Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A evolução da grande imprensa

Temos um sistema em que a grande mídia se esforça para ser ética pela mesma razão que o governo e as grandes empresas o fazem: o advento de nova tecnologia torna impeditivo o controle da informação da maneira como estávamos acostumados a ver. Se no início dos anos 1970 o caso Watergate revelou um sistema de corrupção política imaginado por bem poucos em Washington, e que culminou com a deposição do presidente Richard Nixon, em 2011 qualquer pessoa minimamente conectada à internet tem condições de ver o que está acontecendo nas praças do Cairo, nas ruas de Teerã, nos subúrbios de Pequim. E o que está acontecendo? Geralmente o que não é do interesse dos governos egípcio, iraniano e chinês divulgar. A internet torna possível que milhões de pessoas (eu, por exemplo) ‘criem’ seu próprio veículo de comunicação, garantindo maior repercussão para sua voz. O resultado é uma explosão de jornalismo de ponta e de crítica de mídia que, se antes não tinha como se manifestar, hoje parece algo mais que natural ler alguém comentando que a revista X pecou por excesso de parcialidade (sim, excesso de parcialidade!) e o jornal Y resolveu se engajar de vez na promoção de seu candidato à presidência da República abandonando por completo qualquer idéia de isenção, de interesse pelo contraditório.


Pode parecer paradoxal, mas podemos também afirmar que a grande mídia tem ajudado a tornar esta uma época de ouro do jornalismo, porque só ela dispõe dos meios para realizar grandes negócios – e de maneira consistente – com os governos federal, estadual e municipal. A escolha do modelo de tevê digital no Brasil tem as digitais da grande imprensa. A proibição do comércio de armas de fogo mediante plebiscito tem também suas digitais: que interesses a grande imprensa deseja atender quando se posiciona contra esta proibição?


Em um tempo em que o governo de plantão – seja este qual for – toma decisões calcadas em pesquisas de opinião públicas quantitativas e qualitativas sobre esta ou aquela política pública, não seria de estranhar que parte de seu êxito político dependa de como a população percebe o governo através das letras, do som e da imagem que este difunde nos meios de comunicação. O governo pode ser bom, mas sem um trabalho de imagem na imprensa, sem dispor de uma rede de comunicação eficaz, dificilmente poderá ser visto como bom. E esta lógica só é invertida se o governante, ele próprio, tomar para si a tarefa de fixar no imaginário popular a sua imagem, dando-lhe um cunho autoral e usando os meios de comunicação apenas como instrumento de potencialização de sua imagem, de suas idéias, de seus feitos. Foi o que ocorreu durante os anos 2003-2010 em que Luiz Inácio Lula da Silva exerceu o cargo de presidente do Brasil. A grande imprensa teve trabalho redobrado para se manter sempre a dois passos na retaguarda, criando contrapontos – boa parte destes frutos de férrea forçação de barra – aos números informados, aos feitos divulgados, às façanhas alardeadas pelo presidente.


A grande imprensa tem também o olhar no termômetro da opinião pública. Divulga o que o público deseja ou tem interesse em saber. Não à toa alguns dos grandes jornais dispõem até de seu próprio instituto de pesquisa, como é o caso no Brasil do Datafolha, que é uma costela do grupo Folha. Se por um lado todo governo deseja agradar a opinião pública –  afinal é daí que deriva sua legitimidade (e sua carreira política) – , a grande imprensa também está sempre sequiosa para atender seus leitores, sua audiência. Sem leitores e sem audiência não existe imprensa e, menos ainda, grande imprensa. O que não impede que existam ‘conglomerados de mídia’, empresas que mesmo distanciadas de seu objetivo principal – divulgar informação, ajudar a formar opinião etc. – servem como escoadouro natural para informes publicitários, o que em outras palavras significa o que o jargão popular chama ‘dinheiro entrando no caixa’. E também não impede seu intento para atuar como grupo de pressão político-partidário sobre o governo, analisando suas políticas públicas, criticando duramente aquelas com que não concorda ou as que não servem para criar condições de alternância no poder.


Dois blocos


É também comum nos dias que correm que todos os que se atrevam a criticar a postura da grande imprensa sejam rapidamente rotulados como ‘de esquerda’, ou seja lá o que diabo isso queira dizer. É como se as direções esquerda-direita deixassem a seara política para ocupar o espaço público da crítica da mídia. E não há nada mais ridículo que esta concepção simplista de criar nichos específicos para os que se ocupam de pautar a mídia, nem tanto pelo que esta faz mas principalmente pelo que deixa de fazer.


Parece ter virado lugar comum a idéia de que é de esquerda quem critica o falso debate em torno da liberdade de imprensa, promovido pela chamada grande imprensa brasileira – como meio de desviar o foco do verdadeiro debate que seria o de assegurar ampla defesa aos que sofrem injúrias por parte da imprensa. E seria também de esquerda quem aponta o poço de mediocridade em que se constrói a grade de programação de nossa tevê aberta e que tem na atração Big Brother Brasil um de seus maiores chamarizes não apenas de audiências, mas também como meio de vender amplos espaços publicitários a preço de ouro em pó.


Nesse forçado contraste ideológico fica convencionado chamar de ‘direita’ todos os que abominam os movimentos sociais, têm urticárias ao ouvir nomes como MST-CUT-UNE e são favoráveis ao livre comércio de armas, do Oiapoque ao Chuí. De esquerda todos os que vejam com algum grau de simpatia, mínimo que seja, os que louvam programas de mobilidade social como Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, universidade para todos. De direita os que condenam o aborto e também a transposição de águas do velho Chico. De esquerda os que lêm CartaCapital e Caros Amigos e Le Monde Diplomatique. De direita os que assinam Veja, Época, O Globo, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo. Mas o Brasil não é assim e se nem mesmo os partidos políticos conservam alguns gramas de ideologia, seja em favor do capital seja em favor do trabalho, por que cargas d’água os que trabalham com a comunicação e em especial os que pautam o trabalho dos meios de comunicação teriam que ser segregados em apenas dois blocos?


Lições aprendidas


Não seria demais pensar que ao menos 99% da informação sobre o abuso dos meios de comunicação ainda é desconhecido do grande público. São informações ‘incubadas’, aquelas que poucos têm conhecimento. E isso acontece porque a maioria das empresas de comunicação tratam esses abusos mais como ‘percalços empresariais’ do que como ‘notícia’. E é sempre mais fácil noticiar deslizes como o do deputado Tiririca que torrou R$ 1.000,00 de sua verba de gabinete com o pagamento de diárias em hotel 5 estrelas de Fortaleza ou a viagem – que não houve – do também deputado Romário à Espanha. Quanto às ‘barrigas’ quando da divulgação açodada do substituto do executivo da Vale, Roger Agnelli, nenhuma linha. Menos ainda sobre os interesses por trás da troca de comando na principal empresa exportadora do Brasil e uma das cinco maiores do mundo na área de mineração.


Parece que nossa grande imprensa aprendeu bem antes que o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero o significado da infeliz declaração que lhe custou o posto de ministro da Fazenda em 1994 e boa parte de sua então imbatível credibilidade. Ricupero, como muitos ainda recordam, renunciou ao cargo em 6 de setembro de 1994 após o vazamento de uma conversa sua com o jornalista da TV Globo Carlos Monforte (que também é cunhado de Ricupero – a irmã do jornalista é mulher do ex-ministro). Sua fala foi: ‘Eu não tenho escrúpulos: o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde’.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor, professor de pós-graduação na Unilegis e UnB, autor de Liderança em tempo de transformação, Nova Ordem Mundial – novos paradigmas e Viajar é preciso