os casos à Justiça, como deveria ter ocorrido, eles teriam tentado extorquir as famílias destes traficantes, principalmente daqueles que estão presos’.
Os traficantes presos convocaram mediadores para transmitir ao governo um recado: ‘nós já demos dinheiro suficiente para as polícias’. Os contraventores alegaram que já estavam cumprindo a sentença e não estavam dispostos a arcar com mais aquele custo. E avisaram que se as famílias fossem submetidas a este tipo de ‘constrangimento’ implantariam o caos na cidade com uma onda de incêndios. Diante da crise, as autoridades – temendo colocar a população em risco e, conseqüentemente, perder eleitores – passaram a questionar se era prudente continuar com as investigações sobre o sistema de lavagem de dinheiro.
A imprensa, em geral, depende da apuração promovida pelo governo, mas, na avaliação de Bruno Paes Manso, é possível buscar outros caminhos na cobertura da área de segurança pública, como mostrar as conseqüências para a população afetada pela criminalidade. ‘Tem personagens ótimos quando você vai a um morro, em uma periferia. Ou quando você vai a uma cadeia e tem um cara preso há oito meses por uma investigação mal feita. Ou, na periferia, famílias inteiras que foram dizimadas. É sempre bom tentar ouvir as pessoas que sofrem os efeitos para não depender apenas das investigações da polícia, do Ministério Público’, avaliou o jornalista.
Ver também ‘A corrupção é (só) policial?‘.
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Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 588, no ar em 12/4/2011
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Tudo começou em meados de fevereiro com a ‘Operação Guilhotina’ desfechada pela Secretaria de Segurança do estado com o apoio da Polícia Federal e do Ministério Público. Foram presas 38 pessoas, das quais 30 eram policiais, um deles delegado que chegou a ocupar a subchefia da Polícia Civil e Secretaria de Ordem Pública do município. A situação do chefe da Polícia Civil, Allan Turnowski, tornou-se insustentável, por isso demitiu-se.
O caso teve ampla repercussão e, como costuma acontecer, evaporou-se. O inquérito, evidentemente, é sigiloso. Ninguém se arrisca a vazamentos. E, sem os subsídios de fontes policiais, os jornalistas que investigam o caso enfrentam dificuldades para avançar nas apurações. Normal.
Tudo deixa de ser normal quando lembramos que no início de dezembro do ano passado, portanto há três meses, aqui neste Observatório, logo depois da reconquista da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, lembramos a advertência pública do ex-Secretário Nacional de Segurança, Luiz Eduardo Soares, a respeito da diversidade dos vilões: além dos traficantes entocados nos morros e favelas, o crime organizado conta com um poderoso sistema de lavagem de dinheiro para financiar suas operações.
Mencionou-se aqui a hipótese da existência de um sofisticado laboratório para rastreamento deste dinheiro sujo mas cujas sindicâncias acabaram sendo usadas por policiais corruptos para extorquir a impunidade dos poderosos chefões. Este laboratório denominado Lab-LD, Laboratório de Tecnologia Contra a Lavagem de Dinheiro, operava na esfera da Polícia Civil. O jornal Valor Econômico chegou a mencionar sua existência em notícia da primeira página.
Tudo isso precisa ser retomado, não pode ficar nas coleções dos jornais e nos arquivos. Para isso estamos aqui.
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Jornalista