As fontes de informação exercem um papel essencial na produção jornalística, haja vista que a definição primária dos acontecimentos provém exatamente delas, conforme já apontaram Stuart Hall e seu grupo de pesquisa e também Molocth & Lester em dois artigos da década de 1970. A importância do jornalista se revelaria na avaliação de relevância dos fatos descritos. Contudo, o que nos interessa aqui, particularmente, é que a escolha da fonte de informação realizada pelo jornalista revela, entre outros aspectos, o conhecimento que o jornalista tem das questões objeto da reportagem. Esta premissa nos conduziu a uma pesquisa sobre as fontes acionadas por dois telejornais sergipanos na cobertura dos temas relacionados à infância e adolescência.
O presente e o futuro de crianças e adolescentes são uma preocupação no Brasil que concerne tanto às famílias, mais diretamente próximas deles, quanto ao Estado e à sociedade. Foi a própria Constituição Federal que determinou, em seu Art. 227, que:
É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los e salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência crueldade e opressão.
Todos os aspectos, portanto, que dizem respeito à vida dessa população imediatamente diz respeito também à vida daqueles que têm por dever zelar pela sua dignidade. Pode-se caracterizar então que as questões relacionadas ao universo infanto-juvenil são de pleno interesse público porque exige de todos, indistintamente, uma cota de responsabilidade na defesa e na garantia de seus direitos.
As sociedades democráticas pressupõem que, para o exercício da cota de poder própria de cada cidadão, lhe seja assegurado pleno discernimento sobre os temas considerados. O discernimento se obtém com informações, pelas quais as pessoas podem dispor de conhecimentos que embasem suas decisões. É nesse sentido que Victor Gentilli considera o chamado ‘direito à informação’ um ‘direito-meio’, que funciona como uma ‘porta de acesso a outros direitos’, na medida em que subsidia a ação das pessoas nas esferas sociais em que circulam. Uma das instituições cujo papel é suprir tal direito é justamente a instituição jornalística.
Pouca diversidade
A combinação do princípio da responsabilidade compartilhada entre Estado, família e sociedade que preza pela afirmação e as garantias dos direitos infanto-juvenis com a missão jornalística de dar visibilidade às questões que municiem os brasileiros no exercício de sua cidadania caracteriza uma área de interseção das mais relevantes no âmbito do que convencionamos chamar interesse público.
A visibilidade que o jornalismo pode dar aos temas depende significativamente do potencial cognitivo dos profissionais para interpretar corretamente os fatos do universo infanto-juvenil. Considerando, porém, que as fontes são as definidoras primárias dos acontecimentos, a escolha das pessoas para falar nas matérias já revela por si mesma o quanto o jornalista é capaz de identificar os atores que atuam nesse cenário. E o que efetivamente pode estar em jogo numa determinada reportagem. Ou seja, é preciso haver uma capacidade de problematizar ou verificar a natureza correta do problema a fim de que a seleção das fontes permita o enquadramento adequado da matéria para dar conta da questão que a originou.
Um primeiro aspecto a se destacar na cobertura dos telejornais monitorados – o Sergipe Notícias 2ª Edição, da TV Sergipe, afiliada da Globo, e o Telejornal Sergipe, da TV Atalaia, afiliada do SBT – foi a pouca diversidade de temas. Do total de matérias, 78,6 % abordaram quatro temas: educação, saúde, violência e direitos & justiça. São temas dos mais importantes, sem dúvida, sendo até justificável a sua maior presença no noticiário. Talvez não na proporção constatada, contudo, pois assuntos como exploração do trabalho infantil, cultura, drogas e medidas de reinserção social acabaram ficando relegados a uma posição secundária nos três meses de monitoramento: fevereiro, março e abril.
Estado esquecido
As fontes que apresentaram maior regularidade no noticiário, considerando apenas os quatro temas mais abordados, foram ‘cidadãos’ e ‘família’, nos dois telejornais pesquisados. Essas fontes são, em sua maioria, envolvidas do tipo 2 (conforme classificação por nós elaborada), pessoas que recebem as conseqüências de alguma ação transcorrida ou configuram o pólo passivo da ação geradora do fato. Normalmente, uma violação de direito no qual ou as pessoas acionadas também são vítimas e fazem referência a crianças que sofrem as conseqüências para ‘dramatizar’ a situação ou são parentes em defesa de suas crianças e adolescentes.
A fonte autorizada que aparece com maior regularidade na cobertura, isto é, está presente na abordagem dos diferentes temas em índices não muito díspares, é o Ministério Público de Sergipe. No entanto, em freqüência muito menor que cidadãos e familiares. O número máximo de referências feitas ao MP-SE foi quatro no TJ Sergipe para tratar do tema Educação. Números muito distantes dos obtidos pelo governo do estado, ouvido 16 vezes pelo Sergipe Notícias 2ª edição – em 12 para tratar só de educação – e sete vezes pelo Telejornal Sergipe, das quais somente uma vez para tratar de direitos & justiça. Em saúde, o SETV ouviu duas vezes o Executivo sergipano, mas sobre violência, nenhum dos telejornais acionou as fontes governamentais.
Na cobertura sobre a violência fica efetivamente registrado um problema: das 14 matérias que abordaram o assunto no SETV e das 13 no TJ Sergipe, as autoridades do governo estadual nunca se pronunciaram. Se uma criança ou adolescente enfrenta dificuldades para estudar, é nítida a responsabilidade do Estado para buscar uma solução. Mas, se uma criança enfrenta dificuldades para sair ou evitar o contato com o mundo da violência, nossos jornalistas não conseguem ver a responsabilidade do Estado nesse caso. No máximo, é caso de polícia. Geralmente, falam as pessoas também envolvidas nos fatos e as próprias famílias.
Realidade vs. dramaticidade
A ausência de fontes do Poder Público na abordagem da violência não pode ser explicada por fatores organizacionais, como seria justificado em uma análise baseada nos estudos do newsmaking. Afinal, a rotina das empresas jornalísticas se volta justamente para aqueles espaços. Trabalhamos com a hipótese de que é a percepção da violência pelos jornalistas que não consegue visualizar a responsabilidade do Estado neste assunto. A caracterização da técnica cognitiva de conteúdo – o saber que o jornalista tem da área temática – tem se constituído no nosso principal foco de pesquisa, pois desse saber depende inclusive a avaliação que os profissionais podem vir a fazer sobre o quanto as rotinas potencializam ou comprometem o trabalho de reportagem dentro de sua organização.
Nas entrevistas com os profissionais que trabalham nos telejornais monitorados, três aspectos chamaram a atenção. Primeiro, foi possível constatar que todos reconhecem a importância dos temas relacionados à infância e adolescência. Não existe, portanto, resistência da parte deles em cobrir os assuntos dessa temática. Além disso, destacaram, cada um na sua função, algumas experiências que demonstraram a sensibilidade e a atenção que dedicam às matérias nas quais crianças e adolescentes estejam envolvidas.
O segundo aspecto a considerar é que as situações que mais chamam a atenção dos jornalistas entrevistados são aquelas que implicam violação de direitos, como exploração do trabalho infantil, situação de rua, exploração e abuso sexual. Temas que não batem, contudo, com aqueles que efetivamente ocuparam 78,6 % do noticiário no período do monitoramento: educação, direitos & justiça, saúde e violência. Talvez porque as matérias sobre aqueles assuntos provoquem maior carga de dramaticidade e possivelmente gerem maior repercussão, os próprios jornalistas acabam por lembrá-los com maior facilidade.
Desafio compartilhado
A escolha das fontes é o terceiro aspecto de destaque nas entrevistas. Quando perguntados sobre os conselheiros tutelares, praticamente todos mencionam ou reconhecem o papel desses ‘procuradores da comunidade’ na defesa e promoção dos direitos de crianças e adolescentes. Apesar disso, durante os três meses de monitoramento, nenhum conselheiro tutelar foi identificado como fonte de informação nas matérias. Aqui pode estar configurado um problema de falta de ‘rotinas’, pelo lado das organizações jornalísticas, e falta de visibilidade ou de acessibilidade, por parte dos conselhos tutelares. No primeiro caso, embora os jornalistas reconheçam os conselheiros como boas fontes, não conseguem estabelecer contatos regulares, como o fazem com deputados na cobertura da assembléia legislativa. No segundo caso, os conselheiros ainda não consolidaram sua agenda de atuação com a regularidade e a disponibilidade que os órgãos jornalísticos necessitam.
As discussões aqui apresentadas visam produzir um diagnóstico inicial da cobertura. Para além das rotinas produtivas e outros fatores que contribuem para a formatação dos produtos jornalísticos, a tese de nossa investigação sustenta que o domínio cognitivo dos jornalistas sobre a área temática é um aspecto essencial para que ele avalie o próprio trabalho e ponha em xeque as próprias rotinas, se for o caso. Tudo para que se produza um ganho na qualidade final do produto a ser oferecido ao público.
Contudo, é preciso reconhecer que a área temática da infância e da adolescência, além de recente (o Estatuto da Criança e do Adolescente completou 15 anos em 2005, o que não configura muito tempo para uma doutrina que mudou radicalmente o modo de ver a infância no país), comporta instrumentos ainda novos, cujas ações e experiências não foram complemente absorvidas pelos próprios agentes do Sistema de Garantia de Direitos, o que se dirá dos atores externos que, como os jornalistas, têm sua atenção dispersa por vários aspectos da vida social. Apesar disso, não se pode negligenciar nem se acomodar a uma cobertura que pode e precisa ser aperfeiçoada. Desafio este a ser compartilhado por pesquisadores e profissionais.
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Jornalista, doutor em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da Universidade Federal da Bahia, professor da Universidade Federal de Sergipe, um dos coordenadores do Lejor/UFS