Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por um outro ponto de vista

“Como o bobão da turma virou uma besta assassina”. A manchete de hoje (10/4) do jornal carioca Extra, da família Marinho, sintetiza em grande medida o conjunto dos discursos produzidos pela mídia impressa e televisiva do Rio de Janeiro durante a semana, na repercussão de um dos acontecimentos mais desumanos da história da cidade. Passados os primeiros dias da chacina, o que se viu além da disputa pelos ângulos mais sanguinolentos da tragédia e a busca por relatos mais realistas, advindos das crianças presentes na escola, atropelando qualquer alusão ao Estatuto da Criança e do Adolescente (tema este que certamente será debatido no próximo Observatório da Imprensa, de Alberto Dines, na TV Brasil terça [5/4] à noite), foram a busca por explicações para a chacina e de elementos que compusessem o caráter do protagonista Wellington. Como diz o próprio jornal Extra nesta edição de domingo (10/4), “nossos repórteres montam as peças para decifrar o massacre de Realengo”.

Na “montagem do quebra-cabeça”, no entanto, não nos parece haver divergências entre as mídias impressas e televisivas (aliás, dos mesmos donos) nas análises, que extraem dos referenciais da psiquiatria (apresentando um rol de classificações: transtorno bipolar, de personalidade etc.) à criminologia as fontes de explicação suficientes para abarcar a complexidade do caso. O texto que se apresenta objetiva pôr-se na contramão dessas versões, apresentando um outro ponto de vista para a fatalidade em Realengo.

Matrizes que indiquem outra sociabilidade

Mas algo parece caminhar para um encaminhamento propositivo: a temática da comercialização de armas e munições, que enfrenta um desafio grande no que tange ao mapeamento da origem e circulação das armas, como tem testemunhado a CPI das armas na Alerj. Porém, em que pese a importância do tema do desarmamento, e ainda a necessidade da estruturação das escolas públicas do estado, sucateadas há pelo menos duas décadas, este texto se deterá na reflexão das determinações que podem estar relacionadas com o fato da chacina, dando como superada a visão reducionista que compreende o indivíduo isolado da sociedade, sendo suas ações obras de suas fantasias particulares espirituais. As pessoas se fazem na história a partir de mediações previamente estabelecidas em determinado padrão de sociabilidade, acordada pelos membros desta sociedade.

A própria reportagem do jornal Extra atesta esta superação quando anuncia que foi o “bobão” quem se transformou numa besta assassina. Vejamos que há na reportagem uma tentativa de associação do adjetivo “bobão” à consequente produção de uma mentalidade assassina. Então, partiremos do entendimento de que Wellington, o bobão, não nasceu com essa característica; ela foi fruto do seu processo de inserção no ambiente escolar, agregando que sua estrutura psíquica e, portanto, seus comportamentos, são derivados de um momento anterior ao período escolar, a etapa das mediações intrafamiliares da qual a psicanálise ainda é importante fonte de explicações, e que não tem a intenção de fornecer respostas unicausais, neurocientíficas e imediatas para um público absolutamente prostrado e anestesiado diante de um acontecimento de tamanha violência.

Por isso, a voz de um especialista em 30 segundos, ou a gritaria supostamente indignada de Wagner Montes, tem a função de consolar e tranquilizar cidadãos já angustiados com os profundos problemas que a cidade atravessa. A disseminação de respostas sensacionalistas, rápidas e prontas, pelas famílias Marinho, Macedo e Santos retira o foco dos elementos localizados na essência do funcionamento do atual ordenamento social. Talvez seja o caso, neste momento histórico, de sairmos do conforto e buscarmos matrizes que possam indicar outra sociabilidade.

“Foi baleado aonde? Mostra aí!”

Afinal, o que é bobão? Ou melhor, o que é ser bobão nas sociedades capitalistas, como a brasileira? Os estudantes explicariam melhor do que ninguém. Ser bobão é aquele que não tem aptidão para brincar com os outros, fica pra trás em jogos de esporte, não participa das rodinhas de conversa, não aceita um beck ou uma cerveja nas festinhas, enfim, um ser de outro mundo. Esse bobão não está só nas escolas públicas. Ele se encontra em inúmeras casas brasileiras, isolando-se do convívio comunitário que o assusta, que o exige. Não se permite ao diálogo, pois aquele Outro, os amigos ou a comunidade que o cercam, demandará uma postura que não encontra correspondência com sua forma de se portar, de pensar e se relacionar. O que parece ser natural, visto que é típico da condição humana a instabilidade no estado de humor, principalmente na juventude, e não é admissível para sociedades fundadas no capitalismo contemporâneo.

Por aqui são cultuados em escala de preferência os valores da competitividade e o acúmulo indiscriminado, em que a euforia e o imperativo do gozo são absolutamente funcionais à reprodução da atual etapa do capitalismo. Estar eufórico para participar de forma mais assídua da indústria do entretenimento, do consumo de bebidas alcoólicas (reparem a alegria nos comerciais de cerveja), ou de novos produtos que podem deixar o corpo de uma maneira que possa ser apresentado (se possível na televisão em horário nobre) dentro de um padrão preestabelecido (aquele que é visto nos comerciais e na revista Caras). Quem é louco de não participar? Caso não esteja em condições, certamente é portador de algum transtorno facilmente resolvido pela indústria dos psicofármacos e assim estará pronto para retornar ao “mundo dos normais”.

Bom, então “se o mercado é o grande organizador da vida social, os valores excludentes da vida privada sobrepõem-se aos valores que organizam o espaço público” (Kehl, 2010), o que, em outras palavras, significa dizer que o valor do que é público, da coletividade, do desenvolvimento comunitário, se coloca subjugado à competência do privado, em que os valores sociais se hierarquizam a partir do poder de compra e acúmulo de cada um; em que a adesão à indústria do espetáculo valha mais do que o respeito às vidas humanas, como pudemos presenciar na reportagem “exclusiva” da TV Record um dia após a chacina, na qual o cinegrafista e vendedor da produção audiovisual narra sua participação minutos após a matança de dentro da escola se referindo às crianças: “Foi baleado aonde? Mostra aí!” A TV Record, com isso, não mostrou apenas o seu completo desrespeito ao sofrimento das pessoas, familiares e crianças (passível de processo para cassação da concessão do uso do espaço televisivo), mas afigura-se de maneira emblemática do atual estágio de evolução do capitalismo brasileiro e sua reprodução nas relações sociais cotidianas, cada vez mais próximas ao ritmo estadunidense.

Uma alternativa crítica ao pensamento midiático

Outros elementos mereceriam ser agregados neste panorama conjuntural no qual Wellington estava inserido. O que vale assinalar é 1) a necessidade do não descolamento de seu caso da realidade social de seu tempo; e 2) que existem interesses privados para que a lógica do consumo exacerbado aliado à competitividade de mercado continue sendo cultuado pelas pessoas – e a Record e a Rede Globo não têm interesse em que esses princípios sejam abalados, sob o risco de pôr em xeque sua existência.

Retornando à reportagem do Extra, acredito que possamos inferir um olhar mais crítico sobre o que eles entendem por “montar o quebra-cabeças” das motivações de Wellington. Vejamos, em partes:

“Isolado em um universo sem espaço para mais ninguém, Wellington de Oliveira foi construindo sozinho, peça a peça, o quebra-cabeça de sua personalidade monstruosa(…)” – Vimos que o recuo de Wellington não obedece a uma lógica eminentemente interna, mas se associa e relaciona às demandas exigidas pelo Outro, do qual o rapaz resistia em participar. Resistir não significa ficar alheia a ela, na medida em que o isolamento também se afirma enquanto aprofundamento de uma dependência.”

“Entre os apelidos da escola e a incapacidade de se relacionar, descontava a sua raiva contra a humanidade socando paredes e matando inimigos no vídeo game.” A capacidade de se relacionar é um atributo singular de cada ser humano, variando a partir das vivências de cada um, tornando-se improvável a tentativa de mensuração de melhores ou piores capacidades. Elas são diferentes. É mais provável que o que se esteja querendo afirmar é que, dentro do parâmetro da sociabilidade burguesa contemporânea do imperativo do gozo e da alegria, do consumo imediato e do culto ao corpo, o jovem Wellington não parece se enquadrar. Na verdade, a afirmação de que ele descontava a sua raiva contra a humanidade socando as paredes nos parece corroborar a ideia da inadequação de Wellington ao mundo externo, o mundo da competição. Coincide a sua opção pelas ferramentas tecnológicas, únicas a fornecer uma possibilidade de acolhimento e interlocução às suas aspirações persecutórias e, provavelmente, neuróticas. O que Wellington (e a grande maioria da sociedade brasileira) não tinha condições de saber é que a Humanidade nem sempre foi assim. E que contra ela sempre haverá resistências que não se configuram como problema, pelo contrário. Ela é e foi constituída por sujeitos que, a depender da sua organização e disposição, podem dar novos contornos à história.

Solidarizo-me com os sujeitos mães, pais, familiares das crianças brutalmente mortas, tentando ter esperança de que o Rio tenha dias de maior coletividade e harmonia. E foi intenção deste texto trabalhar uma alternativa crítica ao pensamento midiático hegemônico apresentado como absoluto que, como demonstrado, não tem interesse na produção de uma sociedade solidária, em que o interesse dos trabalhadores prevaleça. E torço para que possamos adotar o olhar de José Padilha (o de Tropa de elite) quando realizou uma excelente investigação sobre a trajetória de Sandro, no documentário Ônibus 174 (que não passou e não passará na Rede Globo). Tenho a impressão de que os bobos Sandro e Wellington comungam algumas semelhanças dentro da mesma sociedade.

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Sanitarista, Rio de Janeiro, RJ